Fernando Duarte:
O momento presente se dissolve, e minha mente é abruptamente arrastada de volta àquela noite fatídica. o barulho ensurdecedor, repentino e violento de uma batida, seguido pelo estrondo assustador de uma explosão atrás do meu carro.
O mundo ao meu redor transformou-se num caos vivo: os olhos verdes desesperados, os gritos dilacerantes por socorro perfurando a noite, misturados ao som das sirenes sendo abafadas pelo zumbido em meu ouvido. Lágrimas mesclam-se ao sangue que tingia toda a minha visão de um vermelho profundo e sombrio.
O horror da imagem tingida de vermelho me dá náuseas — membros perdidos, um braço aqui, pernas ali, espalhado pelo interior do carro, o forte cheiro do sangue...
Enquanto o passado me consome, uma gota de suor frio traça um caminho pela minha testa. O descompasso de meu coração martela contra meu peito, enquanto minhas vistas se embaçam com a iminência de mais um colapso emocional. Lágrimas, antes contidas, agora fluem livremente, embaçando minha visão, e meus joelhos, subjugados pelo peso da memória, cedem sob mim. Com um baque surdo, encontro-me de joelhos no chão, meu corpo inteiro tremendo.
O rosto, que outrora ostentava uma expressão de fúria, agora é a própria imagem do sofrimento, marcado por sulcos profundos de dor. Enxergo e sinto o cheiro das chamas que dançam vorazmente ao redor, lambendo os restos de metal retorcido que emana um calor insuportável. Consigo ouvir os gritos se intensificando, um coro de vozes aterrorizadas e doloridas se aproximando, enquanto a distinção entre passado e presente se torna cada vez mais tênue e indistinta.
O suor banha meu rosto, e cada batida do meu coração parece ecoar em minha cabeça, uma marcha fúnebre descompassada e sufocante. A falta de ar me faz abrir e fechar a boca, mas de nada adianta, estou sufocando. De novo, preso no passado que é tão vívido e terrível.
— Não, por favor — sussurro, minha voz trêmula de desespero. Já não consigo discernir se meu apelo é para que eles não se afastem ou para que esta dor lancinante cesse. As memórias assombram os cantos mais escuros da minha mente, fazendo-me perder qualquer noção de realidade. Um gosto amargo e metálico invade minha boca, símbolo pungente de minha impotência e desespero.
— Ogro? Ei, ogro — uma voz surge ao longe, frágil como o sussurro do vento. Será que se dirigem a mim? Essa voz suave, de quem é? Eu lembro que tem uma pessoa que me chama assim...
Nesse instante, um silêncio profundo engole todos os ruídos. As imagens tumultuadas se dissipam e sou submergido numa calmaria abrupta. Minha respiração, antes ofegante, lentamente vai encontrando um ritmo mais suave, quase normal. Relutantemente, abro os olhos e me deparo com Laura me observando, seus olhos fixos nos meus, despidos do desafio que usualmente carregam.
Neste momento, não a vejo mais como a pirralha irritante que me chama de ogro, mas sim uma presença reconfortante cujo olhar ilumina a escuridão em que me afundei. O calor de sua mão sobre a minha me surpreende, trazendo um alívio inesperado, meu coração vai se acalmando.
— Você está bem? — Laura pergunta, seus olhos castanhos cravados nos meus, cheios de preocupação genuína.
Pisco várias vezes, tentando reorientar-me, e instintivamente, retiro minha mão do seu toque quente que agora parece queimar minha pele.
— Ah, já sei, você estava chorando de preocupação comigo, não é? Eu não esperava por essa, você é mesmo um ogrinho fofo — ela brinca, mal contendo uma risada provocativa, enquanto bagunça meus cabelos com um gesto brincalhão.
Me afasto rapidamente e me levanto, enquanto ela faz o mesmo.
— Não precisava chorar, cara, eu só... foi só... foi só uma queda de pressão, isso, foi uma queda de pressão — ela gesticula levemente, suas palavras tropeçando umas nas outras, como se estivesse tentando preencher o silêncio com uma explicação que nem mesmo ela parecia completamente convencida.
— Eu não estava chorando! — Exclamo, a voz elevada e as minhas mãos se fecham instintivamente em punhos. Sinto uma mistura de irritação e vulnerabilidade borbulhando dentro de mim, a vergonha de ser visto num momento tão frágil adicionando uma camada extra de frustração...
Ela me encara, uma sobrancelha, seus olhos castanhos brilham em um desafio petulante.
— E o que é isso aí molhado nas suas bochechas? — Sua voz é carregada de sarcasmo, provocando-me ainda mais.
Reviro os olhos impaciente, era só o que me faltava.
