A manhã seguinte começou, tão agitada como sempre. A luz fria da manhã entrava pelas paredes de vidro do escritório moderno, as mesas em fileiras estavam organizadas — dentro do possível —, cada uma com sua própria pilha de documentos. O ar-condicionado soprava, zumbindo solenemente, um ruído relaxante naquele ambiente sem vida, se misturando ao som dos teclados que eram pressionados com maestria por todos os trabalhadores.
Quando cheguei à minha mesa, o estômago chegou a embrulhar com a visão de Henrique mexendo nas minhas coisas e conferindo ele mesmo a pilha de documentos deixada por mim no organizador.
— Até que enfim — disse, mas sem olhar na minha direção. — Tem até o meio-dia para revisar esse contrato, ouviu? Estou cheio de coisas, não terei tempo de revisar de novo seu trabalho, seja prolífica o suficiente para manter seu lugar aqui.
Quase revirei os olhos, enquanto segurava a vontade de fazer ele mesmo engolir os malditos papéis.
— Sim, senhor — disse suavemente, absorvendo a calma que não me cabia.
Ele foi embora, e achei que meu trabalho do dia seria tranquilo, ledo engano. Henrique voltou incontáveis vezes para me interromper, ligou para pedir coisas irrelevantes como cafés e guardanapos e para comentar detalhes e “erros” de trabalhos anteriores.
O contrato era importante, ele queria me ver errar.
Por algum motivo, queria me desestabilizar e garantir que as coisas não fossem suaves para mim.
Eu estava por um fio.
A convivência e o tom de voz de Henrique me recordavam algo que eu queira muito esquecer. Não eram apenas seus comentários ríspidos, suas críticas infundadas ou sua aparente loucura e impaciência. Era o que ele parecia representar, sua autoridade sem justificativa, sua moral sufocante.
Ficava me recordando algo que me quebrava aos poucos, enquanto as horas daquela manhã pareciam não querer terminar.
Terminei a revisão e, quando chegou meio-dia, corri para o refeitório.
Queria respirar.
Carla sorriu ao me ver, mas pareceu notar o quanto eu estava abatida e se compadeceu, com as sobrancelhas juntando num tom preocupado.
— Ainda bem que sobreviveu, as meninas comentaram que Henrique está mais pé no saco do que sempre — comentou, pegando uma bandeja na pilha.
— Nem me fala, achei que não iria chegar a hora do almoço — suspirei.
Tentei relaxar, aproveitar a companhia, tentando absorver a percepção de como Carla tornava aquele ambiente mais leve.
— Não quero te assustar, mas o último assistente de Henrique pediu demissão no mesmo dia, então você está indo bem — contou, enquanto enchia a boca de comida.
— Não é nenhuma surpresa, já quase grampeei a língua dele e não eram nem dez da manhã — resmunguei.
— Ninguém aqui tem coragem de enfrentá-lo, porque é um lunático surtado, então só o CEO podia fazer algo assim.
— Ótimo — ironizei. — Agora tenho que lidar com um lunático e com um CEO frio e calculista que não cuida nem dos próprios funcionários.
Carla arqueou uma sobrancelha.
— Você tem algo contra o Matheus?
Com pressa, meneei a cabeça em negativa.
— Não é nada, só acho que ele deveria mesmo fazer alguma coisa sobre isso.
— Não parece ser só isso, o que não quer admitir? Parece mesmo incomodada.
— Não estou incomodada — declarei, cortando um pedaço do frango com mais violência do que devia.
— E eu sou a rainha da Inglaterra — Carla riu, encarnado as gotas de molho que mancharam a mesa. — Se precisar falar sobre isso, estou aqui.
— Certo, muito obrigada, se eu lembrar de algo podemos conversar sobre isso.
Pisquei e ela riu de novo.
Gostava dela, porque não fazia perguntas difíceis e a coisa que eu menos queria agora era descobrir porque Matheus me deixava tão incomodada.
