Capítulo 3

Ana não conseguiu sair do lugar nem mesmo com toda confusão que tomou conta do restaurante. Helena e todos os funcionários entraram em pânico. Uma ambulância do SAMU foi chamada. O homem continuava no chão se contorcendo como se estivesse tendo uma convulsão, e o cara do lado dele, segurava sua cabeça raspada para evitar que ele se machucasse.

Seus olhares se encontraram mais uma vez e um tremor percorreu o corpo de Ana. Ela ficou presa naqueles olhos escuros e sombrios. Suas pernas pareciam pesar mais de duzentos quilos cada uma, e ela ficou onde estava. A ambulância não demorou a chegar e o homem foi colocado na maca.

Gabriel entregou a chave da Hilux SW4 preta cabine dupla para André, e foi na ambulância com o pai. No trajeto para o hospital, ele deixou o paramédico fazer a massagem cardíaca no pai, e mandou uma mensagem para um dos soldados.

Ana aceitou o copo de água que Felipe deu para ela. Helena fechou as portas do restaurante e passou a mão trêmula na cabeça branca.

- Parecia que ele estava envenenado.

Felipe discordou recolhendo os pratos.

- Não foi aqui. A comida estava fresca e as bebidas lacradas.

Helena estava preocupada.

- Puta merda! Será que vai ter polícia?

Ana colocou a mão no ombro direito da patroa.

- Não se preocupe com isso.

- Como não, criatura?! Se o homem morre por envenenamento, eu vou ser alvo de uma investigação! Você viu?! Eles têm dinheiro para fechar o restaurante!

Pensativa, Ana disse:

- Ele é grande e saudável. Talvez, ele sobreviva.

- Tomara. - Aflita, Helena massageou o peito. - Vamos limpar tudo e desculpa por não desejar feliz ano novo.

Ana voltou ao trabalho com o coração aos pulos.

Gabriel recebeu a notícia da morte do pai com profundo pesar e foi consolado pelos amigos. O médico do plantão disse cansado:

- O corpo será encaminhado para o Instituto Médico Legal. À primeira vista, parece envenenamento. Mas vamos esperar o laudo do legista.

Gabriel fungou o nariz.

- Meu pai fazia uso de ostarina e não podia misturar com álcool. Foi uma overdose. Mas vamos esperar o laudo do IML.

- Seu pai tinha inimigos?

"Só você."

- Não, ele era muito querido.

- Meus sentimentos.

- Obrigado.

Em Fernando de Noronha, Vanessa bebeu um gole de champanhe após receber a ligação do filho. Sua amiga e sócia, Paloma, perguntou preocupada:

- O que aconteceu?

- O cretino do pai do meu filho escolheu logo hoje para morrer. Eu tenho que voltar para São Paulo para ficar com o Gabriel.

A festa de réveillon foi interrompida em Paraisópolis após a morte repentina de Pedro. Com alguns desafetos na comunidade, o nome de um novo dono da favela começou a ser cogitado. Não era uma escolha muito difícil para Patric Velinton Salomão, o Forjado.

Gabriel apertou a gravata preta no colarinho branco e olhou no espelho do banheiro. Atrás dele, o vulto.

- Você se saiu muito bem. O atestado de óbito consta como causa da morte parada cardiorespiratória por uso de anabolizantes e álcool.

- Eu não quero te ver nunca mais.

- Impossível. Eu sou a sua consciência. Essa bola de fogo incandescente que você vê na minha cabeça, são os seus pensamentos. Você me vê porque eu sou a projeção do que você deseja. Eu sou o seu conselheiro. Ele precisava morrer para você assumir o poder.

Gabriel se virou de frente para o vulto.

- Você tem um nome?

- Eu tenho muitos nomes. Você pode me chamar do que quiser.

- Eu não preciso de você.

- Você precisava de um empurrão e me invocou quando mergulhou na escuridão. Quando conhecer a luz, não me verá mais. Só que isso não vai acontecer. Você pertence as trevas.

Gabriel sorriu com desdém.

- Acha que eu não posso controlar as trevas em que habito?

A gargalhada do vulto ecoou pelas paredes do banheiro.

- Não sou eu quem estou indo para o enterro do meu próprio pai. - A risada desapareceu. - Eu sou a sombra da sua escuridão. Mate a garota que viu o seu sorriso. A consciência dela pode pesar, e ela pode abrir a boca. Você não quer uma exumação.

Gabriel voltou a ficar de frente para o espelho.

- Por que você não a aterroriza?

- Porque ela tem uma áurea de pureza e inocência que é inacessível para mim.

- Eu vou resolver isso do meu jeito.

- Aguardo a consumação.

Sozinho, Gabriel apoiou as mãos na pia de mármore branco. Em menos de vinte e quatro horas, ele tinha toda a vida de Ana Luísa em suas mãos.

O celular tocou. Gabriel atendeu o número desconhecido.

- Alô.

- Você será nomeado amanhã e vai ter que provar o seu valor.

A ligação foi encerrada. Com um lindo sorriso diabólico, Gabriel seguiu para o enterro do pai no Cemitério da Paz.

Ana seguiu sua rotina normalmente após ficar sabendo que o homem tinha morrido por overdose. Ela não pensou mais no acontecido. Contudo, aquele olhar penetrante habitava todos os seus pensamentos.

Finalmente, tinha chegado o dia da consulta no posto de saúde, e ela sabia que estava com a pressão nas alturas. Após um banho caprichado, Ana vestiu camiseta branca, calça jeans preta, rasteirinha, pegou o cartão do SUS e saiu de casa.

Como era de se esperar, o posto que ficava no alto da favela, estava lotado. Ana fez a ficha e aguardou a sua vez.

Após uma rápida reunião com as duas enfermeiras, e as moças que trabalhavam no postinho, Gabriel foi para a sua sala que ficava ao lado da sala de curativos. Do outro lado, ficava a sala de vacina. O posto tinha passado por uma reforma e as novas instalações ficavam ao lado de uma creche. As paredes estavam pintadas de branco e o chão era de piso bege. A recepção ficava ao lado da entrada com a ampla sala de espera.

Gabriel vestia o seu jaleco branco por cima da camiseta da mesma cor, calça jeans claro e adidas branco. Seu horário de trabalho seria de segunda à sexta-feira das 07:30h às 15:00h. Ele teria uma hora e meia de almoço, tempo suficiente para administrar as bocas de fumo.

Estava perto das dez horas quando chegou a vez dela. Gabriel chamou de dentro do consultório pequeno, porém, confortável com mesa, cadeira, cama hospitalar, pia e uma janela de vidro que dava vista para a favela.

- Ana Luísa Silva.

Ana levantou e foi para o consultório médico. Ao abrir a porta, ela pensou que teria um infarto fulminante. Ele apontou para a cadeira e sorriu com dentes brancos, alinhados e perfeitos.

- Feche a porta e sente-se.

Ana obedeceu só para não desmaiar de pé. Ela leu o nome do médico que estava bordado em letras pequenas na cor azul marinho no seu jaleco branco, junto com o CRM.

- Em que posso ajudá-la? O que você tem sentido?

Ana ficou ainda mais surpresa por ele fingir não conhecê-la.

- Eu tenho pressão alta.

- Ok. Vamos cuidar disso.

Gabriel levantou, pegou o aparelho de pressão, o estetoscópio e contornou a mesa. Ana esticou o braço esquerdo e arfou com a proximidade. Um cheiro suave de amaciante a fez fechar os olhos. Gabriel respirou fundo. Pela primeira vez em muito tempo, ele não sentiu o cheiro forte de enxofre.

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