Parei diante da porta, o coração batia violentamente no peito, enquanto eu tentava reunir coragem para entrar. Depois do dia caótico, claro que quando Henrique me enviou até ali, obedeci sem questionar, mas agora estava pagando por isso. Os sentimentos eram pesados e conflitantes, como se estivesse prestes a invadir um espaço proibido.
Mesmo assim, empurrei a maçaneta.
Os olhos vagaram pela sala, analisando cada detalhe, mapeando inconscientemente aquele local que me pareceu estranhamente íntimo. Matheus estava levemente inclinado para frente, com os cotovelos apoiados na mesa de mogno e um meio-sorriso nos lábios, enquanto os olhos estavam fixos apenas na mulher à sua frente.
Se portava de uma maneira diferente da que pude acompanhar nos últimos dias, parecia tão relaxado quanto quando nos encontramos naquele bar. Era cordial. A luz iluminava seu rosto, destacando seus traços mais marcantes, que pareciam suaves e expressivos, diferente de sua frieza assustadora.
Meus músculos travaram, mas não podia continuar ali, parada como uma boba hipnotizada. Forcei uma tosse, chamando a atenção dos dois, mas só queria mesmo recuperar minha voz.
— Com licença — aquela atenção estendeu sobre mim um desconforto palpável.
Matheus me encarou, por um momento pareceu vacilar, mas aquela denúncia de sentimento foi tão rápida que achei ser apenas um delírio da minha mente idiota. O homem se recostou na cadeira e, mesmo cruzando os braços, continuava despreocupado e receptivo, sereno.
— Julia. — A fluidez com a qual meu nome saiu da sua boca me deixou inquieta, com mil borboletas revoando pelo estômago. — Essa é a Marina, estávamos discutindo sobre nosso novo projeto, soube que ajudou Henrique com isso.
— Ah, não foi nada, senhor — gaguejei, me sentindo ainda mais ridícula que antes.
Marina se virou para me olhar, distribuindo um sorriso simpático e lhe cumprimentei com um tímido. Ainda me sentia deslocada, o desconforto crescia, enraizado, como nós apertados por todo meu interior. Era como se eu estivesse cometendo um crime, roubando o tempo, invadindo aquele cenário que não me cabia.
Alguma coisa estava errada, e não tinha nada a ver com Marina, mas sim com Matheus. Aquele não era o mesmo homem dos últimos dias, mas também não parecia esforço da sua parte se portar assim, nem existia qualquer esforço no seu ato de sorrir em minha direção.
Na primeira vez que nos encontramos no escritório ele era frio, distante. Mas, enquanto contava à Marina sobre o projeto e comentava comigo sobre o que se tratava, mal o reconheci. Sua leveza era desconhecida, me deixava ansiosa, mas a queria toda para mim.
Estava agindo como uma tola.
Apertei o papel que segurava entre os dedos, me sentindo culpada. Era eu quem o fez agir daquele jeito? Minha presença o incomodava? Era Marina quem o fazia estar leve e cordial como estava agora? Feliz? Matheus e Gabriel pareciam tão iguais agora, a frustração e o assombro me penetraram como vergalhões, eu estava estragando a vida de alguém de novo.
Matheus com toda certeza não queria estar perto de mim.
Sim, ele podia só querer a impressionar, querer que assinasse algum contrato importante. Mas meu interior dizia que devia existir uma questão maior, algo que não poderia entender em um momento tão breve e imerso em ignorância.
Por que eu me importava com isso?
Não era da minha conta.
Matheus não devia significar nada para mim.
Não devia significar nada.
Os fantasmas do meu passado giravam sorridentes ao meu redor, enquanto eu tentava os ignorar e prestar atenção nas palavras compartilhadas comigo.
Respirei fundo, tentando me segurar no fio elucidativo das minhas obrigações, focar no motivo real que me levara até ali. Matheus era um enigma, mas não podia desvendá-lo agora, não podia querer isso.
Era sufocante qualquer tentativa de decifrá-lo.
Ajeitei os papéis nas mãos e me aproximei, sendo um tanto indelicada ao estendê-los em sua direção.
— Henrique precisa da sua assinatura — sentenciei, tentando manter a compostura enquanto o coração batia rápido a ponto de dilacerar meus ouvidos.
Matheus sorriu, pegando os documentos enquanto Marina conferia o celular, e a sala se manifestava num silêncio ansioso. Seus dedos roçaram de leve nos meus, por acidente, e tudo estremeceu. Enquanto lia algumas linhas e assinava, as rugas suaves de preocupação enfeitavam sua testa e impulsionavam as sobrancelhas para baixo, deixando-o com um semblante plácido e encantador.
