Laura Martins:
Cuidadosamente, fecho a porta de vidro fumê ao sair da sala do RH. A alegria, ansiedade e esperança percorrendo todo o meu corpo fazendo-me vibrar com as emoções borbulhantes dentro de mim.
Me controlo ao máximo para não andar saltitando enquanto encaro esse pequenino livro azul em minhas mãos como se fosse o maior tesouro do mundo. Agora que está finalmente assinado, com certeza conseguirei alugar uma casa e sair das ruas perigosas dessa cidade; mostrarei aos meus pais, que me expulsaram de casa apenas com as roupas que estou no corpo – uma camisa de mangas curtas, calça surrada e sapatilhas com um pequeno furo na sala–, que de agora em diante sou uma pessoa independente, e não preciso mais contar com a piedade de estranhos para sobreviver.
A assinatura na minha carteira de trabalho é o meu passaporte para uma vida melhor...
— Aí!
Gemo de dor ao cair de bunda no chão.
— Merda! — exclamo frustrada, rapidamente me levanto e com as mãos abertas espalmo sobre minhas roupas para tirar a poeira do chão.
Ergo um olhar raivoso para a parede, mas sinto a surpresa deixa minha mente em branco com a visão de um terno preto abraçando músculos de um corpo masculino. Elegante — penso.
— Ei cara, olha por onde anda! — Reclamo, recuperando a minha razão.
— Aqui não é lugar para mendigos — diz a parede de músculos, seu tom grosseiro e hostil tentando me humilhar faz a raiva fulminar dentro de mim, ergo as vistas em sua direção, e por um instante, quase esqueço que esse babaca me derrubou no chão e nem ofereceu a mão para me ajudar. O que tem de bonito, tem em dobro de idiota.
Apesar do brilho penetrante dessas safiras azuis, seus olhos destilam frieza e um vazio assustador. No entanto, seu charme não passa despercebido: sobrancelhas espessas e escuras contornam o olhar sério e hostil, a barba por fazer acrescenta um toque jovial, e a boca rosada, larga e carnuda completa o quadro facial. É lamentável que toda essa beleza se restrinja apenas à aparência externa.
— Um mendigo tem mais educação que você — retruco, recuperando a compostura. — Derrubar uma dama no chão, não pedir desculpa e nem sequer a ajudá-la a se levantar, é um perfeito ogro — alego petulante, olhando-o de cima a baixo com o lábio superior franzido demonstrando todo o meu desprezo. Mas quem começou com as ofensas foi ele, então que aguente agora, oh belo ogro.
— Não estou vendo nenhuma dama, só uma pirralha maltrapilha — ele continua me ofendendo, fazendo minha raiva crescer ainda mais.
— E eu só vejo um ogro feio! — Exclamo exaltada.
Certo, de feio ele não tem nada. Ele aparenta ter uns trinta anos, mas isso não importa. No meu mundo, a beleza externa não é tudo.
— Com quem você acha que tá falando, menina? — Pergunta, de cara feia, tentando me intimidar. Comigo isso não funciona não, garotão.
— Com um ogro mal-educado que saiu direto do pântano! — Respondo, atrevida.
— Sua fedelha... — ele xinga com a voz rouca, fazendo-me arrepiar. O gelo em seus olhos dá lugar a chamas azuis de ódio, como se saídas direto do inferno. Sinto meus ossos começarem a tremer enquanto ele se aproxima de mim com passos firmes e ameaçadores.
Mesmo com uma língua atrevida, sou extremamente medrosa. Dou passos para trás, e, para minha salvação, uma mulher de meia-idade se coloca entre mim e o ogro.
Observo a senhora de costas. Ela está usando um terninho elegante, o cabelo é curto e um pouco grisalho, na altura dos ombros. Saltos médios e finos completam o visual.
— Fernando, meu filho, estão todos te esperando na sala de reuniões. Você não pode se atrasar — diz a mulher suavemente. A expressão no rosto do ogro volta a ficar neutra, me deixando aliviada. Ele acena com a cabeça para a mãe e dá as costas, sem nem olhar para mim. Ainda bem, estou nova demais para conhecer o céu.
É melhor eu aproveitar essa chance. Viro de costas e levanto a perna para dar o primeiro passo, mas uma mão toca meu ombro.
— Qual o seu nome, querida? — pergunta a mulher.
— Laura Martins — falo, fico de frente para ela. — E a senhora?