— É suor! — Respondo prontamente, a defensiva me dominando, enquanto tento controlar a tensão em meu corpo. — Fiquei nervoso, você estava tão pálida que achei que tinha morrido.
Ela morde o lábio, lutando para conter uma risada, claramente divertida com minha resposta.
— Aham, sei, lágrimas agora têm outro nome — ela zomba, descrente.
— Chega! — Grito alterado. — Isso não é da sua conta! — Rebato, irritado e humilhado, virando-me abruptamente em direção à porta da área dos funcionários.
Enquanto caminho, um turbilhão de emoções me consome.
Merda! Merda! Merda!
— Você também tem seus demônios, não é? — Laura murmura suavemente, tão logo alcanço a maçaneta da porta. Sua voz carrega uma mistura de questionamento e afirmação, tocando fundo na minha alma.
Sem olhar para trás, fecho os olhos brevemente e engulo seco, lutando contra a vontade de responder. Minha mão trêmula levemente ao tocar a maçaneta da porta. Sem mais palavras, abro a porta e saio.
Fernando Duarte:Após deixar o restaurante, dirijo com pressa tendo o caminho iluminado pelas luzes amarelas dos portes. Seguro tão firme o volante do carro, sentindo o metal gelado contra a palma da minha mão, que sinto as falanges dos meus dedos doerem e as veias do dorso das minhas mãos saltarem.De onde a minha mãe conhece Laura? E por que diabos a minha mãe achou que seria uma boa ideia arranjar um encontro com essa pirralha irritante?A frustração e a raiva se acumulam dentro de mim. Com fúria, desfiro um golpe no volante.— Porra! Por que tinha que ser logo ela? Ela era a última pessoa que eu queria encontrar — grito exasperado dentro do carro.Os faróis dos outros carros se misturam em um borrão de luzes, espelhando meu estado de espírito tumultuado. Minha respiração está tensa, e os pensamentos sobre Laura, sobre o meu passado, giram furiosamente na minha mente.Ao estacionar em frente à casa da minha mãe, respiro fundo, saio do carro e aperto a campainha. Ana, o braço direto
Laura Martins:Pago a passagem e me sento no banco mais alto. O ônibus começa a se mover, e apoio meu cotovelo na janela, repousando o queixo na palma da mão. Observo as luzes urbanas se desdobrarem à medida que o ônibus segue para a estação. Minha mente volta ao restaurante, lembrando os olhos do senhor Duarte, antes gélidos, agora cheios de terror e desespero. O que o teria deixado assim?Para! Já tenho problemas demais para me preocupar com os dos outros.Busco refúgio nos meus fones de ouvido e seleciono a música "Dias Melhores" do Jota Quest. Deixo-me levar pela melodia enquanto olho as ruas movimentadas."🎶 Vivemos esperando dias melhores.Dias de paz, dias a mais,dias que não deixaremos para trás.Oh oh, vivemos esperando o dia que seremos melhores,melhores no amor, melhores na dor, melhores em tudo... 🎶"Cantarolo baixinho, meus olhos se enchem de lágrimas, mas pisco para afastá-las. Sou egoísta demais, pensando em tudo o que ele já fez por mim. Ninguém nunca fez o que ele
Laura Martins:"Ele sempre teve uma boca tão bonita assim?" —Me questiono internamente, mordo o meu lábio inferior. Será que são macios? Quentes? A língua... será que... de repente e bruscamente, como se tivesse uma doença altamente contagiosa, ele me solta e se afasta. Cambaleio um pouco antes de retornar ao equilíbrio. Uma pontada de vergonha toma conta de mim, me atingindo como um soco no estômago, a minha mente martela com a possibilidade de que ele percebeu que, por um breve momento, eu talvez quisesse beijá-lo. Rezo em silêncio para que ele não tenha notado as minhas intenções nesse pequeno instante que encarei a boca dele.O som de um pigarro seco escapa da minha garganta enquanto tento esconder o meu constrangimento.Sinto um calor subir pelas minhas bochechas, o conflito interno entre raiva e atração deixando-me confusa.— Eu... eu não preciso da sua ajuda — sussurro, minha voz traindo a determinação que tento manter.— Por que você sempre tem que complicar tudo? — ele questio
Laura Martins: — Laura, o que aconteceu no restaurante? O meu filho chegou aqui transtornado! — a mulher começa. Lá vamos nós, penso me preparando para receber o esporro. — O nosso acordo era para você deixá-lo feliz e não ainda mais infeliz! — A voz da mulher ressoar familiar por trás da linha. De onde a conheço... de onde... já sei! É ela! A senhora elegante e gentil de terninho. Cristiane, é esse o nome dela, por que eu não me lembrei assim que vi o ogro? Será que foi o choque por ter sido justo ele? — Está aí? — Cristiane, a mãe do ogro, chama impaciente. — Si-sim! Estou sim — respondo, tentando suar calma, mesmo com o coração disparado. — Então por que não me respondeu? — Questiona. — Eu estava tentando me lembrar de onde conhecia a sua voz — explico e mordo o lábio com vergonha da minha lerdeza. — Você não lembrava que era eu? — Consigo sentir a surpresa em sua voz. — Desculpe — peço envergonhada, provavelmente o nome dela estava no contrato, mas eu só li a parte dos bene
