O sábado de manhã chegou. De ressaca, só me levantei quando os reflexos da luz através do vidro, que batiam em meu rosto, se tornaram insuportáveis. Voltei a me deitar, tentando prolongar o silêncio tranquilo antes que o dia realmente começasse. A noite anterior ainda estava confusa, voltando aos poucos, assim como a culpa.
Me sentia uma criminosa.
Como se tivesse traído alguém.
O celular vibrou sobre a mesa de cabeceira, desejei ignorá-lo, me fingir de morta e continuar ali até desaparecer. As mensagens matinais geralmente não traziam boas notícias, ainda mais em um sábado.
Mas o peguei mesmo assim e, quando vi o remetente, meu coração deu um salto.
"Parabéns, Julia! Você foi aprovada no processo seletivo. Esperamos você na segunda-feira às 8h. Bem-vinda à equipe."
Me sentei na cama, sem acreditar que aquela mensagem era mesmo para mim. Depois de meses tentando e me sustentando com uma mesada dada por meus pais, finalmente as portas voltavam a se abri. Senti o peito encher de alívio, enquanto lutava ferozmente contra a insegurança e ansiedade. Consegui. Depois tantas entrevistas, finalmente um recomeço.
Eu queria muito esse emprego, queria mesmo, mas a realidade caiu pesada sobre os ombros. Os últimos cinco meses foram difíceis, mesmo! Desejei realmente que esse trabalho me mantivesse longe de pensamentos infundados, corrosivos, de culpa, mágoa, que me deixasse ocupada o suficiente para fingir esquecer.
Não queria me importar.
Respirei fundo.
Levantei, decidida a sair da cama e aproveitar o fim de semana, pois seria minha última manhã de sábado livre por um tempo. Passei o dia todo com dificuldade de focar nas coisas que queria fazer. Não prestei atenção no filme, nem terminei a limpeza da cozinha e até queimei o almoço. Além do medo de as coisas não darem certo, havia um pressentimento estranho.
E a lembrança da noite anterior não sumiu, apenas se tornava cada vez mais clara e, quanto mais desejava esquecer, mais real Matheus se tornava dentro de mim.
***
O fim de semana passou bem rápido e nem vi a segunda-feira chegar. Vestida com minha melhor roupa, uma camisa social clara e uma calça de alfaiataria, entrei no prédio imponente onde começaria minha nova vida profissional, usando toda a coragem e autoconfiança que consegui reunir nas últimas horas. O saguão era moderno, cum balcão de vidro e dezenas de funcionários indo de um lado para o outro. Segui as instruções do e-mail, usando o QR code que me enviaram para entrar no elevador, e subi para o 15º andar.
Lá, uma moça do RH já me esperava, e me acompanhou pelo corredor enquanto completava as burocracias de explicar minhas funções, indicar meu posto e acertar as últimas informações para que o período de teste começasse.
Foi ali que conheci Henrique.
— Ah, então você é a nova contratada — o homem disse sem prestar atenção em nós, ou tirar os olhos do computador.
Sua voz carregava um tom entediado, quase impaciente.
— Sim, meu nome é Julia, muito prazer — fiz de tudo para ser cordial, não querendo deixar transparecer como esse primeiro contato já estava sendo frustrante.
Ele ergueu finalmente o olhar e me analisou de cima a baixo. Era um homem bonito, devia ter perto dos quarenta anos, havia algumas linhas de expressão, mas seus olhos azuis penetrantes pareciam capazes de amenizá-las. Mesmo assim, tinha um ar arrogante, como se estivesse analisando quanto tempo exatamente valia perder comigo.
— Ok, Julia, espero mesmo que aprenda rápido, porque com tantas coisas para fazer não sobra muito tempo para te ajudar. São muitas responsabilidades e preciso de alguém preciso, e eficiente, pode fazer isso por mim?
Seu tom era frio e caprichoso, como se esperasse que eu desistisse e saísse correndo dali, e esse tipo de postura me pegou desprevenida outra vez. Sua beleza diminuía aos poucos, porque sua personalidade obtusa nos distanciava, em menos de cinco minutos aprendi que dá muito bem para se odiar alguém à primeira vista.
Muito mais do que para amar.
— Pode confiar em mim, aprendo rápido e darei o meu melhor.
Seu sorriso atravessado denunciou o quanto não estava convencido sobre mim, mas o ignorei.
— Ótimo! Sua primeira tarefa então é organizar estes relatórios em ordem de importância numérica e de gravidade de problemas, você não é minha secretária, é minha assistente, então leia tudo e faça sugestões, quero alguém prolífico perto de mim e preciso que me mostre agora — juntou uma pilha de documentos em uma pasta incapaz de os comportar. — Vou querer isso no final do dia, então seja atenciosa, porém rápida, quero revisá-los hoje a noite.
— Sim, senhor, com licença.
