Ana não conseguiu sair do lugar nem mesmo com toda confusão que tomou conta do restaurante. Helena e todos os funcionários entraram em pânico. Uma ambulância do SAMU foi chamada. O homem continuava no chão se contorcendo como se estivesse tendo uma convulsão, e o cara do lado dele, segurava sua cabeça raspada para evitar que ele se machucasse.
Seus olhares se encontraram mais uma vez e um tremor percorreu o corpo de Ana. Ela ficou presa naqueles olhos escuros e sombrios. Suas pernas pareciam pesar mais de duzentos quilos cada uma, e ela ficou onde estava. A ambulância não demorou a chegar e o homem foi colocado na maca. Gabriel entregou a chave da Hilux SW4 preta cabine dupla para André, e foi na ambulância com o pai. No trajeto para o hospital, ele deixou o paramédico fazer a massagem cardíaca no pai, e mandou uma mensagem para um dos soldados. Ana aceitou o copo de água que Felipe deu para ela. Helena fechou as portas do restaurante e passou a mão trêmula na cabeça branca. - Parecia que ele estava envenenado. Felipe discordou recolhendo os pratos. - Não foi aqui. A comida estava fresca e as bebidas lacradas. Helena estava preocupada. - Puta merda! Será que vai ter polícia? Ana colocou a mão no ombro direito da patroa. - Não se preocupe com isso. - Como não, criatura?! Se o homem morre por envenenamento, eu vou ser alvo de uma investigação! Você viu?! Eles têm dinheiro para fechar o restaurante! Pensativa, Ana disse: - Ele é grande e saudável. Talvez, ele sobreviva. - Tomara. - Aflita, Helena massageou o peito. - Vamos limpar tudo e desculpa por não desejar feliz ano novo. Ana voltou ao trabalho com o coração aos pulos. Gabriel recebeu a notícia da morte do pai com profundo pesar e foi consolado pelos amigos. O médico do plantão disse cansado: - O corpo será encaminhado para o Instituto Médico Legal. À primeira vista, parece envenenamento. Mas vamos esperar o laudo do legista. Gabriel fungou o nariz. - Meu pai fazia uso de ostarina e não podia misturar com álcool. Foi uma overdose. Mas vamos esperar o laudo do IML. - Seu pai tinha inimigos? "Só você." - Não, ele era muito querido. - Meus sentimentos. - Obrigado. Em Fernando de Noronha, Vanessa bebeu um gole de champanhe após receber a ligação do filho. Sua amiga e sócia, Paloma, perguntou preocupada: - O que aconteceu? - O cretino do pai do meu filho escolheu logo hoje para morrer. Eu tenho que voltar para São Paulo para ficar com o Gabriel. A festa de réveillon foi interrompida em Paraisópolis após a morte repentina de Pedro. Com alguns desafetos na comunidade, o nome de um novo dono da favela começou a ser cogitado. Não era uma escolha muito difícil para Patric Velinton Salomão, o Forjado. Gabriel apertou a gravata preta no colarinho branco e olhou no espelho do banheiro. Atrás dele, o vulto. - Você se saiu muito bem. O atestado de óbito consta como causa da morte parada cardiorespiratória por uso de anabolizantes e álcool. - Eu não quero te ver nunca mais. - Impossível. Eu sou a sua consciência. Essa bola de fogo incandescente que você vê na minha cabeça, são os seus pensamentos. Você me vê porque eu sou a projeção do que você deseja. Eu sou o seu conselheiro. Ele precisava morrer para você assumir o poder. Gabriel se virou de frente para o vulto. - Você tem um nome? - Eu tenho muitos nomes. Você pode me chamar do que quiser. - Eu não preciso de você. - Você precisava de um empurrão e me invocou quando mergulhou na escuridão. Quando conhecer a luz, não me verá mais. Só que isso não vai acontecer. Você pertence as trevas. Gabriel sorriu com desdém. - Acha que eu não posso controlar as trevas em que habito? A gargalhada do vulto ecoou pelas paredes do banheiro. - Não sou eu