O corredor se estendia à minha frente, quase infinito. Meus passos eram pesados, como se todos os pensamentos e angústias acumulados nestes dias longos e ansiosos estivessem amarrados aos meus tornozelos, lutando para me impedir de sair do lugar. Meus dedos ainda amassavam as bordas dos papéis, e me lembrei de afrouxar o aperto, para não danificá-los.
A verdade adoecedora era que eu queria sentir seu toque, como se a sensação pudesse ser transmitida através das digitais deixadas na celulose maculada por suor e tinta.
Aquela semana tinha sido um inferno. Mal dormi nos últimos dias, e tinha aquela sensação adoecedora de que estava bem próxima do meu limite. Henrique corroía todas as minhas forças, se alimentando de minhas vontades como um parasita, e ainda não havia completado nem meu primeiro mês.
No entanto, a sombra da presença de Matheus pelos corredores era sempre mais asfixiante, a sombra e a esperança de que ele viesse a me perceber outra vez. E todas as vezes que pensava nesse tipo de coisa, me vinha à cabeça o rosto de Gabriel, seu sorriso profano e ameaçador, como se estivesse me acusando de um crime.
Além disso, meu aniversário estava chegando.
E seu aniversário de morte também.
Já faz cinco anos, mas doía como se fosse acontecer hoje e não houvesse nada a se fazer para que fosse evitado.
Parei no meio do corredor, com a mão contra o peito, como se ele fosse explodir. Me encostei na parede, procurando forças para caminhar até o elevador e sair logo dali. Bastava uma breve memória, um ínfimo pensamento e tudo começava a ruir de novo.
Como deixei as coisas chegarem a esse ponto?
Nem depois de morto Gabriel deixava de me ferir.
A última vez que o vi vivo, ele estava gritando comigo.
Aquele era meu aniversário, a data maculada pelo seu pedido de namoro público, para que a comemoração não fosse só minha pelo tempo em que estivéssemos juntos. Eu estava exausta, não queria comemorar, mas tudo sempre girava ao redor dele. Discutimos. Seus olhos faiscavam enquanto se continha para não avançar em mim, achei que fosse me bater quando sua gentileza começou a evaporar. Não era a primeira vez, sempre acontecia, mas eu continuava me convencendo de que as coisas iriam mudar.
Gabriel tinha um sorriso doce, era cuidadoso, e fazia parecer que seu amor era real. Mas era sempre ensaiado, com segundas intenções, para me convencer a fazer o que queria.
Era sua forma de me controlar.
Se eu o amasse o suficiente, talvez fizesse suas vontades para o resto da vida.
A pior parte, é que eu sabia, e continuava rezando para que as coisas fossem diferentes. Me fizeram acreditar que bastava fazer tudo da forma que ele quisesse e as coisas se manteriam sob controle, nada mudaria, e seu amor seria real e completo para sempre.
Eu só precisava amá-lo da maneira que queria, e seríamos felizes.
Mas tudo tem um ponto final.
E eu cansei.
Explodi.
Naquela noite, não cedi às suas chantagens, destruí o clima, disse que o aniversário era meu e que não podia me tratar daquele jeito. Perdi o controle. Ele saiu de casa, e eu fiquei sozinha, com o coração acelerado, com o medo obstruindo meus movimentos e tapando minha garganta. Mas aquilo precisava acabar e, mesmo horas depois, quando Gabriel me ligou bêbado, dizendo que eu o faria cometer uma loucura, não cedi.
Me arrependo amargamente de ter desejado que aquele homem desaparecesse para sempre da minha vida.
Mas eu achei que iria morrer.
Só que, naquela noite, quem morreu foi ele.
O telefone tocou, era madrugada e eu tinha adormecido depois de uma longa crise de choro. Ainda tremia quando atendi, era como se meu corpo soubesse, como se aqueles fios dolorosos e pulsantes que nos prendessem tivessem se soltado e um vazio aniquilador tivesse se imposto no lugar.
A voz fria e profissional informou o acidente, o impacto brutal, o carro amassado e o corpo preso nas ferragens. Ouvi o barulho das sirenes, mas o policial informou, com pesar, que não puderam fazer nada. Gabriel morreu antes da ambulância chegar. Ele dirigia rápido demais, não teve tempo de frear, ou não quiz fazê-lo.
E essa frase me perseguiria por muito tempo.
Meus pais tentaram me convencer de que tinha sido apenas um descuido.
Mas meu coração repetia que não, talvez não fosse, talvez ele tivesse me pedido ajuda quando tentou reatar.
Talvez minhas palavras o tivessem matado, selado seu destino.
Essa dúvida então me perseguiu, sufocando pelos dias que antecipavam a data maldita, a data do meu aniversário. Mesmo após cinco anos, ainda não tinha recuperado a noção de saber como ser grata pela minha própria vida quando havia destruído várias.
Tirado uma.
Fechei os olhos, tentando me agarrar ao presente, tentando não permitir que a culpa se infiltrasse mais uma vez.
