Há seis meses, Ana Luísa se mudou do interior de Minas Gerais para morar em São Paulo com a prima Kelly. Ela morava em uma casa alugada na favela de Paraisópolis, e as duas dividiam o aluguel de quinhentos reais.
Do manequim 38, Ana passou para o 54 ainda na adolescência quando sua mãe era viva e fazia marmitex para vender. Fornadas de pães de queijo, roscas, bolos e pudim de leite condensado, não faltavam na sua casa. Ela estudava e ajudava a mãe com as marmitas, comendo em excesso e não se preocupando com a saúde. Ana nunca conheceu o pai, e quando a mãe morreu vítima de um AVC fulminante, ela descobriu que tinha hipertensão. Losartana e furosemida passaram a fazer parte da sua rotina diária. Mesmo com sobrepeso, perto de pesar cento e vinte quilos, Ana não mudou a alimentação. Ao se mudar para São Paulo, ela conseguiu emprego em um restaurante em Alphaville através da prima Kelly. A dona do local deixava os funcionários comerem e levarem as sobras para casa. Ana também conheceu o McDonald's, e aí, tudo piorou de vez. Ela ficou viciada nos lanches e sorvetes. Ela começou a notar os pés inchados no final do dia, cansaço nos mínimos esforços, e marcou uma consulta no posto de saúde de Paraisópolis para o início do ano, era só para quando tinha vaga. Ana não gostava de monitorar a sua pressão arterial porque achava que ela subia ainda mais. Se medisse e estivesse alta, ela entrava em pânico e tinha que ir para o pronto atendimento colocar captopril debaixo da língua. Ela estava certa que a médica iria mandar ela emagrecer, como se fosse a coisa mais fácil do mundo para alguém que amava comer, e usava a comida como uma forma de enfrentar o luto. No momento, Ana preferiu tomar um café da manhã reforçado, e se preparar para o dia agitado que teria pela frente no restaurante. Era véspera de Ano Novo, e era bem provável dela virar a madrugada lavando pratos, copos e talheres. Kelly com seu corpão violão, já tinha ido para a casa da cabeleireira se arrumar para o reveillon. Ana não era vaidosa. Ela não usava brincos, pulseiras, colares e nem maquiagem. Apenas lavava e secava os cabelos negros e sedosos, e usava touca o dia inteiro no trabalho. Uma coisa que Ana gostava no seu excesso de peso, era que nenhum homem olhava para ela. Virgem aos vinte e um anos, a garota do interior nem saberia o que fazer na hora h. Ela sentia tesão pelos caras musculosos da academia que frequentavam o restaurante, e batia uma siririca tarde da noite para se aliviar. Ela morria de vergonha do próprio corpo. Com uma oração pedindo proteção e fazendo o sinal da cruz, Ana saiu e trancou a porta. No caminho pela viela estreita, ela foi dando bom dia para os vizinhos, e se perguntou como crianças de sete anos tinham celular de última geração para jogarem Free Fire. Seu moto G4 PLAY estava pedindo socorro. De Paraisópolis até Alphaville era uma hora e meia de ônibus, e Ana ficou feliz por achar um lugar para sentar enquanto comia uma caixa de bis branco. Ela deu dois para o garotinho que estava sentado no colo da mãe. Helena bateu palmas quando a viu chegando pela calçada do restaurante. A patroa sorriu animada. - Bom dia, Ana! - Bom dia, patroa! - Uma turma de formandos fechou o restaurante para a virada do ano. Hoje seu décimo terceiro saí. Ana ficou extasiada com os combos de McDonald's que compraria. Ela entrou no restaurante chique com o pé direito e muito animada. Gabriel chegou com os amigos por volta das sete da noite e eles sentaram nas várias mesas. Seu pai teve um desenrolo para fazer de última hora, e chegou por volta das nove horas. Todos vestiam branco para a chegada de 2023, após quase dois anos de pandemia. Gabriel ria das piadas sem graça dos amigos, bebia pequenos goles de Spaten, e vez ou outra, passava um olhar no vulto com cabeça de fogo. - Sua mãe tava muito linda no dia da formatura. Sabe se ela tá com alguém? Gabriel olhou para o pai e deu de ombros. - Eu não sei. Pedro fechou o semblante. - Deveria saber. Ela é sua mãe, porra. Gabriel forçou um sorriso. - Eu vou descobrir. - Eu acho bom mesmo. Eu quero saber o que a sua mãe anda fazendo. Quando vai começar no postinho? - À partir do dia quinze. Eu vou cobrir as férias do médico de lá. Se tudo der certo, eu posso ser efetivado. - Ótimo. Gabriel viu o álcool fazendo efeito em André e Rafael e os dois começaram a bater boca. Ninguém deu importância, pelo contrário, riram. O vulto bateu o dedo indicador no pulso esquerdo. A hora se aproximava. Pedro bebeu a caneca de chopp que Gabriel serviu para