Capítulo Oito

O corredor se estendia à minha frente, quase infinito. Meus passos eram pesados, como se todos os pensamentos e angústias acumulados nestes dias longos e ansiosos estivessem amarrados aos meus tornozelos, lutando para me impedir de sair do lugar. Meus dedos ainda amassavam as bordas dos papéis, e me lembrei de afrouxar o aperto, para não danificá-los.

A verdade adoecedora era que eu queria sentir seu toque, como se a sensação pudesse ser transmitida através das digitais deixadas na celulose maculada por suor e tinta.

Aquela semana tinha sido um inferno. Mal dormi nos últimos dias, e tinha aquela sensação adoecedora de que estava bem próxima do meu limite. Henrique corroía todas as minhas forças, se alimentando de minhas vontades como um parasita, e ainda não havia completado nem meu primeiro mês.

No entanto, a sombra da presença de Matheus pelos corredores era sempre mais asfixiante, a sombra e a esperança de que ele viesse a me perceber outra vez. E todas as vezes que pensava nesse tipo de coisa, me vinha à cabeça o rosto de Gabriel, seu sorriso profano e ameaçador, como se estivesse me acusando de um crime.

Além disso, meu aniversário estava chegando.

E seu aniversário de morte também.

Já faz cinco anos, mas doía como se fosse acontecer hoje e não houvesse nada a se fazer para que fosse evitado.

Parei no meio do corredor, com a mão contra o peito, como se ele fosse explodir. Me encostei na parede, procurando forças para caminhar até o elevador e sair logo dali. Bastava uma breve memória, um ínfimo pensamento e tudo começava a ruir de novo.

Como deixei as coisas chegarem a esse ponto?

Nem depois de morto Gabriel deixava de me ferir.

A última vez que o vi vivo, ele estava gritando comigo.

Aquele era meu aniversário, a data maculada pelo seu pedido de namoro público, para que a comemoração não fosse só minha pelo tempo em que estivéssemos juntos. Eu estava exausta, não queria comemorar, mas tudo sempre girava ao redor dele. Discutimos. Seus olhos faiscavam enquanto se continha para não avançar em mim, achei que fosse me bater quando sua gentileza começou a evaporar. Não era a primeira vez, sempre acontecia, mas eu continuava me convencendo de que as coisas iriam mudar.

Gabriel tinha um sorriso doce, era cuidadoso, e fazia parecer que seu amor era real. Mas era sempre ensaiado, com segundas intenções, para me convencer a fazer o que queria.

Era sua forma de me controlar.

Se eu o amasse o suficiente, talvez fizesse suas vontades para o resto da vida.

A pior parte, é que eu sabia, e continuava rezando para que as coisas fossem diferentes. Me fizeram acreditar que bastava fazer tudo da forma que ele quisesse e as coisas se manteriam sob controle, nada mudaria, e seu amor seria real e completo para sempre. 

Eu só precisava amá-lo da maneira que queria, e seríamos felizes.

Mas tudo tem um ponto final.

E eu cansei.

Explodi.

Naquela noite, não cedi às suas chantagens, destruí o clima, disse que o aniversário era meu e que não podia me tratar daquele jeito. Perdi o controle. Ele saiu de casa, e eu fiquei sozinha, com o coração acelerado, com o medo obstruindo meus movimentos e tapando minha garganta. Mas aquilo precisava acabar e, mesmo horas depois, quando Gabriel me ligou bêbado, dizendo que eu o faria cometer uma loucura, não cedi.

Me arrependo amargamente de ter desejado que aquele homem desaparecesse para sempre da minha vida.

Mas eu achei que iria morrer.

Só que, naquela noite, quem morreu foi ele.

O telefone tocou, era madrugada e eu tinha adormecido depois de uma longa crise de choro. Ainda tremia quando atendi, era como se meu corpo soubesse, como se aqueles fios dolorosos e pulsantes que nos prendessem tivessem se soltado e um vazio aniquilador tivesse se imposto no lugar. 

A voz fria e profissional informou o acidente, o impacto brutal, o carro amassado e o corpo preso nas ferragens. Ouvi o barulho das sirenes, mas o policial informou, com pesar, que não puderam fazer nada. Gabriel morreu antes da ambulância chegar. Ele dirigia rápido demais, não teve tempo de frear, ou não quiz fazê-lo.

E essa frase me perseguiria por muito tempo.

Meus pais tentaram me convencer de que tinha sido apenas um descuido.

Mas meu coração repetia que não, talvez não fosse, talvez ele tivesse me pedido ajuda quando tentou reatar.

Talvez minhas palavras o tivessem matado, selado seu destino.

Essa dúvida então me perseguiu, sufocando pelos dias que antecipavam a data maldita, a data do meu aniversário. Mesmo após cinco anos, ainda não tinha recuperado a noção de saber como ser grata pela minha própria vida quando havia destruído várias.

Tirado uma.

Fechei os olhos, tentando me agarrar ao presente, tentando não permitir que a culpa se infiltrasse mais uma vez.

Mas então, Matheus surgiu na minha mente.

A lembrança de seu rosto, da forma como seus olhos me analisaram antes de eu sair da sala, da doçura contida na forma como disse meu nome. Não uma doçura ensaiada, manipuladora. Não como Gabriel fazia. Matheus era diferente. Sua gentileza parecia real, ainda que inconstante, ainda que envolta em mudanças de humor que eu não conseguia compreender.

Mas houve momentos em que sua frieza me fez estremecer. Em que o olhar distante, a expressão carregada, a falta de paciência me fizeram lembrar Matheus. E eu odiei isso. Odiei o aperto no peito, o medo irracional de que os dois fossem iguais. De que, no final, eu estivesse caindo na mesma armadilha, como uma tola incapaz de aprender.

E então, me senti patética. Porque, no fundo, uma parte de mim queria desesperadamente que Matheus fosse diferente. Que ele não fosse só mais uma repetição do passado, que sua bondade fosse real, que seu jeito gentil não escondesse algo sombrio por trás. Eu não queria precisar disso, não queria depender da ideia de que alguém como ele poderia ser seguro.

E isso me assustava. Porque se fosse real, eu não sabia o que fazer com isso. Não sabia se poderia confiar.

Apertei os olhos, tentando afastar essas sensações, tentando ignorar que, apesar de tudo, havia algo em Matheus que me fazia querer ficar. Algo que me fazia querer entendê-lo.

E talvez esse fosse o meu maior perigo.

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