Peguei a pasta e sai da sala, indo encontrar minha mesa. Não tive tempo de ajeitar minhas canetas no organizador ou de pensar muito, precisei começar imediatamente. Costumava aprender rápido, ser boa com números, mas o comportamento de Henrique me expunha a uma pressão doentia. O entusiasmo deu lugar a mesma ansiedade de antes, já que a primeira impressão do meu novo chefe não era das melhores.
Ao passar do dia, minha paciência parecia diminuir, dando lugar a impaciência e o desejo de que as horas passassem logo. Henrique passava na frente da minha mesa o tempo inteiro, checando se eu estava fazendo meu trabalho do jeito certo, fazia perguntas idiotas e interrompia minhas respostas, me corrigia o tempo todo. Fazia questão de mostrar que era o chefe, e os outros funcionários me encaravam com pena.
Seu comportamento passivo-agressivo mostrava o quanto estava disposto a me humilhar, enquanto respondia de forma impaciente e continuava a me lembrar, incisivamente, que qualquer erro meu podia custar muito caro.
Sem conseguir aguentar, finalmente tive um intervalo para o café no final do pior primeiro dia de trabalho da minha vida. Usei o tempo limitado para respirar, precisava me recompor, então fiz meu café e procurei por um corredor afastado da sala de Matheus, onde as janelas enormes exibiam a vista da cidade imensa à minha frente.
Me perguntei quantas possibilidades melhores não deviam haver naquele mar de prédios e pessoas, observando a rua movimentada e o caminhar daqueles desconhecidos. Fechei os olhos, tentando fazer o cansaço passar e respirei inúmeras vezes, queria desmanchar a tensão e retornar ao meu posto.
Minha audição foi tomada por um ruído oco de passos, de uma dobradiça, enquanto me mantinha impassível e tentava continuar calma, sem sair do lugar.
E foi quando senti uma presença ao meu lado.
Pega de surpresa, me virei depressa, e o susto foi imenso quando a visão finalmente revelou quem se tratava.Meu coração saltou no peito, como se aquela fosse uma aparição ou uma alucinação ocasionada pela fadiga e cansaço.Mas era mesmo Matheus.Usava um terno impecável, olhava para a frente e admirava a vista do seu próprio jeito, como se não tivesse me reconhecido. Como se aquela sexta-feira tivesse acontecido apenas comigo.O encarei, esperando alguma reação, sem saber se deveria dizer ou não alguma coisa. Esperei por um olhar, reconhecimento, um sorriso, mas sua expressão não se alterou. Os olhos passaram por mim rapidamente, mas se manteve sério, como se eu fosse uma secretária qualquer.— Não esperava te encontrar aqui, mas espero que goste do trabalho.Frio.Ele estava frio como gelo e nossa troca de olhares não durou nem trinta segundos.Senti frustração, alivio, e tentei manter a compostura e continuar seguindo o mesmo tom que ele, como se não me importasse. A boate não tinh
A manhã seguinte começou, tão agitada como sempre. A luz fria da manhã entrava pelas paredes de vidro do escritório moderno, as mesas em fileiras estavam organizadas — dentro do possível —, cada uma com sua própria pilha de documentos. O ar-condicionado soprava, zumbindo solenemente, um ruído relaxante naquele ambiente sem vida, se misturando ao som dos teclados que eram pressionados com maestria por todos os trabalhadores.Quando cheguei à minha mesa, o estômago chegou a embrulhar com a visão de Henrique mexendo nas minhas coisas e conferindo ele mesmo a pilha de documentos deixada por mim no organizador.— Até que enfim — disse, mas sem olhar na minha direção. — Tem até o meio-dia para revisar esse contrato, ouviu? Estou cheio de coisas, não terei tempo de revisar de novo seu trabalho, seja prolífica o suficiente para manter seu lugar aqui.Quase revirei os olhos, enquanto segurava a vontade de fazer ele mesmo engolir os malditos papéis.— Sim, senhor — disse suavemente, absorvendo
Não imaginei que o dia pudesse piorar, mas a comida deu forças a Henrique, que estava ainda pior do que de manhã. Aos gritos, criticava todas as coisas que eu fazia, e não parava de se curvar sobre meu computador e encostar em mim, tentando corrigir minhas planilhas enquanto os outros funcionários me encaravam, complacentes, mas sem dizer uma palavra.Eu queria morrer.— Está tudo errado! — Sem aviso, jogou outra pilha de papéis sobre minha mesa, e a xícara de café quase caiu. — Não te mandei revisar de novo? Os números estão errados!Me esforçava ao máximo para manter a compostura, cerrando os dentes e engolindo meus suspiros de frustração.— Já revisei duas vezes, senhor, mas posso olhar de novo — murmurei. — Só que eu realmente não faço ideia do que está errado, pode por favor me explicar?Um grande erro.— Faça de novo desde o começo! Eu preciso te explicar tudo? Acha mesmo que merece continuar aqui — me cortou, com um rugido arrogante e repleto de desdém.Não estava mais aguentan
