Capítulo 2

Há seis meses, Ana Luísa se mudou do interior de Minas Gerais para morar em São Paulo com a prima Kelly. Ela morava em uma casa alugada na favela de Paraisópolis, e as duas dividiam o aluguel de quinhentos reais.

Do manequim 38, Ana passou para o 54 ainda na adolescência quando sua mãe era viva e fazia marmitex para vender. Fornadas de pães de queijo, roscas, bolos e pudim de leite condensado, não faltavam na sua casa.

Ela estudava e ajudava a mãe com as marmitas, comendo em excesso e não se preocupando com a saúde. Ana nunca conheceu o pai, e quando a mãe morreu vítima de um AVC fulminante, ela descobriu que tinha hipertensão. Losartana e furosemida passaram a fazer parte da sua rotina diária.

Mesmo com sobrepeso, perto de pesar cento e vinte quilos, Ana não mudou a alimentação. Ao se mudar para São Paulo, ela conseguiu emprego em um restaurante em Alphaville através da prima Kelly. A dona do local deixava os funcionários comerem e levarem as sobras para casa.

Ana também conheceu o McDonald's, e aí, tudo piorou de vez. Ela ficou viciada nos lanches e sorvetes. Ela começou a notar os pés inchados no final do dia, cansaço nos mínimos esforços, e marcou uma consulta no posto de saúde de Paraisópolis para o início do ano, era só para quando tinha vaga.

Ana não gostava de monitorar a sua pressão arterial porque achava que ela subia ainda mais. Se medisse e estivesse alta, ela entrava em pânico e tinha que ir para o pronto atendimento colocar captopril debaixo da língua.

Ela estava certa que a médica iria mandar ela emagrecer, como se fosse a coisa mais fácil do mundo para alguém que amava comer, e usava a comida como uma forma de enfrentar o luto.

No momento, Ana preferiu tomar um café da manhã reforçado, e se preparar para o dia agitado que teria pela frente no restaurante. Era véspera de Ano Novo, e era bem provável dela virar a madrugada lavando pratos, copos e talheres.

Kelly com seu corpão violão, já tinha ido para a casa da cabeleireira se arrumar para o reveillon. Ana não era vaidosa. Ela não usava brincos, pulseiras, colares e nem maquiagem. Apenas lavava e secava os cabelos negros e sedosos, e usava touca o dia inteiro no trabalho.

Uma coisa que Ana gostava no seu excesso de peso, era que nenhum homem olhava para ela. Virgem aos vinte e um anos, a garota do interior nem saberia o que fazer na hora h. Ela sentia tesão pelos caras musculosos da academia que frequentavam o restaurante, e batia uma siririca tarde da noite para se aliviar. Ela morria de vergonha do próprio corpo.

Com uma oração pedindo proteção e fazendo o sinal da cruz, Ana saiu e trancou a porta. No caminho pela viela estreita, ela foi dando bom dia para os vizinhos, e se perguntou como crianças de sete anos tinham celular de última geração para jogarem Free Fire. Seu moto G4 PLAY estava pedindo socorro.

De Paraisópolis até Alphaville era uma hora e meia de ônibus, e Ana ficou feliz por achar um lugar para sentar enquanto comia uma caixa de bis branco. Ela deu dois para o garotinho que estava sentado no colo da mãe.

Helena bateu palmas quando a viu chegando pela calçada do restaurante. A patroa sorriu animada.

- Bom dia, Ana!

- Bom dia, patroa!

- Uma turma de formandos fechou o restaurante para a virada do ano. Hoje seu décimo terceiro saí.

Ana ficou extasiada com os combos de McDonald's que compraria. Ela entrou no restaurante chique com o pé direito e muito animada.

Gabriel chegou com os amigos por volta das sete da noite e eles sentaram nas várias mesas. Seu pai teve um desenrolo para fazer de última hora, e chegou por volta das nove horas. Todos vestiam branco para a chegada de 2023, após quase dois anos de pandemia.

Gabriel ria das piadas sem graça dos amigos, bebia pequenos goles de Spaten, e vez ou outra, passava um olhar no vulto com cabeça de fogo.

- Sua mãe tava muito linda no dia da formatura. Sabe se ela tá com alguém?

Gabriel olhou para o pai e deu de ombros.

- Eu não sei.

Pedro fechou o semblante.

- Deveria saber. Ela é sua mãe, porra.

Gabriel forçou um sorriso.

- Eu vou descobrir.

- Eu acho bom mesmo. Eu quero saber o que a sua mãe anda fazendo. Quando vai começar no postinho?

- À partir do dia quinze. Eu vou cobrir as férias do médico de lá. Se tudo der certo, eu posso ser efetivado.

- Ótimo.

Gabriel viu o álcool fazendo efeito em André e Rafael e os dois começaram a bater boca. Ninguém deu importância, pelo contrário, riram. O vulto bateu o dedo indicador no pulso esquerdo. A hora se aproximava.

Pedro bebeu a caneca de chopp que Gabriel serviu para ele e acendeu um cigarro.

Na cozinha, Ana estava assustada com os gritos eufóricos vindos do interior do restaurante. Um dos garçons torceu o nariz.

- Um bando de filhinhos de papai com o cu cheio de pó.

Ana colocou força para arear uma panela de gordura.

- Pelo menos o décimo terceiro saiu.

Felipe resmungou alguma coisa. Ana riu do colega de trabalho mal humorado, e continuou lavando louça. O cansaço tava matando a pau. Ela já salivava pela vontade de devorar um Big Mac com fritas. Quando teve uma pausa, pediu permissão para ir até o McDonald's no final da rua.

Helena suspirou profundamente.

- Corre que já deve estar fechando.

Ana pegou a bolsa e não perdeu tempo tirando a touca da cabeça. Ao passar pela porta de vai e vem da cozinha, ela estancou. A contagem regressiva começou, um homem caiu da cadeira estrebuchando e espumando pela boca.

Ao lado dele, um cara boa pinta abaixou. Ninguém viu, porém, Ana viu antes dele ser cercado por outras pessoas. Ele sorriu.

Por alguma razão, ele ergueu a cabeça e seus olhares se chocaram.

"Ela viu o seu sorriso. Elimine-a."

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