quem estou indo para o enterro do meu próprio pai. - A risada desapareceu. - Eu sou a sombra da sua escuridão. Mate a garota que viu o seu sorriso. A consciência dela pode pesar, e ela pode abrir a boca. Você não quer uma exumação. Gabriel voltou a ficar de frente para o espelho. - Por que você não a aterroriza? - Porque ela tem uma áurea de pureza e inocência que é inacessível para mim. - Eu vou resolver isso do meu jeito. - Aguardo a consumação. Sozinho, Gabriel apoiou as mãos na pia de mármore branco. Em menos de vinte e quatro horas, ele tinha toda a vida de Ana Luísa em suas mãos. O celular tocou. Gabriel atendeu o número desconhecido. - Alô. - Você será nomeado amanhã e vai ter que provar o seu valor. A ligação foi encerrada. Com um lindo sorriso diabólico, Gabriel seguiu para o enterro do pai no Cemitério da Paz. Ana seguiu sua rotina normalmente após ficar sabendo que o homem tinha morrido por overdose. Ela não pensou mais no acontecido. Contudo, aquele olhar penetrante habitava todos os seus pensamentos. Finalmente, tinha chegado o dia da consulta no posto de saúde, e ela sabia que estava com a pressão nas alturas. Após um banho caprichado, Ana vestiu camiseta branca, calça jeans preta, rasteirinha, pegou o cartão do SUS e saiu de casa. Como era de se esperar, o posto que ficava no alto da favela, estava lotado. Ana fez a ficha e aguardou a sua vez. Após uma rápida reunião com as duas enfermeiras, e as moças que trabalhavam no postinho, Gabriel foi para a sua sala que ficava ao lado da sala de curativos. Do outro lado, ficava a sala de vacina. O posto tinha passado por uma reforma e as novas instalações ficavam ao lado de uma creche. As paredes estavam pintadas de branco e o chão era de piso bege. A recepção ficava ao lado da entrada com a ampla sala de espera. Gabriel vestia o seu jaleco branco por cima da camiseta da mesma cor, calça jeans claro e adidas branco. Seu horário de trabalho seria de segunda à sexta-feira das 07:30h às 15:00h. Ele teria uma hora e meia de almoço, tempo suficiente para administrar as bocas de fumo. Estava perto das dez horas quando chegou a vez dela. Gabriel chamou de dentro do consultório pequeno, porém, confortável com mesa, cadeira, cama hospitalar, pia e uma janela de vidro que dava vista para a favela. - Ana Luísa Silva. Ana levantou e foi para o consultório médico. Ao abrir a porta, ela pensou que teria um infarto fulminante. Ele apontou para a cadeira e sorriu com dentes brancos, alinhados e perfeitos. - Feche a porta e sente-se. Ana obedeceu só para não desmaiar de pé. Ela leu o nome do médico que estava bordado em letras pequenas na cor azul marinho no seu jaleco branco, junto com o CRM. - Em que posso ajudá-la? O que você tem sentido? Ana ficou ainda mais surpresa por ele fingir não conhecê-la. - Eu tenho pressão alta. - Ok. Vamos cuidar disso. Gabriel levantou, pegou o aparelho de pressão, o estetoscópio e contornou a mesa. Ana esticou o braço esquerdo e arfou com a proximidade. Um cheiro suave de amaciante a fez fechar os olhos. Gabriel respirou fundo. Pela primeira vez em muito tempo, ele não sentiu o cheiro forte de enxofre.Ana mordeu o lábio inferior para não gemer de dor à medida que o medidor de pressão apertava o seu braço gordo. Ela começou a sentir um alívio momentâneo quando o médico parou de apertar, porém, ele voltou a apertar, para em seguida, tirar o estetoscópio dos ouvidos e pendurar no pescoço.- Está sentindo alguma coisa?Ana massageou o braço dolorido.- Tontura. Está muito alta?- Está 16x10.- Nossa Deus!Gabriel voltou a sentar, pegou uma folha de sulfite e dobrou ao meio, no tamanho que cabia no envelope pardo de cada paciente. Ele estava usando o computador só para as receitas e pedidos de exames. No mais, preferia conversar com os pacientes e anotar tudo à mão.Por alguns segundos, ele se perdeu na beleza natural de Ana, e teve que fazer um esforço para se lembrar que ali, eram médico e paciente.- A sua ficha está em branco. É a sua primeira vez aqui?Ana assentiu, não deixando de notar que Gabriel era muito novo para ser médico. Provavelmente, ele era um residente. - Eu vim de M