ele e acendeu um cigarro. Na cozinha, Ana estava assustada com os gritos eufóricos vindos do interior do restaurante. Um dos garçons torceu o nariz. - Um bando de filhinhos de papai com o cu cheio de pó. Ana colocou força para arear uma panela de gordura. - Pelo menos o décimo terceiro saiu. Felipe resmungou alguma coisa. Ana riu do colega de trabalho mal humorado, e continuou lavando louça. O cansaço tava matando a pau. Ela já salivava pela vontade de devorar um Big Mac com fritas. Quando teve uma pausa, pediu permissão para ir até o McDonald's no final da rua. Helena suspirou profundamente. - Corre que já deve estar fechando. Ana pegou a bolsa e não perdeu tempo tirando a touca da cabeça. Ao passar pela porta de vai e vem da cozinha, ela estancou. A contagem regressiva começou, um homem caiu da cadeira estrebuchando e espumando pela boca. Ao lado dele, um cara boa pinta abaixou. Ninguém viu, porém, Ana viu antes dele ser cercado por outras pessoas. Ele sorriu. Por alguma razão, ele ergueu a cabeça e seus olhares se chocaram. "Ela viu o seu sorriso. Elimine-a."Ana não conseguiu sair do lugar nem mesmo com toda confusão que tomou conta do restaurante. Helena e todos os funcionários entraram em pânico. Uma ambulância do SAMU foi chamada. O homem continuava no chão se contorcendo como se estivesse tendo uma convulsão, e o cara do lado dele, segurava sua cabeça raspada para evitar que ele se machucasse.Seus olhares se encontraram mais uma vez e um tremor percorreu o corpo de Ana. Ela ficou presa naqueles olhos escuros e sombrios. Suas pernas pareciam pesar mais de duzentos quilos cada uma, e ela ficou onde estava. A ambulância não demorou a chegar e o homem foi colocado na maca.Gabriel entregou a chave da Hilux SW4 preta cabine dupla para André, e foi na ambulância com o pai. No trajeto para o hospital, ele deixou o paramédico fazer a massagem cardíaca no pai, e mandou uma mensagem para um dos soldados.Ana aceitou o copo de água que Felipe deu para ela. Helena fechou as portas do restaurante e passou a mão trêmula na cabeça branca.- Parecia
Ana mordeu o lábio inferior para não gemer de dor à medida que o medidor de pressão apertava o seu braço gordo. Ela começou a sentir um alívio momentâneo quando o médico parou de apertar, porém, ele voltou a apertar, para em seguida, tirar o estetoscópio dos ouvidos e pendurar no pescoço.- Está sentindo alguma coisa?Ana massageou o braço dolorido.- Tontura. Está muito alta?- Está 16x10.- Nossa Deus!Gabriel voltou a sentar, pegou uma folha de sulfite e dobrou ao meio, no tamanho que cabia no envelope pardo de cada paciente. Ele estava usando o computador só para as receitas e pedidos de exames. No mais, preferia conversar com os pacientes e anotar tudo à mão.Por alguns segundos, ele se perdeu na beleza natural de Ana, e teve que fazer um esforço para se lembrar que ali, eram médico e paciente.- A sua ficha está em branco. É a sua primeira vez aqui?Ana assentiu, não deixando de notar que Gabriel era muito novo para ser médico. Provavelmente, ele era um residente. - Eu vim de M
De volta à Paraisópolis, Gabriel tomou posse da casa que era do pai. Era um imóvel simples e discreto visto por fora, como a maioria das casas feitas de tijolo e coberta com telha eternit. No entanto, por dentro, a casa de três quartos, sala, cozinha, banheiro, área de serviço e garagem, estava equipada com móveis planejados, utensílios de cozinha Arno, geladeira inox duplex Brastemp, assim como o fogão Cooktop e o microondas cinza da mesma marca. Todos os quartos tinham cama box de casal e home theater. Na sala, uma tv led de alta definição, ocupava toda uma parede de frente para o sofá de couro preto. A área de serviço também era funcional com tanque, máquina de lavar, secar, churrasqueira e um terraço com vista panorâmica de Paraisópolis.Na casa espaçosa também tinha vários notebooks Apple com as imagens das câmeras de segurança e informações sobre o tráfico de drogas, como os nomes dos fornecedores, quem estava na lista negra, membros da facção presos e a hierarquia de comando d