— Pode apenas me chamar de Cristiane — ela responde meigamente, finalizamos a apresentação com um aperto de mão. — Você é bem jovem, tem mais de vinte anos?
— Vinte e quatro, senhora — respondo alegre, é sempre bom parecer que temos uma idade menor.
— Você já conhecia o meu filho?
— Aquele ogro... hum-hum — pigarreio. — Eu não conhecia o seu filho não — respondo. — Ele esbarrou em mim e me derrubou, só isso.
— Ah, sim — a senhora sorrir, e por alguma razão, acho o seu sorriso suspeito. — Sinto muito. Você machucou-se?
— Agora já estou bem — comento, sorrindo. Apesar de achá-la suspeita, ela aparenta ser gentil. — Obrigada pela preocupação. Já vou indo. Tenha um bom dia!
— Para você também, querida. Nós nos veremos mais vezes — ela declara e sorrir, eu sorrio amarelo e me afasto.
Assim que coloco os meus pés para fora dessa empresa, o vento b**e no meu rosto, respiro aliviada.
— Cruzes, nada contra a senhora, mas espero nunca mais ver aquele ogro na minha frente.
Respiro fundo, o meu dia está apenas começando.
~
— Desculpe, mas não posso firmar contrato com alguém na sua situação — a mulher pigarreia e desvia o olhar, abrindo a porta para que eu saia.
Meu coração falha uma batida. Este é o décimo não que recebo. Pensei que mostrando minha carteira de trabalho assinada teria uma chance, mas pelo menos esta mulher não me acusou de falsificação.
Fiquei tão feliz por conseguir um emprego com carteira assinada, pensando que hoje não precisaria enfrentar a fila do abrigo. Amanhã será meu primeiro dia, mesmo sendo como faxineira. Estou ansiosa, o cheiro da minha independência é bom.
As lágrimas querem sair. Sem um centavo, minha barriga ronca. O abrigo está longe. Talvez a moça que distribui sopa já tenha ido embora. Queria pegar um ônibus, mas agradeço por poder andar, enquanto muitos estão presos numa cadeira de rodas.
Como vou sobreviver até chegar o dia de receber o meu primeiro salário? Pensar nisso me deixa angustiada.
Respiro fundo e as minhas narinas são preenchidas por um cheiro delicioso vindo de um restaurante, o cheiro de macarrão com molho rose faz a minha boca salivar e o meu estômago revirar, mesmo estando alguns metros de distância.
Apresso os passos. O aroma aumenta. Chego à vitrine, observando as pessoas dentro do restaurante, todas bem vestidas e despreocupadas. Apoio a testa no vidro, imaginando que no próximo mês, assim como eles, estarei sentada, comendo sem preocupações.
Apoio a testa no vidro e sorrio, imaginando que no mês que vem, assim como essas pessoas, eu também estarei sentada, comendo uma refeição sem preocupações.
— Ah não, você de novo? Só me faltava essa — uma voz familiar interrompe meus pensamentos.
Viro-me e encontro aqueles olhos azuis. De onde eu os conheço?
— Quer tirar uma foto? Posso autografar para você admirar depois — ele diz, arrogante, reviro os olhos.
Lembrei! Ele é o ogro de mais cedo.
— Se eu te olhar mais um pouco — olho-o de cima a baixo com o lábio superior franzido. — É bem capaz de eu pegar a sua feiura, seu ogro feio.
— Sua...
Minha barriga ronca alto, interrompendo-o. Sinto meu rosto pegar fogo de vergonha. Desvio o olhar e começo a andar para longe e cruzo os braços, começo a andar para longe dele.
Céus! Não preciso do olhar de pena desse ogro.
Uma mão grande segura meu braço, fazendo-me parar. Estremeço com o toque.
— Solte-me! — Mando, tentando parecer durona enquanto puxo o meu braço.
— Desculpe — ele diz, surpreendentemente. Vejo suas mãos em punhos, parecendo que está controlando a raiva. — Quer jantar?
Estreito os olhos.
— O ogro está me convidando para um jantar? — O provoco, não consigo evitar o sorriso à medida que o rosto dele vai ficando mais vermelho. — Uau, é para se redimir pela falta de educação?
— Ah, esquece! — Ele me dá as costas.
Antes que ele desça da calçada, seguro seu terno. Ele para e me fita.
— O que você quer, pirralha?
Minha barriga responde alto, abaixo a minha cabeça e engulo seco. Estou há mais de 24 horas sem comer, isso dói.
Um vento frio sopra fazendo-me abraçar o meu próprio corpo.