Não imaginei que o dia pudesse piorar, mas a comida deu forças a Henrique, que estava ainda pior do que de manhã. Aos gritos, criticava todas as coisas que eu fazia, e não parava de se curvar sobre meu computador e encostar em mim, tentando corrigir minhas planilhas enquanto os outros funcionários me encaravam, complacentes, mas sem dizer uma palavra.Eu queria morrer.— Está tudo errado! — Sem aviso, jogou outra pilha de papéis sobre minha mesa, e a xícara de café quase caiu. — Não te mandei revisar de novo? Os números estão errados!Me esforçava ao máximo para manter a compostura, cerrando os dentes e engolindo meus suspiros de frustração.— Já revisei duas vezes, senhor, mas posso olhar de novo — murmurei. — Só que eu realmente não faço ideia do que está errado, pode por favor me explicar?Um grande erro.— Faça de novo desde o começo! Eu preciso te explicar tudo? Acha mesmo que merece continuar aqui — me cortou, com um rugido arrogante e repleto de desdém.Não estava mais aguentan
Parei diante da porta, o coração batia violentamente no peito, enquanto eu tentava reunir coragem para entrar. Depois do dia caótico, claro que quando Henrique me enviou até ali, obedeci sem questionar, mas agora estava pagando por isso. Os sentimentos eram pesados e conflitantes, como se estivesse prestes a invadir um espaço proibido.Mesmo assim, empurrei a maçaneta.Os olhos vagaram pela sala, analisando cada detalhe, mapeando inconscientemente aquele local que me pareceu estranhamente íntimo. Matheus estava levemente inclinado para frente, com os cotovelos apoiados na mesa de mogno e um meio-sorriso nos lábios, enquanto os olhos estavam fixos apenas na mulher à sua frente.Se portava de uma maneira diferente da que pude acompanhar nos últimos dias, parecia tão relaxado quanto quando nos encontramos naquele bar. Era cordial. A luz iluminava seu rosto, destacando seus traços mais marcantes, que pareciam suaves e expressivos, diferente de sua frieza assustadora.Meus músculos travara
O corredor se estendia à minha frente, quase infinito. Meus passos eram pesados, como se todos os pensamentos e angústias acumulados nestes dias longos e ansiosos estivessem amarrados aos meus tornozelos, lutando para me impedir de sair do lugar. Meus dedos ainda amassavam as bordas dos papéis, e me lembrei de afrouxar o aperto, para não danificá-los.A verdade adoecedora era que eu queria sentir seu toque, como se a sensação pudesse ser transmitida através das digitais deixadas na celulose maculada por suor e tinta.Aquela semana tinha sido um inferno. Mal dormi nos últimos dias, e tinha aquela sensação adoecedora de que estava bem próxima do meu limite. Henrique corroía todas as minhas forças, se alimentando de minhas vontades como um parasita, e ainda não havia completado nem meu primeiro mês.No entanto, a sombra da presença de Matheus pelos corredores era sempre mais asfixiante, a sombra e a esperança de que ele viesse a me perceber outra vez. E todas as vezes que pensava nesse t
Aceitei a convocação sem pensar muito. Totalmente por impulso, porque sabia que recusar não pegaria bem. Eu estava em período de testes, não poderia simplesmente me dar ao luxo de dizer não ao chefe, por pior que ele fosse. Mas se eu soubesse o quão torturante seriam as horas seguintes, poderia ter reconsiderado melhor.Henrique dirigia com a mão firme no volante, mas sua atenção estava em qualquer lugar, menos na estrada. O trânsito parecia um detalhe insignificante diante do verdadeiro centro das suas preocupações: a sua esposa.— Eu faço de tudo naquela casa e ela ainda reclama! — bufou grosseiramente, acelerando um pouco mais do que deveria. — E agora vem com essa história de terapia de casal. Como se eu tivesse tempo para isso! Quem é que banca as viagens, os jantares, os presentes? Sou eu! Mas, claro, eu sou o problema também! O que mais preciso fazer pra que aquela encostada fique satisfeita?Assenti com a cabeça, tentando não me encolher no banco. Não era a primeira vez que o
