Capítulo 4

Ana mordeu o lábio inferior para não gemer de dor à medida que o medidor de pressão apertava o seu braço gordo. Ela começou a sentir um alívio momentâneo quando o médico parou de apertar, porém, ele voltou a apertar, para em seguida, tirar o estetoscópio dos ouvidos e pendurar no pescoço.

- Está sentindo alguma coisa?

Ana massageou o braço dolorido.

- Tontura. Está muito alta?

- Está 16x10.

- Nossa Deus!

Gabriel voltou a sentar, pegou uma folha de sulfite e dobrou ao meio, no tamanho que cabia no envelope pardo de cada paciente. Ele estava usando o computador só para as receitas e pedidos de exames. No mais, preferia conversar com os pacientes e anotar tudo à mão.

Por alguns segundos, ele se perdeu na beleza natural de Ana, e teve que fazer um esforço para se lembrar que ali, eram médico e paciente.

- A sua ficha está em branco. É a sua primeira vez aqui?

Ana assentiu, não deixando de notar que Gabriel era muito novo para ser médico. Provavelmente, ele era um residente.

- Eu vim de Minas Gerais há seis meses, e ainda não tinha passado por consulta aqui no postinho. Mas agora eu tenho me sentido muito cansada nos mínimos esforços.

- Você já faz uso de medicamentos para hipertensão?

- Losartana de 50mg cedo e à noite, e uma Furosemida de 40mg de manhã.

Gabriel anotou. A letra dele era linda e Ana olhou para seus cabelos castanhos escuros. Ele tinha mãos grandes e dedos longos e fortes. Ela revirou os olhos enquanto ele fazia anotações.

- Já tomou os remédios hoje?

- Sim, às 06:30h. Mas eu acho que não estão fazendo efeito.

Gabriel ergueu a cabeça e encarou Ana. Ele disse com gentileza, de forma a não parecer grosseiro.

- Alimentos ricos em gordura e açúcar, como salsichas, enlatados, pães, bolos, massas em geral, fast food, refrigerante e outras coisas, contribuem para o excesso de peso que trazem várias complicações para a saúde. - Gabriel olhou na ficha. Ana tinha sido pesada na triagem. - Cento e vinte quilos. A quantidade de sódio nesses alimentos, também causa hipertensão. Ketchup é um veneno.

Ana ficou boquiaberta. Era como se Gabriel soubesse que ela só comia porcarias com muito Ketchup. A forma tranquila como ele disse as palavras, não a ofendeu. Ele não a repreendeu, apenas disse o óbvio com um sorriso de encorajamento para ela mudar os péssimos hábitos alimentares.

Ana abriu um sorriso tímido.

- Eu tenho retenção de urina também.

- Eu vi os seus pés inchados, e eu vou pedir alguns exames de sangue para vermos como estão seus rins, fígado, tireoide, hormônios, glicemia, colesterol, hemograma e as vitaminas. Eu vou pedir um eletrocardiograma também.

Ana assentiu. Ela realmente estava precisando de um check-up. Gabriel começou a digitar no teclado com os olhos fixos na tela do computador. Ela colocou as mãos em concha no colo e olhou para baixo enquanto esperava.

Era no mínimo curioso um playboy igual ao Doutor Gabriel, atender no posto de saúde da favela. Era notável que ele estava no início da carreira por ter uma aparência jovem, mas não parecia que ele precisasse trabalhar em um local com poucos recursos.

Ele podia ter seu próprio consultório médico. Atencioso e inteligente, ele poderia ganhar muito mais tendo sua própria clínica particular.

- Os exames são todos feitos pelo SUS, mas o tempo de espera é de três meses. Se for possível, eu gostaria que você os fizesse o quanto antes.

Ana ergueu a cabeça e encontrou um par de olhos gentis. Ela forçou um sorriso fraco.

- Eu vou tentar fazer no particular.

Ele sorriu satisfeito.

- Eu vou colocar um captopril de 25 debaixo da sua língua para essa pressão baixar. Você vai esperar por quarenta minutos na sala de espera para mim medir de novo.

Aflita, Ana passou a língua pelos lábios carnudos.

- Eu tenho que trabalhar na parte da tarde.

Gabriel se perguntou que gosto teria os lábios daquela mulher que não fazia ideia da sua beleza estonteante. Ele passou a língua pelos próprios lábios, e sua voz saiu áspera.

- Eu vou te dar um atestado de quinze dias. Você vai vir medir a pressão três vezes por semana. Você é muito nova para mim acrescentar mais um remédio. Caso ela passe disso, não terá outro jeito. Mas eu quero ver seus exames primeiro.

- Eu não posso deixar a minha patroa na mão.

- Em Janeiro o movimento é fraco nos restaurantes de São Paulo. O povo está tudo viajando.

Ana estremeceu com o olhar firme que recebeu. Ele se lembrava dela.

Hesitante, ela perguntou:

- Aquele homem era o seu pai?

Gabriel pegou a cartela de captopril enquanto as folhas com o pedido dos exames saíam na impressora. Ele se levantou e se aproximou de Ana. Ela olhou para cima. Ele pediu sério:

- Abre a boca.

Ana obedeceu. Gabriel tocou os lábios dela com o polegar e afastou a mão.

- Era o meu pai.

- Meus sentimentos.

Todos os pedidos de exames foram carimbados e assinados. Assim como a receita renovada.