— Quê? — Sussurro, piscando várias vezes, ao sentir seu terno sobre meus ombros. Olho-o com admiração, mas ele evita meu olhar.
— O que você quer? — Ele repete, agora me fitando, por alguns instantes me perco no mar gélido de seus olhos.
— Eu... aceito o convite para jantar — digo baixinho, engolindo meu orgulho.
Laura Martins:— É feio encarar as pessoas comendo — falo incomodada, observando-o de soslaio. Não sei bem se ele realmente está me encarado, os olhos dele parecem vagos, mas o simples fato de estarem na minha direção já me perturba.— Não estava te encarando — ele diz, e se ajeita na cadeira. — Coma logo, quero ir embora — resmunga, cruzando os braços.— A porta da rua é serventia da casa — debocho, levando outra garfada de macarrão à boca, nossa! Que sabor divino, o macarrão está tão delicioso, poderia repetir o prato várias vezes.— Está me colocando para fora, de um restaurante que nem seu é? — O ogro pergunta, uma sobrancelha arqueada.— Você quer sair, eu apenas disse para que serve a porta, uai — retruco, achando divertidas as reações dele. — Você já pagou pelo macarrão, não precisa ficar aqui comigo, posso muito bem comer sozinha, não preciso que seja a minha babá.— Você é muito mal agradecida, garota — contra argumenta, dou de ombros.Foco em terminar a refeição. Mas, ao bebe
Laura Martins:— Ei! — Puxa-me para trás, fecho os olhos, sinto todo o meu corpo tremer. — Por que está me ignorando? — Reconhecer a voz do agro, respiro aliviada.— Por que ainda está aqui? — Ignoro a sua pergunta.— Vem — ele começa a me arrastar, mas não deixo, puxo a minha mão para longe da dele.— O que acha que está fazendo? — Pergunto, a chuva começa a ficar mais forte.— Vou te levar para um lugar seguro, vamos, a chuva já está piorando.— Eu não vou para a sua casa! — Exclamo, só Deus sabe o que esse ogro tem na mente.— Nunca te levaria para lá — ele responde olhando-me com... nojo? — Conheço uma pousada aqui perto.— Como pode ver, não tenho dinheiro para pagar...— Eu vou pagar, não posso te deixar na chuva.Paraliso, me surpreendendo pela terceira vez com esse cara. Eu estou cansada, andei o dia todo hoje, e as sapatilhas criando calos nos meus dedos e calcanhares não ajudam muito. Só quero conseguir dormir.— Vem logo! — Ele me tira do estopim da minha mente, entramos em
7 meses depois.Laura Martins:Batidas fortes na porta me despertam de um sono agitado, desencadeando uma dor latejante na minha têmpora, lembrando-me da queda que sofri anteontem na empresa quando desmaiei e bati a cabeça na privada, acordei só no dia seguinte. A luz do sol entrando pelas frestas das da janela de madeira faz meus olhos arderem.— Já vai! — Tento gritar, mas minha voz sai fraca, um mero sussurro.As batidas continuam, mais urgentes. Respiro fundo, tentando dissipar a dor, e me levanto cambaleando. O quarto gira por um momento, mas me estabilizo, apoiando-me na parede enquanto caminho até a porta. O eco das batidas se mistura com o zumbido na minha cabeça.— Quem é? — Minha voz sai rouca, quase inaudível, enquanto destranco a porta.— Senhorita Martins? — Uma voz feminina responde.Abro a porta lentamente, revelando uma mulher jovem e elegante. Ela é alta e magra, vestindo um terno perfeitamente ajustado. Seus olhos me observam com intensidade, e um leve sorriso curva s
Fernando Duarte:No meu relógio marca 19 horas e 30 minutos, e a minha paciência diminui a cada segundo. Se essa mulher se atrasar um minuto sequer, estou fora. Eu nem queria está aqui para começo de conversar, só estou aqui porque a minha mãe ameaçou colocar fogo em sua própria casa.Impaciente, dedilho a mesa, viro o rosto para a janela e começo a observar os carros passando apressados pela frente do restaurante escolhido por minha mãe.Só mais trinta segundos...— Senhor Duarte? — Ouça a voz da recepcionista, se ela está aqui só pode significar uma coisa.Merda!Respiro fundo e controlo a raiva, só faltavam trinta segundos para que eu pudesse estar livre e usar a desculpa de que a tal mulher não apareceu me deixando no vácuo.Desvio minha atenção dos carros e olho para a moça que me chama. De baixo pra cima, observo a mulher que está ao lado da recepcionista.Dentro de um vestido tubinho de cor preta, os meus olhos percorrem o seu corpo, observando as curvas suaves e delicadas marca