Mas então, Matheus surgiu na minha mente.
A lembrança de seu rosto, da forma como seus olhos me analisaram antes de eu sair da sala, da doçura contida na forma como disse meu nome. Não uma doçura ensaiada, manipuladora. Não como Gabriel fazia. Matheus era diferente. Sua gentileza parecia real, ainda que inconstante, ainda que envolta em mudanças de humor que eu não conseguia compreender.
Mas houve momentos em que sua frieza me fez estremecer. Em que o olhar distante, a expressão carregada, a falta de paciência me fizeram lembrar Matheus. E eu odiei isso. Odiei o aperto no peito, o medo irracional de que os dois fossem iguais. De que, no final, eu estivesse caindo na mesma armadilha, como uma tola incapaz de aprender.
E então, me senti patética. Porque, no fundo, uma parte de mim queria desesperadamente que Matheus fosse diferente. Que ele não fosse só mais uma repetição do passado, que sua bondade fosse real, que seu jeito gentil não escondesse algo sombrio por trás. Eu não queria precisar disso, não queria depender da ideia de que alguém como ele poderia ser seguro.
E isso me assustava. Porque se fosse real, eu não sabia o que fazer com isso. Não sabia se poderia confiar.
Apertei os olhos, tentando afastar essas sensações, tentando ignorar que, apesar de tudo, havia algo em Matheus que me fazia querer ficar. Algo que me fazia querer entendê-lo.
E talvez esse fosse o meu maior perigo.
Aceitei a convocação sem pensar muito. Totalmente por impulso, porque sabia que recusar não pegaria bem. Eu estava em período de testes, não poderia simplesmente me dar ao luxo de dizer não ao chefe, por pior que ele fosse. Mas se eu soubesse o quão torturante seriam as horas seguintes, poderia ter reconsiderado melhor.Henrique dirigia com a mão firme no volante, mas sua atenção estava em qualquer lugar, menos na estrada. O trânsito parecia um detalhe insignificante diante do verdadeiro centro das suas preocupações: a sua esposa.— Eu faço de tudo naquela casa e ela ainda reclama! — bufou grosseiramente, acelerando um pouco mais do que deveria. — E agora vem com essa história de terapia de casal. Como se eu tivesse tempo para isso! Quem é que banca as viagens, os jantares, os presentes? Sou eu! Mas, claro, eu sou o problema também! O que mais preciso fazer pra que aquela encostada fique satisfeita?Assenti com a cabeça, tentando não me encolher no banco. Não era a primeira vez que o
O vestido preto que escolhi era simples, elegante e seguro. Nada que chamasse atenção demais, mas também nada que me fizesse parecer deslocada em um evento como aquele. O tecido leve abraçava meu corpo sem marcar demais, e as alças finas revelavam meus ombros. Meus cabelos estavam presos em um coque baixo, e o batom vinho que passei foi a única ousadia que permiti a mim mesma. Encostei-me ao espelho do quarto do hotel, respirando fundo antes de sair. Ainda havia um nó no meu estômago, um peso que me acompanhava desde a viagem de carro com Henrique.Ao descer para a recepção, encontrei Henrique já me esperando no saguão. Ele usava um terno bem cortado, e o perfume forte denunciava que ele havia exagerado na quantidade. Quando seus olhos deslizaram sobre mim de cima a baixo, senti um arrepio desagradável.— Nada mal, Julia. — sorriu de lado, tomando um gole do uísque que segurava. — Mas talvez um pouco comportada demais. Está parecendo uma freira.Engoli seco, apertando minha bolsa entr
O ar fresco do jardim me trouxe um alívio imediato. O som abafado da recepção ainda ecoava ao fundo, mas ali, entre as sombras das árvores e o perfume suave das flores noturnas, parecia um outro mundo. Caminhei devagar pelo caminho de pedra, abraçando a mim mesma. Meu coração ainda estava acelerado, e a lembrança daquele telefone tocando depois da briga com Gabriel continuava grudada na minha mente como um veneno.Ouvi passos atrás de mim e me virei instintivamente. Matheus estava ali, com as mãos nos bolsos do terno, me observando. Seu olhar era intenso, mas sem o julgamento que eu esperava. Apenas observador, paciente.— Está fugindo de novo? — Sua voz era baixa, quase gentil.Soltei um suspiro e dei de ombros. — Talvez só precisando respirar. E você? O que está fazendo aqui?— Precisando respirar também. — Ele sorriu de lado e caminhou até mim, parando a uma distância segura. — Parece que você teve uma noite difícil.Ri sem humor, desviando o olhar. — E você percebeu isso tão fác