- Obrigado. Nos vemos em quarenta minutos. Aqui os pedidos dos exames. Nesse meio tempo, prefira alimentos saudáveis e faça caminhadas.

Ana pegou os papéis e saiu da sala. Quarenta minutos depois, sua pressão estava 12x8. A tontura passou assim como a dor na nuca. Enquanto esperava, ela percebeu que todos os outros pacientes, saíam animados da sala de Gabriel.

Ele pareceu muito feliz pela pressão dela ter abaixado. Ana voltou para casa mais aliviada e iria usar o resto do décimo terceiro para fazer os exames. Era tolice dela ter um crush no seu médico gato e gostoso, mas mal podia esperar para vê-lo de novo.

Gabriel respirou fundo ao final do primeiro dia de trabalho puxado. No horário do almoço ele recebeu a notícia que um carregamento de cocaína estava a caminho da favela. Ele tinha que preparar a contenção para o caso da polícia resolver interferir nos seus negócios.

Na casa usada para as reuniões dos membros da facção, ele torceu o nariz diante dos moleques que seu pai usava como fogueteiros. O olheiro do seu pai também não o agradava, sempre com os olhos arregalados de quem estava chapado.

- É o seguinte, eu preciso de um novo exército. Eu vou fazer mudanças no grupo, mas hoje nós vamos receber o carregamento e preparar a cocaína em pinos para vender. Vai ser trabalho para a noite toda, e eu não quero ver corpo mole, desperdício e nem furtos.

Gabriel não foi questionado por nenhum dos trinta e cinco membros atuantes da quadrilha. Ele já estava acostumado a dar ordens claras e ser obedecido. E todos ali sabiam que ele não hesitava em puxar o gatilho caso alguém mijasse no lugar errado.

No alto da laje vendo o sol se pôr no morro, Gabriel fez uma ligação para o advogado da família. Ele precisava tirar da cadeia alguém em que pudesse confiar quando os surtos psicóticos o deixassem sem condições de comandar Paraisópolis.

Kelly destampou as panelas e colocou a mão na testa negra de Ana para ver se ela estava com febre.

- Cadê a costela de porco pingando gordura?

Ana saboreou o filé de peito de frango.

- Eu fui no médico hoje, e eu vou mudar a minha alimentação. Eu não tenho ninguém e não posso correr o risco de ficar presa a uma cama.

- Não tem ninguém teu cu. Eu estou aqui, prima. Mas fico feliz por você estar pensando na sua saúde.

Kelly se serviu e sentou na mesa de canto perto do fogão. Ela deu um sorriso sacana.

- Ouvi dizer que o novo médico é um espetáculo.

Ana suspirou profundamente.

- Ele é muito educado.

Kelly fez uma careta com a comida sem sal, mas não disse nada. Amava Ana como se elas fossem irmãs.

- Ele pediu exames?

- Um monte.

- Tranquila, eu te ajudo.

- Eu não posso aceitar.

Kelly revirou os olhos negros.

- Você tem que parar com isso, Ana. Uma mão lava a outra.

Ana sorriu. Ela tinha uma dificuldade imensa em pedir ou aceitar ajuda por vergonha. Não era orgulho, era medo de ser vista como alguém incapaz de cuidar de si mesma. Por isso, ela iria de verdade mudar alguns hábitos. Helena resmungou, mas depois, disse para ela cuidar da saúde e voltar logo para o restaurante.

Era madrugada quando os latidos de Max encheram a mansão de luxo no Morumbi. Gabriel abaixou para ganhar várias lambidas no rosto. Ele abraçou e beijou o rottweiler que balançava o rabo freneticamente.

Vanessa amarrou o robe de seda azul e cruzou os braços. No alto da escada em formato de caracol, ela tinha um olhar de desaprovação.

- Paraisópolis? É sério isso, Gabriel?

Gabriel continuou abaixado e fazendo carinho em Max. Ao olhar para a mãe com frieza, sua decisão já tinha sido tomada.

- Eu só vim pegar o Max e as minhas coisas. Eu estou indo morar na favela, mãe. Como você está sempre viajando por causa dos hotéis, não vai notar a minha falta.

Vanessa crispou os lábios de ódio.

- Você acha que eu sou idiota? Que eu não sei quem você é, e o que faz naquele lugar abominável?

Gabriel levantou com Max pulando nele e pedindo mais atenção. Devagar, ele subiu a escada até parar de frente para a mãe. Sua voz saiu melancólica, sem nenhuma emoção.

- Eu sempre serei o seu filho.

Vanessa lacrimejou e levou as mãos no rosto do filho.

- Por favor, não faça isso. Você tem um futuro brilhante pela frente, Gabriel. Eu posso te dar um consultório médico montado e sofisticado. Esqueça aquele lugar.

Gabriel pegou a mãe pelos pulsos e a afastou.

- Lá, eu me sinto mais em casa do que aqui.

Vanessa secou as lágrimas com raiva.

- Você vai acabar morto ou na cadeia!

Gabriel esperou Max entrar e bateu a porta do seu quarto. Ele começou a fazer as malas. Nada mais importava, somente Ana. Ela silenciava a sua mente barulhenta. Somente ela.

O cheiro forte de enxofre impregnou o ar.

"Ela não é a sua salvação. Você será a ruína daquele anjo."

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