De volta à Paraisópolis, Gabriel tomou posse da casa que era do pai. Era um imóvel simples e discreto visto por fora, como a maioria das casas feitas de tijolo e coberta com telha eternit. No entanto, por dentro, a casa de três quartos, sala, cozinha, banheiro, área de serviço e garagem, estava equipada com móveis planejados, utensílios de cozinha Arno, geladeira inox duplex Brastemp, assim como o fogão Cooktop e o microondas cinza da mesma marca. Todos os quartos tinham cama box de casal e home theater. Na sala, uma tv led de alta definição, ocupava toda uma parede de frente para o sofá de couro preto. A área de serviço também era funcional com tanque, máquina de lavar, secar, churrasqueira e um terraço com vista panorâmica de Paraisópolis.Na casa espaçosa também tinha vários notebooks Apple com as imagens das câmeras de segurança e informações sobre o tráfico de drogas, como os nomes dos fornecedores, quem estava na lista negra, membros da facção presos e a hierarquia de comando d
Gabriel começou a atender às 07:30h em ponto. A recepção estava lotada, mas ele não teve pressa para ouvir as queixas dos pacientes, examina-los, solicitar exames e prescrever remédios para os casos mais simples que não precisavam de uma investigação mais profunda.Uma cheirada de pó na madrugada o deixou em estado de alerta, ao mesmo tempo que ouvia gritos tenebrosos e via vultos rastejando no consultório. Para ele, o inferno existia e o mundo espiritual era uma realidade paralela ao seu mundo real. Gabriel pegou a receita de Betaistina de 24mg que saiu na impressora, carimbou, assinou e entregou para o último paciente da parte da manhã.- Aqui, seu João. Se não parar de beber, essa labirintite não vai melhorar.O senhor negro pegou a receita com as mãos trêmulas pela abstinência.- Eu bebo pra esquecer os problemas.- Sua saúde está muito deteriorada. Se não parar de beber, em poucos meses, essa cirrose vai virar câncer, e a sua preocupação não será com o próximo gole, e sim, em c
Ana serviu o almoço saindo fumaça e colocou a jarra de vidro com o suco de laranja gelado no centro da mesa oval. Ela quase foi de arrasta pra cima ao ver Gabriel entrar na cozinha só com a calça jeans branca, e a borda preta da cueca Calvin Klein aparecendo. Seu corpo lindo e perfeito, era coberto por várias tatuagens. Gabriel pegou um frasco de vitamina no armário, e Ana arregalou os olhos com a caveira que cobria suas costas largas. Era sinistra.Abaixo do seu olho esquerdo estava escrito a palavra Chaos. Traduzida para o português Caos. Que significa o Deus Primordial Do Universo. Ele foi até ela depois de colocar o frasco na mesa e estendeu um bolo de notas de cinquenta reais.- Aqui tem mil reais. Você tem duas semanas de atestado, e vai cozinhar pra mim. Eu fiz mercado ontem, e você pode fazer o que sabe.Ana olhou para o dinheiro, para o corpo de Gabriel, e mordeu o lábio inferior antes de erguer a cabeça e olhar nos olhos dele.- Por que você sorriu quando o seu pai passou