Não conseguia deixar de perceber como sua expressão se fechava, perdida em pensamentos que eu nunca entenderia. Sério e profissional, aquele Matheus parecia uma versão ainda mais distante da realidade, naquele curto momento em que os minutos levaram séculos para passar.
Ele me chamou de volta, devolvendo os papéis para mim, e não nos tocamos desta vez. Os agarrei rapidamente, querendo que acabasse logo.
— Obrigada — me afastei.
— De nada — sua resposta foi firme, mas quase sussurrada, como se quisesse confessar um crime mas não pudesse haver testemunhas.
Nossos olhares se sustentaram por um tempo desnecessário, formando uma tensão assombrosa, densa, que eu podia tocar e congelar os dedos. Queria dizer mais alguma coisa, mas apenas sorri e me despedi dele e de Marina. Girei sobre os calcanhares e os deixei, sem olhar para trás.
O corredor agora parecia diferente, longo demais.
Enquanto caminhava, de volta para a sala do homem inescrupuloso para devolver os documentos, tinha plena ciência de que os pensamentos de Matheus estavam em mim; uma ilusão que me forcei a acreditar.
O corredor se estendia à minha frente, quase infinito. Meus passos eram pesados, como se todos os pensamentos e angústias acumulados nestes dias longos e ansiosos estivessem amarrados aos meus tornozelos, lutando para me impedir de sair do lugar. Meus dedos ainda amassavam as bordas dos papéis, e me lembrei de afrouxar o aperto, para não danificá-los.A verdade adoecedora era que eu queria sentir seu toque, como se a sensação pudesse ser transmitida através das digitais deixadas na celulose maculada por suor e tinta.Aquela semana tinha sido um inferno. Mal dormi nos últimos dias, e tinha aquela sensação adoecedora de que estava bem próxima do meu limite. Henrique corroía todas as minhas forças, se alimentando de minhas vontades como um parasita, e ainda não havia completado nem meu primeiro mês.No entanto, a sombra da presença de Matheus pelos corredores era sempre mais asfixiante, a sombra e a esperança de que ele viesse a me perceber outra vez. E todas as vezes que pensava nesse t
Aceitei a convocação sem pensar muito. Totalmente por impulso, porque sabia que recusar não pegaria bem. Eu estava em período de testes, não poderia simplesmente me dar ao luxo de dizer não ao chefe, por pior que ele fosse. Mas se eu soubesse o quão torturante seriam as horas seguintes, poderia ter reconsiderado melhor.Henrique dirigia com a mão firme no volante, mas sua atenção estava em qualquer lugar, menos na estrada. O trânsito parecia um detalhe insignificante diante do verdadeiro centro das suas preocupações: a sua esposa.— Eu faço de tudo naquela casa e ela ainda reclama! — bufou grosseiramente, acelerando um pouco mais do que deveria. — E agora vem com essa história de terapia de casal. Como se eu tivesse tempo para isso! Quem é que banca as viagens, os jantares, os presentes? Sou eu! Mas, claro, eu sou o problema também! O que mais preciso fazer pra que aquela encostada fique satisfeita?Assenti com a cabeça, tentando não me encolher no banco. Não era a primeira vez que o
O vestido preto que escolhi era simples, elegante e seguro. Nada que chamasse atenção demais, mas também nada que me fizesse parecer deslocada em um evento como aquele. O tecido leve abraçava meu corpo sem marcar demais, e as alças finas revelavam meus ombros. Meus cabelos estavam presos em um coque baixo, e o batom vinho que passei foi a única ousadia que permiti a mim mesma. Encostei-me ao espelho do quarto do hotel, respirando fundo antes de sair. Ainda havia um nó no meu estômago, um peso que me acompanhava desde a viagem de carro com Henrique.Ao descer para a recepção, encontrei Henrique já me esperando no saguão. Ele usava um terno bem cortado, e o perfume forte denunciava que ele havia exagerado na quantidade. Quando seus olhos deslizaram sobre mim de cima a baixo, senti um arrepio desagradável.— Nada mal, Julia. — sorriu de lado, tomando um gole do uísque que segurava. — Mas talvez um pouco comportada demais. Está parecendo uma freira.Engoli seco, apertando minha bolsa entr