Gabriel começou a atender às 07:30h em ponto. A recepção estava lotada, mas ele não teve pressa para ouvir as queixas dos pacientes, examina-los, solicitar exames e prescrever remédios para os casos mais simples que não precisavam de uma investigação mais profunda.Uma cheirada de pó na madrugada o deixou em estado de alerta, ao mesmo tempo que ouvia gritos tenebrosos e via vultos rastejando no consultório. Para ele, o inferno existia e o mundo espiritual era uma realidade paralela ao seu mundo real. Gabriel pegou a receita de Betaistina de 24mg que saiu na impressora, carimbou, assinou e entregou para o último paciente da parte da manhã.- Aqui, seu João. Se não parar de beber, essa labirintite não vai melhorar.O senhor negro pegou a receita com as mãos trêmulas pela abstinência.- Eu bebo pra esquecer os problemas.- Sua saúde está muito deteriorada. Se não parar de beber, em poucos meses, essa cirrose vai virar câncer, e a sua preocupação não será com o próximo gole, e sim, em c
Ana serviu o almoço saindo fumaça e colocou a jarra de vidro com o suco de laranja gelado no centro da mesa oval. Ela quase foi de arrasta pra cima ao ver Gabriel entrar na cozinha só com a calça jeans branca, e a borda preta da cueca Calvin Klein aparecendo. Seu corpo lindo e perfeito, era coberto por várias tatuagens. Gabriel pegou um frasco de vitamina no armário, e Ana arregalou os olhos com a caveira que cobria suas costas largas. Era sinistra.Abaixo do seu olho esquerdo estava escrito a palavra Chaos. Traduzida para o português Caos. Que significa o Deus Primordial Do Universo. Ele foi até ela depois de colocar o frasco na mesa e estendeu um bolo de notas de cinquenta reais.- Aqui tem mil reais. Você tem duas semanas de atestado, e vai cozinhar pra mim. Eu fiz mercado ontem, e você pode fazer o que sabe.Ana olhou para o dinheiro, para o corpo de Gabriel, e mordeu o lábio inferior antes de erguer a cabeça e olhar nos olhos dele.- Por que você sorriu quando o seu pai passou
Ana levou um tempo para assimilar tudo o que tinha acontecido. Seu primeiro beijo não foi com seu médico bonito e gostoso, e sim, com o dono da favela de Paraisópolis. Era realmente inacreditável como Gabriel conseguia ser um profissional atencioso e prestativo, e um traficante frio e calculista. Eram dois extremos que somente uma mente brilhante, ou doentia, poderia colocar em prática.De qualquer forma, Ana decidiu que não iria mais cozinhar para Gabriel. Ela queria distância dele. Por isso, ela terminou de limpar a cozinha, fez um carinho em Max que dormia no sofá, deixou o dinheiro em cima da mesa da sala e voltou para casa. Como trabalhava à noite, cuidando de idosos acamados, Kelly dormia quando Ana chegou. Suada, ela pegou a toalha e foi tomar um banho gelado por causa do calor infernal, e das fortes emoções que a atormentavam. Ana fechou os olhos debaixo da ducha e se permitiu relaxar. Ela tinha dinheiro para fazer os exames, mas os levaria para outro médico. Nunca mais ela
Gabriel colocou Max na coleira e saiu de casa. De capuz branco, sem camisa, calça jeans preta e Adidas branco, o dono do morro foi para a casa usada para o setor financeiro, onde era feito os recebimentos e pagamentos. Com uma população de cem mil habitantes, Paraisópolis e região, dava uma renda semanal de três milhões de reais entre a venda de maconha, cocaína, crack, cigarro e álcool. Os dois últimos, de cargas roubadas. Havia pontos de venda de drogas no Morumbi, Cidade Dutra, Cidade Jardim, Vila Andrade e Itaim Bibi.Gabriel não era só o dono do morro de Paraisópolis, ele também tinha o controle armado dos pontos de venda de drogas, as chamadas bocas de fumo, como também dos territórios que cercavam a favela. Dono absoluto da comunidade, ele manda e desmanda na vida social dos moradores, se impõe como juiz dos desenrolos, interfere nas associações e escolhe candidatos para os quadros administrativos.O traficante iria seguir os passos do pai. Importar drogas e armas do exterior e
Ana colocou o despertador do iPhone para tocar às 06:00h. Após o banho, ela colocou camiseta branca, calça jeans claro, meias e um Nike branco. Como Gabriel tinha acertado o tamanho de tudo, inclusive das lingeries sensuais, era um mistério. Pelo menos, ele teve o bom senso de comprar também calcinhas e sutiãs para o dia a dia, que era o que ela estava usando para ir tirar sangue. Ana o encontrou na sala brincando com Max. Ele estava de camisa social branca, gravata preta, calça social preta e sapato social da mesma cor. Ana fingiu não sentir o baque ao vê-lo todo no estilo de filhinho de papai.- A Kelly ainda está dormindo. Isso é normal?- A Codeína tem um efeito sedativo. Enquanto estiver dormindo, ela não vai sentir dor.Ana dobrou o pedido dos exames e colocou no bolso da calça junto com os documentos. Os mil reais estavam entre as compras e ela estava levando para pagar os exames.- Eu tenho que voltar logo para ficar com a minha prima.Gabriel se aproximou com um sorriso. El