Parei diante da porta, o coração batia violentamente no peito, enquanto eu tentava reunir coragem para entrar. Depois do dia caótico, claro que quando Henrique me enviou até ali, obedeci sem questionar, mas agora estava pagando por isso. Os sentimentos eram pesados e conflitantes, como se estivesse prestes a invadir um espaço proibido.Mesmo assim, empurrei a maçaneta.Os olhos vagaram pela sala, analisando cada detalhe, mapeando inconscientemente aquele local que me pareceu estranhamente íntimo. Matheus estava levemente inclinado para frente, com os cotovelos apoiados na mesa de mogno e um meio-sorriso nos lábios, enquanto os olhos estavam fixos apenas na mulher à sua frente.Se portava de uma maneira diferente da que pude acompanhar nos últimos dias, parecia tão relaxado quanto quando nos encontramos naquele bar. Era cordial. A luz iluminava seu rosto, destacando seus traços mais marcantes, que pareciam suaves e expressivos, diferente de sua frieza assustadora.Meus músculos travara
O corredor se estendia à minha frente, quase infinito. Meus passos eram pesados, como se todos os pensamentos e angústias acumulados nestes dias longos e ansiosos estivessem amarrados aos meus tornozelos, lutando para me impedir de sair do lugar. Meus dedos ainda amassavam as bordas dos papéis, e me lembrei de afrouxar o aperto, para não danificá-los.A verdade adoecedora era que eu queria sentir seu toque, como se a sensação pudesse ser transmitida através das digitais deixadas na celulose maculada por suor e tinta.Aquela semana tinha sido um inferno. Mal dormi nos últimos dias, e tinha aquela sensação adoecedora de que estava bem próxima do meu limite. Henrique corroía todas as minhas forças, se alimentando de minhas vontades como um parasita, e ainda não havia completado nem meu primeiro mês.No entanto, a sombra da presença de Matheus pelos corredores era sempre mais asfixiante, a sombra e a esperança de que ele viesse a me perceber outra vez. E todas as vezes que pensava nesse t
Aceitei a convocação sem pensar muito. Totalmente por impulso, porque sabia que recusar não pegaria bem. Eu estava em período de testes, não poderia simplesmente me dar ao luxo de dizer não ao chefe, por pior que ele fosse. Mas se eu soubesse o quão torturante seriam as horas seguintes, poderia ter reconsiderado melhor.Henrique dirigia com a mão firme no volante, mas sua atenção estava em qualquer lugar, menos na estrada. O trânsito parecia um detalhe insignificante diante do verdadeiro centro das suas preocupações: a sua esposa.— Eu faço de tudo naquela casa e ela ainda reclama! — bufou grosseiramente, acelerando um pouco mais do que deveria. — E agora vem com essa história de terapia de casal. Como se eu tivesse tempo para isso! Quem é que banca as viagens, os jantares, os presentes? Sou eu! Mas, claro, eu sou o problema também! O que mais preciso fazer pra que aquela encostada fique satisfeita?Assenti com a cabeça, tentando não me encolher no banco. Não era a primeira vez que o
O vestido preto que escolhi era simples, elegante e seguro. Nada que chamasse atenção demais, mas também nada que me fizesse parecer deslocada em um evento como aquele. O tecido leve abraçava meu corpo sem marcar demais, e as alças finas revelavam meus ombros. Meus cabelos estavam presos em um coque baixo, e o batom vinho que passei foi a única ousadia que permiti a mim mesma. Encostei-me ao espelho do quarto do hotel, respirando fundo antes de sair. Ainda havia um nó no meu estômago, um peso que me acompanhava desde a viagem de carro com Henrique.Ao descer para a recepção, encontrei Henrique já me esperando no saguão. Ele usava um terno bem cortado, e o perfume forte denunciava que ele havia exagerado na quantidade. Quando seus olhos deslizaram sobre mim de cima a baixo, senti um arrepio desagradável.— Nada mal, Julia. — sorriu de lado, tomando um gole do uísque que segurava. — Mas talvez um pouco comportada demais. Está parecendo uma freira.Engoli seco, apertando minha bolsa entr
O ar fresco do jardim me trouxe um alívio imediato. O som abafado da recepção ainda ecoava ao fundo, mas ali, entre as sombras das árvores e o perfume suave das flores noturnas, parecia um outro mundo. Caminhei devagar pelo caminho de pedra, abraçando a mim mesma. Meu coração ainda estava acelerado, e a lembrança daquele telefone tocando depois da briga com Gabriel continuava grudada na minha mente como um veneno.Ouvi passos atrás de mim e me virei instintivamente. Matheus estava ali, com as mãos nos bolsos do terno, me observando. Seu olhar era intenso, mas sem o julgamento que eu esperava. Apenas observador, paciente.— Está fugindo de novo? — Sua voz era baixa, quase gentil.Soltei um suspiro e dei de ombros. — Talvez só precisando respirar. E você? O que está fazendo aqui?— Precisando respirar também. — Ele sorriu de lado e caminhou até mim, parando a uma distância segura. — Parece que você teve uma noite difícil.Ri sem humor, desviando o olhar. — E você percebeu isso tão fác