Fernando Duarte:O momento presente se dissolve, e minha mente é abruptamente arrastada de volta àquela noite fatídica. o barulho ensurdecedor, repentino e violento de uma batida, seguido pelo estrondo assustador de uma explosão atrás do meu carro.O mundo ao meu redor transformou-se num caos vivo: os olhos verdes desesperados, os gritos dilacerantes por socorro perfurando a noite, misturados ao som das sirenes sendo abafadas pelo zumbido em meu ouvido. Lágrimas mesclam-se ao sangue que tingia toda a minha visão de um vermelho profundo e sombrio.O horror da imagem tingida de vermelho me dá náuseas — membros perdidos, um braço aqui, pernas ali, espalhado pelo interior do carro, o forte cheiro do sangue...Enquanto o passado me consome, uma gota de suor frio traça um caminho pela minha testa. O descompasso de meu coração martela contra meu peito, enquanto minhas vistas se embaçam com a iminência de mais um colapso emocional. Lágrimas, antes contidas, agora fluem livremente, embaçando mi
Fernando Duarte:Após deixar o restaurante, dirijo com pressa tendo o caminho iluminado pelas luzes amarelas dos portes. Seguro tão firme o volante do carro, sentindo o metal gelado contra a palma da minha mão, que sinto as falanges dos meus dedos doerem e as veias do dorso das minhas mãos saltarem.De onde a minha mãe conhece Laura? E por que diabos a minha mãe achou que seria uma boa ideia arranjar um encontro com essa pirralha irritante?A frustração e a raiva se acumulam dentro de mim. Com fúria, desfiro um golpe no volante.— Porra! Por que tinha que ser logo ela? Ela era a última pessoa que eu queria encontrar — grito exasperado dentro do carro.Os faróis dos outros carros se misturam em um borrão de luzes, espelhando meu estado de espírito tumultuado. Minha respiração está tensa, e os pensamentos sobre Laura, sobre o meu passado, giram furiosamente na minha mente.Ao estacionar em frente à casa da minha mãe, respiro fundo, saio do carro e aperto a campainha. Ana, o braço direto
Laura Martins:Pago a passagem e me sento no banco mais alto. O ônibus começa a se mover, e apoio meu cotovelo na janela, repousando o queixo na palma da mão. Observo as luzes urbanas se desdobrarem à medida que o ônibus segue para a estação. Minha mente volta ao restaurante, lembrando os olhos do senhor Duarte, antes gélidos, agora cheios de terror e desespero. O que o teria deixado assim?Para! Já tenho problemas demais para me preocupar com os dos outros.Busco refúgio nos meus fones de ouvido e seleciono a música "Dias Melhores" do Jota Quest. Deixo-me levar pela melodia enquanto olho as ruas movimentadas."🎶 Vivemos esperando dias melhores.Dias de paz, dias a mais,dias que não deixaremos para trás.Oh oh, vivemos esperando o dia que seremos melhores,melhores no amor, melhores na dor, melhores em tudo... 🎶"Cantarolo baixinho, meus olhos se enchem de lágrimas, mas pisco para afastá-las. Sou egoísta demais, pensando em tudo o que ele já fez por mim. Ninguém nunca fez o que ele
Laura Martins:"Ele sempre teve uma boca tão bonita assim?" —Me questiono internamente, mordo o meu lábio inferior. Será que são macios? Quentes? A língua... será que... de repente e bruscamente, como se tivesse uma doença altamente contagiosa, ele me solta e se afasta. Cambaleio um pouco antes de retornar ao equilíbrio. Uma pontada de vergonha toma conta de mim, me atingindo como um soco no estômago, a minha mente martela com a possibilidade de que ele percebeu que, por um breve momento, eu talvez quisesse beijá-lo. Rezo em silêncio para que ele não tenha notado as minhas intenções nesse pequeno instante que encarei a boca dele.O som de um pigarro seco escapa da minha garganta enquanto tento esconder o meu constrangimento.Sinto um calor subir pelas minhas bochechas, o conflito interno entre raiva e atração deixando-me confusa.— Eu... eu não preciso da sua ajuda — sussurro, minha voz traindo a determinação que tento manter.— Por que você sempre tem que complicar tudo? — ele questio