O vestido preto que escolhi era simples, elegante e seguro. Nada que chamasse atenção demais, mas também nada que me fizesse parecer deslocada em um evento como aquele. O tecido leve abraçava meu corpo sem marcar demais, e as alças finas revelavam meus ombros. Meus cabelos estavam presos em um coque baixo, e o batom vinho que passei foi a única ousadia que permiti a mim mesma. Encostei-me ao espelho do quarto do hotel, respirando fundo antes de sair. Ainda havia um nó no meu estômago, um peso que me acompanhava desde a viagem de carro com Henrique.Ao descer para a recepção, encontrei Henrique já me esperando no saguão. Ele usava um terno bem cortado, e o perfume forte denunciava que ele havia exagerado na quantidade. Quando seus olhos deslizaram sobre mim de cima a baixo, senti um arrepio desagradável.— Nada mal, Julia. — sorriu de lado, tomando um gole do uísque que segurava. — Mas talvez um pouco comportada demais. Está parecendo uma freira.Engoli seco, apertando minha bolsa entr
O ar fresco do jardim me trouxe um alívio imediato. O som abafado da recepção ainda ecoava ao fundo, mas ali, entre as sombras das árvores e o perfume suave das flores noturnas, parecia um outro mundo. Caminhei devagar pelo caminho de pedra, abraçando a mim mesma. Meu coração ainda estava acelerado, e a lembrança daquele telefone tocando depois da briga com Gabriel continuava grudada na minha mente como um veneno.Ouvi passos atrás de mim e me virei instintivamente. Matheus estava ali, com as mãos nos bolsos do terno, me observando. Seu olhar era intenso, mas sem o julgamento que eu esperava. Apenas observador, paciente.— Está fugindo de novo? — Sua voz era baixa, quase gentil.Soltei um suspiro e dei de ombros. — Talvez só precisando respirar. E você? O que está fazendo aqui?— Precisando respirar também. — Ele sorriu de lado e caminhou até mim, parando a uma distância segura. — Parece que você teve uma noite difícil.Ri sem humor, desviando o olhar. — E você percebeu isso tão fác
O silêncio no quarto de hotel era cortado apenas pelo ruído distante da cidade lá fora. Me virei na cama, puxando os lençóis até o queixo, tentando me entregar ao sono. Mas algo me despertou.Um som baixo. Irregular.Abri os olhos, franzindo a testa. Era quase como uma respiração acelerada.Pisquei algumas vezes, tentando entender se tinha sido apenas coisa da minha cabeça. Mas lá estava de novo, vindo de algum lugar além da porta que separava o meu quarto do de Matheus.A inquietação tomou conta de mim.Eu podia simplesmente ignorar. Me virar para o outro lado e tentar dormir. Não era problema meu. Matheus e eu não éramos amigos, apenas colegas de trabalho. Pior que isso, éramos chefe e funcionária. Mas algo me dizia que aquilo não era normal.Joguei os lençóis para o lado e me levantei. Meus pés tocaram o chão frio, e um arrepio percorreu minha pele quando me aproximei da porta entreaberta. Hesitei, mordendo o lábio, antes de empurrá-la levemente.A cena diante de mim fez meu peito
A manhã seguinte foi estranhamente silenciosa.Depois da noite anterior, eu não sabia como agir perto de Matheus. Ele também não parecia saber como agir perto de mim. Durante a reunião com os investidores, mantivemos a mesma formalidade de sempre — olhares calculados, palavras bem escolhidas. Mas havia algo diferente no ar.Era uma amizade silenciosa.Não precisávamos falar sobre o que aconteceu. Sobre como eu o vi no seu momento mais vulnerável. Sobre como ele segurou minha mão como se precisasse de algo firme para se apoiar.Mas mesmo sem falar, eu sentia.Para um homem como ele devia ser algo novo ter expressado tamanha vulnerabilidade na frente de uma quase desconhecida, ainda mais uma funcionária. Me lembrei da noite em que nos conhecemos, de ter expressado seus pensamentos sobre se sentir pressionado, e comecei a achar ser um equívoco da minha parte, sequer sugerir, que poderíamos nos tornar amigos.Pensei que tudo voltaria a ser como antes.Mas, fui surpreendida, quando voltam