Ana levou um tempo para assimilar tudo o que tinha acontecido. Seu primeiro beijo não foi com seu médico bonito e gostoso, e sim, com o dono da favela de Paraisópolis. Era realmente inacreditável como Gabriel conseguia ser um profissional atencioso e prestativo, e um traficante frio e calculista. Eram dois extremos que somente uma mente brilhante, ou doentia, poderia colocar em prática.De qualquer forma, Ana decidiu que não iria mais cozinhar para Gabriel. Ela queria distância dele. Por isso, ela terminou de limpar a cozinha, fez um carinho em Max que dormia no sofá, deixou o dinheiro em cima da mesa da sala e voltou para casa. Como trabalhava à noite, cuidando de idosos acamados, Kelly dormia quando Ana chegou. Suada, ela pegou a toalha e foi tomar um banho gelado por causa do calor infernal, e das fortes emoções que a atormentavam. Ana fechou os olhos debaixo da ducha e se permitiu relaxar. Ela tinha dinheiro para fazer os exames, mas os levaria para outro médico. Nunca mais ela
Gabriel colocou Max na coleira e saiu de casa. De capuz branco, sem camisa, calça jeans preta e Adidas branco, o dono do morro foi para a casa usada para o setor financeiro, onde era feito os recebimentos e pagamentos. Com uma população de cem mil habitantes, Paraisópolis e região, dava uma renda semanal de três milhões de reais entre a venda de maconha, cocaína, crack, cigarro e álcool. Os dois últimos, de cargas roubadas. Havia pontos de venda de drogas no Morumbi, Cidade Dutra, Cidade Jardim, Vila Andrade e Itaim Bibi.Gabriel não era só o dono do morro de Paraisópolis, ele também tinha o controle armado dos pontos de venda de drogas, as chamadas bocas de fumo, como também dos territórios que cercavam a favela. Dono absoluto da comunidade, ele manda e desmanda na vida social dos moradores, se impõe como juiz dos desenrolos, interfere nas associações e escolhe candidatos para os quadros administrativos.O traficante iria seguir os passos do pai. Importar drogas e armas do exterior e
Ana colocou o despertador do iPhone para tocar às 06:00h. Após o banho, ela colocou camiseta branca, calça jeans claro, meias e um Nike branco. Como Gabriel tinha acertado o tamanho de tudo, inclusive das lingeries sensuais, era um mistério. Pelo menos, ele teve o bom senso de comprar também calcinhas e sutiãs para o dia a dia, que era o que ela estava usando para ir tirar sangue. Ana o encontrou na sala brincando com Max. Ele estava de camisa social branca, gravata preta, calça social preta e sapato social da mesma cor. Ana fingiu não sentir o baque ao vê-lo todo no estilo de filhinho de papai.- A Kelly ainda está dormindo. Isso é normal?- A Codeína tem um efeito sedativo. Enquanto estiver dormindo, ela não vai sentir dor.Ana dobrou o pedido dos exames e colocou no bolso da calça junto com os documentos. Os mil reais estavam entre as compras e ela estava levando para pagar os exames.- Eu tenho que voltar logo para ficar com a minha prima.Gabriel se aproximou com um sorriso. El
Gabriel parou a Hilux na entrada da favela e o Soldado Farias, vestido com o uniforme da PM, entrou no carro. O dono do morro pegou o envelope pardo, e abriu, tirando documentos e fotos. Ele franziu a testa com ceticismo.- Quem é esse tanque de guerra?- Renan Tavares. Ele é Policial Civil e lutador profissional de Muay Thai. Ele vai chegar em Paraisópolis como um ex-presidiário. Com a morte do seu pai, a missão dele será descobrir quem assumiu o comando do tráfico de drogas. O disfarce de médico é perfeito.- Eu acho que ele vai chegar fungando no meu cangote.- Se ele tentar uma aproximação, você já está na mira da Polícia Civil. Ele vai fazer uma varredura na favela para descobrir quais são os pontos fracos. Depois, se ele confirmar que você é o chefe do tráfico, ele vai montar uma operação de busca e apreensão, e na sequência, a sua prisão.Gabriel deu uma olhada no dossiê sobre Bruno Alcântara e nas fotos do Policial Federal. Farias coçou a nuca e disse com receio:- Se ele for