O silêncio no quarto de hotel era cortado apenas pelo ruído distante da cidade lá fora. Me virei na cama, puxando os lençóis até o queixo, tentando me entregar ao sono. Mas algo me despertou.Um som baixo. Irregular.Abri os olhos, franzindo a testa. Era quase como uma respiração acelerada.Pisquei algumas vezes, tentando entender se tinha sido apenas coisa da minha cabeça. Mas lá estava de novo, vindo de algum lugar além da porta que separava o meu quarto do de Matheus.A inquietação tomou conta de mim.Eu podia simplesmente ignorar. Me virar para o outro lado e tentar dormir. Não era problema meu. Matheus e eu não éramos amigos, apenas colegas de trabalho. Pior que isso, éramos chefe e funcionária. Mas algo me dizia que aquilo não era normal.Joguei os lençóis para o lado e me levantei. Meus pés tocaram o chão frio, e um arrepio percorreu minha pele quando me aproximei da porta entreaberta. Hesitei, mordendo o lábio, antes de empurrá-la levemente.A cena diante de mim fez meu peito
A manhã seguinte foi estranhamente silenciosa.Depois da noite anterior, eu não sabia como agir perto de Matheus. Ele também não parecia saber como agir perto de mim. Durante a reunião com os investidores, mantivemos a mesma formalidade de sempre — olhares calculados, palavras bem escolhidas. Mas havia algo diferente no ar.Era uma amizade silenciosa.Não precisávamos falar sobre o que aconteceu. Sobre como eu o vi no seu momento mais vulnerável. Sobre como ele segurou minha mão como se precisasse de algo firme para se apoiar.Mas mesmo sem falar, eu sentia.Para um homem como ele devia ser algo novo ter expressado tamanha vulnerabilidade na frente de uma quase desconhecida, ainda mais uma funcionária. Me lembrei da noite em que nos conhecemos, de ter expressado seus pensamentos sobre se sentir pressionado, e comecei a achar ser um equívoco da minha parte, sequer sugerir, que poderíamos nos tornar amigos.Pensei que tudo voltaria a ser como antes.Mas, fui surpreendida, quando voltam
O restaurante escolhido para o jantar de negócios do nosso último dia era sofisticado e discreto, localizado no terraço de um hotel cinco estrelas. Luzes baixas, velas acesas sobre a mesa e uma vista panorâmica da cidade que brilhava abaixo de nós.Um ambiente perfeito para uma reunião corporativa — ou para algo completamente diferente. Eu sabia que nossa utopia estava chegando ao fim, e fiquei ansiosa com a possibilidade de as coisas voltarem exatamente ao que eram antes.Mas eu não deveria estar pensando nisso.Matheus estava ao meu lado, impecável em um terno escuro, sua presença dominando o ambiente sem esforço. O perfume amadeirado e o brilho das luzes refletindo em seus olhos verdes impossibilitavam ignorá-lo.Eu me obriguei a manter a postura profissional enquanto discutiam números e estratégias com os investidores, e eu era obrigada a anotar tudo, enquanto era monitorada por Henrique. Mas era difícil.Porque toda vez que eu desviava o olhar para ele, Matheus já estava me obser
Ouvia a música vibrar pelas paredes, as penetrando dramaticamente, como se o som e o ambiente fossem um só. Sacudindo o ar e ocultando sussurros secretos dos presentes. As luzes piscavam, e as cores neon implodiram em erupções luminosas, ora quente, ora frias, enfeitando a pele das pessoas que dançavam ao meu redor. Tão contentes, tão alheios. Construindo sozinhos sua própria serenata particular de felicidade, loucura, empolgação e desejo, como se estivessem dispostos a me causar certo grau de inveja. Eu não queria estar ali.No entanto, minha melhor amiga – Sofia —, sempre foi muito boa com oratória. Filha de advogados e campeã municipal de redação, claro que falava mais que uma matraca e o suficiente para me meter nisso. Eu, que estava desempregada e deprimida, e passara as últimas semanas enviando e-mails e andando pela cidade em entrevistas medonhas, com pessoas terríveis que nem olhavam na minha cara. "Vamos lá, Julia! Não é crime nenhum, você precisa respirar." Foi o que ela
Conversamos por um tempo, tempo este que me pareceram horas, embora tenha sido apenas parte da noite. As barreiras que eu tanto me esforçava para manter pareciam dispostas a desaparecer. Enquanto isso, meu interior derretia mediante sua atenção, sua voz grave, seus comentários inteligentes e sua lucidez perspicaz. Em pouco tempo estava rindo, a discretas gargalhadas, embalada numa felicidade que há muito tempo não conhecia.Até que Matheus tocou minha mão. Um gesto pequeno, quase insignificante. Mas foi como se uma corrente elétrica passasse entre nós, não consegui conter o salto em meu coração, nem a retraída de meus músculos que desejaram se afastar mas não conseguiram, e Matheus percebeu. Seu olhar se tornou ainda mais intenso, era como um teste silencioso, como se desejasse com unhas e dentes estar certo sobre algo.— Julia — ele murmurou, e meu nome na sua boca soou assustador. — Eu não costumo insistir quando percebo que alguém está fugindo, mas não quero que fuja de mim.Aque