O ar fresco do jardim me trouxe um alívio imediato. O som abafado da recepção ainda ecoava ao fundo, mas ali, entre as sombras das árvores e o perfume suave das flores noturnas, parecia um outro mundo. Caminhei devagar pelo caminho de pedra, abraçando a mim mesma. Meu coração ainda estava acelerado, e a lembrança daquele telefone tocando depois da briga com Gabriel continuava grudada na minha mente como um veneno.Ouvi passos atrás de mim e me virei instintivamente. Matheus estava ali, com as mãos nos bolsos do terno, me observando. Seu olhar era intenso, mas sem o julgamento que eu esperava. Apenas observador, paciente.— Está fugindo de novo? — Sua voz era baixa, quase gentil.Soltei um suspiro e dei de ombros. — Talvez só precisando respirar. E você? O que está fazendo aqui?— Precisando respirar também. — Ele sorriu de lado e caminhou até mim, parando a uma distância segura. — Parece que você teve uma noite difícil.Ri sem humor, desviando o olhar. — E você percebeu isso tão fác
O silêncio no quarto de hotel era cortado apenas pelo ruído distante da cidade lá fora. Me virei na cama, puxando os lençóis até o queixo, tentando me entregar ao sono. Mas algo me despertou.Um som baixo. Irregular.Abri os olhos, franzindo a testa. Era quase como uma respiração acelerada.Pisquei algumas vezes, tentando entender se tinha sido apenas coisa da minha cabeça. Mas lá estava de novo, vindo de algum lugar além da porta que separava o meu quarto do de Matheus.A inquietação tomou conta de mim.Eu podia simplesmente ignorar. Me virar para o outro lado e tentar dormir. Não era problema meu. Matheus e eu não éramos amigos, apenas colegas de trabalho. Pior que isso, éramos chefe e funcionária. Mas algo me dizia que aquilo não era normal.Joguei os lençóis para o lado e me levantei. Meus pés tocaram o chão frio, e um arrepio percorreu minha pele quando me aproximei da porta entreaberta. Hesitei, mordendo o lábio, antes de empurrá-la levemente.A cena diante de mim fez meu peito
A manhã seguinte foi estranhamente silenciosa.Depois da noite anterior, eu não sabia como agir perto de Matheus. Ele também não parecia saber como agir perto de mim. Durante a reunião com os investidores, mantivemos a mesma formalidade de sempre — olhares calculados, palavras bem escolhidas. Mas havia algo diferente no ar.Era uma amizade silenciosa.Não precisávamos falar sobre o que aconteceu. Sobre como eu o vi no seu momento mais vulnerável. Sobre como ele segurou minha mão como se precisasse de algo firme para se apoiar.Mas mesmo sem falar, eu sentia.Para um homem como ele devia ser algo novo ter expressado tamanha vulnerabilidade na frente de uma quase desconhecida, ainda mais uma funcionária. Me lembrei da noite em que nos conhecemos, de ter expressado seus pensamentos sobre se sentir pressionado, e comecei a achar ser um equívoco da minha parte, sequer sugerir, que poderíamos nos tornar amigos.Pensei que tudo voltaria a ser como antes.Mas, fui surpreendida, quando voltam
O restaurante escolhido para o jantar de negócios do nosso último dia era sofisticado e discreto, localizado no terraço de um hotel cinco estrelas. Luzes baixas, velas acesas sobre a mesa e uma vista panorâmica da cidade que brilhava abaixo de nós.Um ambiente perfeito para uma reunião corporativa — ou para algo completamente diferente. Eu sabia que nossa utopia estava chegando ao fim, e fiquei ansiosa com a possibilidade de as coisas voltarem exatamente ao que eram antes.Mas eu não deveria estar pensando nisso.Matheus estava ao meu lado, impecável em um terno escuro, sua presença dominando o ambiente sem esforço. O perfume amadeirado e o brilho das luzes refletindo em seus olhos verdes impossibilitavam ignorá-lo.Eu me obriguei a manter a postura profissional enquanto discutiam números e estratégias com os investidores, e eu era obrigada a anotar tudo, enquanto era monitorada por Henrique. Mas era difícil.Porque toda vez que eu desviava o olhar para ele, Matheus já estava me obser
Ouvia a música vibrar pelas paredes, as penetrando dramaticamente, como se o som e o ambiente fossem um só. Sacudindo o ar e ocultando sussurros secretos dos presentes. As luzes piscavam, e as cores neon implodiram em erupções luminosas, ora quente, ora frias, enfeitando a pele das pessoas que dançavam ao meu redor. Tão contentes, tão alheios. Construindo sozinhos sua própria serenata particular de felicidade, loucura, empolgação e desejo, como se estivessem dispostos a me causar certo grau de inveja. Eu não queria estar ali.No entanto, minha melhor amiga – Sofia —, sempre foi muito boa com oratória. Filha de advogados e campeã municipal de redação, claro que falava mais que uma matraca e o suficiente para me meter nisso. Eu, que estava desempregada e deprimida, e passara as últimas semanas enviando e-mails e andando pela cidade em entrevistas medonhas, com pessoas terríveis que nem olhavam na minha cara. "Vamos lá, Julia! Não é crime nenhum, você precisa respirar." Foi o que ela