Capítulo 6

Gabriel começou a atender às 07:30h em ponto. A recepção estava lotada, mas ele não teve pressa para ouvir as queixas dos pacientes, examina-los, solicitar exames e prescrever remédios para os casos mais simples que não precisavam de uma investigação mais profunda.

Uma cheirada de pó na madrugada o deixou em estado de alerta, ao mesmo tempo que ouvia gritos tenebrosos e via vultos rastejando no consultório. Para ele, o inferno existia e o mundo espiritual era uma realidade paralela ao seu mundo real.

Gabriel pegou a receita de Betaistina de 24mg que saiu na impressora, carimbou, assinou e entregou para o último paciente da parte da manhã.

- Aqui, seu João. Se não parar de beber, essa labirintite não vai melhorar.

O senhor negro pegou a receita com as mãos trêmulas pela abstinência.

- Eu bebo pra esquecer os problemas.

- Sua saúde está muito deteriorada. Se não parar de beber, em poucos meses, essa cirrose vai virar câncer, e a sua preocupação não será com o próximo gole, e sim, em conseguir um leito para fazer quimioterapia.

Seu João arregalou os olhos negros e negou com a cabeça. Ele fez o sinal da cruz e bateu três vezes na mesa de tampo de madeira.

- Eu nunca mais vou colocar uma gota de álcool na boca. Eu juro, doutor.

Gabriel duvidou e se preparou para ir almoçar. Era melhor para Ana que ela estivesse lá. Na presença dela, o inferno não tinha poder sobre ele. Ela era a luz que iluminaria suas trevas.

Kelly tomava café da manhã e ouvia a prima contar da visita inesperada de Gabriel, assim como da sua proposta irrecusável.

- Você está temerosa à toa, Ana. Ele é o médico de Paraisópolis, ganha muito bem pra te pagar isso, e todo mundo só diz coisas boas sobre ele. Depois de ontem, muitas mulheres vão inventar doenças só para vê-lo.

Ana olhou para a chave sobre a mesa.

- Ele nem me perguntou se eu sabia cozinhar.

- Com todo respeito, mas mulheres gordinhas são cozinheiras de mão cheia. Só coloca um pouco de sal na comida dele.

Ana ainda estava relutante. Foi tudo muito rápido e estranho. Kelly notou a indecisão da prima e colocou a mão no ombro dela.

- Você tem que parar de racionalizar tudo. Vai lá, faz a comida dele, lava a louça e pronto. Você não quer comprar coisas para você? Roupas? Sapatos?

Ana sorriu e assentiu.

- Eu quero.

- Então! Você não estaria mais segura do que trabalhando para um doutor!

Por fim, Ana tomou banho, deixou o cabelo secar sozinho, colocou camiseta rosa e uma bermuda jeans preta. Ela calçou havaianas branca e foi para casa de Gabriel. Não era longe, mas ela nunca tinha visto ele ou o pai por ali. Se bem que ela saía cedo e chegava de noite.

Ao abrir a porta, Ana levou uma mão no peito e a outra na boca para sufocar um grito histérico. Curioso, Max pulou do sofá e foi cheirar a intrusa.

Ana ficou imóvel durante a avaliação minuciosa, até ter coragem de tirar a chave da fechadura e dizer sorrindo:

- Eu tenho a chave. Eu vim fazer o almoço do seu pai.

O cachorro enorme de pelo preto e marrom, sentou comportado. Ana fechou a porta com o coração batendo na garganta. Todas as portas estavam fechadas e ela achou a cozinha com o rottweiler a seguindo de perto. Ela não sabia o que o falecido pai de Gabriel fazia para viver, mas ele tinha grana.

A geladeira e a dispensa estavam bem abastecidas, e Ana optou por fazer arroz, feijão, bife, batata frita e salada. Max colocou as patas na bancada da pia. Com água e ração no canto da sala, Ana não sabia se ele podia comer carne crua. Como o cachorro latiu para ela, ele ganhou um pedaço de contra filé e ficou satisfeito.

- Você não é imprevisível, é?

O cachorro deu uma revirada de olhos. Ana riu. Ela tinha um caramelo quando morava em Minas Gerais, mas ele saiu de casa e nunca mais voltou. Aquilo a deixou arrasada. Ela procurou por ele, mas não o encontrou.

Gabriel sentiu o cheiro delicioso de bife acebolado ao usar a chave cópia para entrar em casa. As vozes silenciaram e os espíritos malignos desapareceram.

Ele sorriu em paz ao entrar na cozinha. Deitado aos pés de Ana que fazia suco de laranja, Max cochilava. Cachorro traidor.

- Você veio. Isso me deixou muito feliz.

Ana abriu um sorriso tímido. Gabriel tinha o poder de deixá-la ainda mais retraída com aquele olhar penetrante de quem sabia um grande segredo. Ele lembrava alguém que parecia ter vivido mil vidas e conhecido muitos lugares.

- Eu não sabia o que o senhor...

- Senhor? - Gabriel se aproximou com um olhar meigo. - Por favor, não me ofenda me chamando de senhor. Eu sou apenas o Gabriel.

Ana sentiu o suor escorrendo na nuca com a proximidade do médico atraente.

- Eu não quis ofende-lo. Por causa da sua profissão, eu acho melhor chamá-lo de senhor.

- Apenas Gabriel, por favor. O cheiro está muito bom e eu estou cheio de fome.

Aquele cheio de fome soou de uma forma fodidamente sexy, e Ana abriu e fechou a boca várias vezes antes de dizer sem jeito:

- Eu não sabia o que você iria querer comer e fiz arroz, feijão, bife, batata frita e salada.

Seus olhos se encontraram.

- O que você me der, eu como.

Ana ficou perdida naqueles lindos olhos escuros.

- Vai lavar as mãos, Gabriel. Eu vou servir o almoço.

- Sim, senhora.

Gabriel foi para o quarto cantando em voz alta:

Te chamei pra vim pra minha base

O bagulho vai ser de verdade

Nós vai foder no modo hard

Bota tudo, bota tudo, bota com vontade

Na brisa, sem fazer alarde

Tropa do Bruxo só tem menino selvagem

Que te fode forte e sem massagem

Foda que elas gosta que nós não tem piedade

(Baile do Bruxo, Tropa do Bruxo)

Na cozinha, Ana sentiu a calcinha ficar molhada. No quarto, Gabriel recebeu uma ligação indesejada. Ele tinha que cometer seu primeiro assassinato como dono do morro para ser batizado. E na vez dele, um policial federal era o próximo na lista negra do PCC.

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