Laura Martins:— Você! — exclamamos juntos, ambos claramente atônitos e, no meu caso, desesperada.Meu coração dispara em meu peito, ecoando um alarme surdo que parece preencher todo o espaço da sala de reuniões. Minhas mãos tremem tanto que mal consigo segurar a bandeja. Diante de mim, com os olhos azuis mais gélidos, que parece até congelar o ar entre nós, que eu já encontrei, está o ogro... não, o CEO da empresa onde trabalho, o mesmo homem em que a mãe me “alugou” para amar. Céus!Seu olhar sobre mim é uma mistura de surpresa e irritação, tão intensa que nesse momento, eu quero desaparecer.A única coisa que consigo fazer é encará-lo com uma expressão que eu só posso imaginar como uma mistura de choque e horror.Sinto os olhares curiosos de todos sobre nós, olho em volta e subitamente me sinto muito pequena. Sinto o peso de cada olhar, julgando, questionando. Procuro por uma rota de fuga, mas a realidade da situação me golpeia com força. Não tem como eu correr.— O que está fazend
Fernando Duarte:Não consigo me concentrar nos desenhos dos designs das novas joias apresentadas nos slides. Na minha mente só vem Laura, especificamente o dia em que nós encontramos pela primeira vez: Sete meses atrás:— Senhor, vim busca-lo — Ana informa por trás da porta.Ajeito o paletó, levanto da poltrona e seguro a maleta com alguns papeis dentro. Saio do quarto e Ana segue atrás de mim, de frente a porta de saída de casa, meus pés travam. Depois de dois anos, sendo perseguido pelas vozes, atormentado pelo passado, torturado pelas lembranças e me sentindo culpado, essa é a quinta vez que saio dessa casa; com o passar do tempo, até a luz do dia começou a me incomodar, ficar no escuro fazia as vozes se calarem.Mas a minha mãe, me tirou de dentro de casa. Ela e a minha irmã, agora sei que foi tudo armado pelas duas, no começo fiquei com raiva, mas agora me controlo melhor.Não quero sair! A minha mente e o meu corpo gritam, aperto com força a alça da maleta,
Laura Martins:— Logo você ficará boa — Oliver diz terminando de enfaixar a minha mão, e fecha o kit de primeiros socorros.— Obrigada — agradeço. — Como eu nunca te vi antes? — Questiono curiosa. Oliver, apesar de ter uma beleza quase feminina, é bonito. Seria impossível não reparar nele.— Oliver, está aqui? — A voz de Mike ressoa, antes que Oliver possa me responder. — Oliver, por que você chegou... — ele para de falar ao me ver, então olha para Oliver que está ao meu lado e para mim novamente, repete o movimento mais uma vez e só então repara na minha mão. — O que aconteceu?Mike se aproxima preocupado, pega na minha mão e observa o curativo feito por Oliver.— Está doendo? — Indaga preocupado.— Não, Oliver passou uma pomada de assadura e fez um curativo para a pomada não sair.— O que aconteceu para queimar sua mão assim?— Na sala de reunião, uma mulher do nada fingiu que eu prendi a xícara de café e derrubou ele na minha mãe, depois começou a gritar como eu ousava derruba café
Laura Martins:— Não sabia que era o senhor — respondo, canalizando a tranquilidade de um monge em meditação, embora por dentro estivesse mais para um desenho animado em pânico. — Creio que esclareci isso no restaurante, lembra? Quando você decidiu gritar comigo na frente de todas aquelas pessoas — acrescento, lançando-lhe um olhar significativo.Fernando me encara com uma frieza calculada, seus lábios formam uma linha reta, mas eu percebo uma ligeira hesitação em seus malabarismos com a caneta.— Como conheceu a minha mãe? — Ele dispara a pergunta, e eu quase engasgo com a surpresa.Droga!— Por que acha que eu conheço a sua mãe? — Retruco, tentando soar tão inocente possível, quanto uma criança flagrada fazendo travessuras, enquanto desesperadamente tento ganhar tempo para tecer uma resposta plausível.Fernando para de brincar com a caneta, seu olhar foca intensamente em meu rosto, quase me perfurando e analisando, tentando encontrar a verdade em minhas feições. Falho miseravelmente