No dia seguinte, acordei com meu celular vibrando sem parar. Notificações, mensagens, chamadas perdidas. A entrevista vazada com meu depoimento havia se espalhado como um incêndio pelas redes.O nome de Henrique estava entre os assuntos mais comentados. Ao lado do meu.Abri o Twitter e levei um segundo para entender a avalanche."A funcionária que teve coragem de falar. Que venham mais vozes.""Se até agora estavam caladas, é porque sabiam que ninguém ouviria. Agora é diferente."Mas nem todos os comentários eram assim. Alguns me chamavam de oportunista. Outros diziam que eu estava tentando destruir a carreira de um “homem de sucesso”. Havia até um vídeo manipulado de uma reunião antiga onde eu aparecia rindo de uma piada dele — como se aquilo fosse prova de consentimento.Os advogados de Henrique haviam começado sua defesa agressiva.“Desacreditar a vítima. Manual padrão”, pensei com amargura.Matheus veio até mim, os olhos vermelhos de cansaço, mas a expressão bem melhor que do dia
As mensagens começaram a chegar logo.Primeiro, uma DM de uma advogada de uma associação de mulheres que havia lido os relatos anônimos na matéria que vazou no fim de semana. Depois, uma jornalista de um portal progressista que cobria casos de assédio e corrupção corporativa. E, por fim, o mais inesperado: uma defensora pública querendo agendar uma conversa comigo “em caráter informal”, segundo suas palavras. Quase todas diziam a mesma coisa — que meu depoimento poderia ser importante não só para mim, mas para outras.Eu li tudo sem conseguir respirar direito.Parte de mim queria sumir. Outra parte, a que Matheus vinha ajudando a acordar aos poucos, sentia algo novo: força.O telefone vibrou de novo. Beatriz.“Estamos com você. Quase todas do time estão. E algumas mulheres de outros setores também querem te apoiar publicamente. Se você deixar.”Era estranho. Depois de tanto tempo me sentindo invisível ou silenciada, agora havia vozes surgindo das sombras. E mesmo que o medo ainda esti
— Ele acha que tá ajudando — murmurou. — Mas tudo o que faz é me lembrar do quanto eu nunca fui suficiente pra ele.Fui até ele, sentei ao seu lado e segurei sua mão.— Talvez você precise de distância. Às vezes o que a gente chama de família também adoece a gente.Matheus virou o rosto devagar e me encarou.— Você acha que eu devia cortar laços com ele?— Eu acho que você merece paz. E se ela não existe quando ele tá por perto... talvez seja um começo pensar sobre isso.Ele não respondeu. Apenas apertou minha mão com força, e ali, naquele gesto silencioso, eu senti que ele estava ouvindo. Talvez pela primeira vez.No elevador, o silêncio era diferente do anterior. Não havia tranquilidade. Só uma tensão latejante no ar.— Desculpa — ele disse, finalmente. — Por te expor a isso. Por ele.— Não é você quem tem que se desculpar.Ele esfregou o rosto com as mãos, visivelmente esgotado, se desfazendo num tipo de cansaço que parecia arrastá-lo para baixo como areia movediça.— Ele não enten
A estrada era quase deserta.Matheus dirigia com uma das mãos no volante e a outra entrelaçada à minha, repousando sobre meu colo. Às vezes ele cantava baixinho, outras apenas ficava em silêncio, os olhos perdidos na linha do horizonte. Não era o silêncio tenso de antes. Era como se, pela primeira vez em semanas, ele tivesse espaço para respirar.O rádio tocava uma música antiga, com arranjos suaves e voz rouca. Uma daquelas que a gente não sabe de onde conhece, mas parece feita pra aquele momento.Quando finalmente paramos, o sol já começava a cair. Encontramos uma pousada simples perto de uma praia deserta, com chalés de madeira e cheiro de maresia. O quarto era pequeno, mas confortável, com uma varanda voltada para o mar. Assim que entramos, largamos as mochilas no chão e deixamos as janelas abertas, deixando o vento invadir tudo.Eu me deitei de lado na cama e fiquei observando Matheus tirar os sapatos, o olhar perdido nos próprios movimentos.— Tá tudo bem? — perguntei baixinho.
Ouvia a música vibrar pelas paredes, as penetrando dramaticamente, como se o som e o ambiente fossem um só. Sacudindo o ar e ocultando sussurros secretos dos presentes. As luzes piscavam, e as cores neon implodiram em erupções luminosas, ora quente, ora frias, enfeitando a pele das pessoas que dançavam ao meu redor. Tão contentes, tão alheios. Construindo sozinhos sua própria serenata particular de felicidade, loucura, empolgação e desejo, como se estivessem dispostos a me causar certo grau de inveja. Eu não queria estar ali.No entanto, minha melhor amiga – Sofia —, sempre foi muito boa com oratória. Filha de advogados e campeã municipal de redação, claro que falava mais que uma matraca e o suficiente para me meter nisso. Eu, que estava desempregada e deprimida, e passara as últimas semanas enviando e-mails e andando pela cidade em entrevistas medonhas, com pessoas terríveis que nem olhavam na minha cara. "Vamos lá, Julia! Não é crime nenhum, você precisa respirar." Foi o que ela
Conversamos por um tempo, tempo este que me pareceram horas, embora tenha sido apenas parte da noite. As barreiras que eu tanto me esforçava para manter pareciam dispostas a desaparecer. Enquanto isso, meu interior derretia mediante sua atenção, sua voz grave, seus comentários inteligentes e sua lucidez perspicaz. Em pouco tempo estava rindo, a discretas gargalhadas, embalada numa felicidade que há muito tempo não conhecia.Até que Matheus tocou minha mão. Um gesto pequeno, quase insignificante. Mas foi como se uma corrente elétrica passasse entre nós, não consegui conter o salto em meu coração, nem a retraída de meus músculos que desejaram se afastar mas não conseguiram, e Matheus percebeu. Seu olhar se tornou ainda mais intenso, era como um teste silencioso, como se desejasse com unhas e dentes estar certo sobre algo.— Julia — ele murmurou, e meu nome na sua boca soou assustador. — Eu não costumo insistir quando percebo que alguém está fugindo, mas não quero que fuja de mim.Aque
O sábado de manhã chegou. De ressaca, só me levantei quando os reflexos da luz através do vidro, que batiam em meu rosto, se tornaram insuportáveis. Voltei a me deitar, tentando prolongar o silêncio tranquilo antes que o dia realmente começasse. A noite anterior ainda estava confusa, voltando aos poucos, assim como a culpa.Me sentia uma criminosa.Como se tivesse traído alguém.O celular vibrou sobre a mesa de cabeceira, desejei ignorá-lo, me fingir de morta e continuar ali até desaparecer. As mensagens matinais geralmente não traziam boas notícias, ainda mais em um sábado.Mas o peguei mesmo assim e, quando vi o remetente, meu coração deu um salto."Parabéns, Julia! Você foi aprovada no processo seletivo. Esperamos você na segunda-feira às 8h. Bem-vinda à equipe."Me sentei na cama, sem acreditar que aquela mensagem era mesmo para mim. Depois de meses tentando e me sustentando com uma mesada dada por meus pais, finalmente as portas voltavam a se abri. Senti o peito encher de alívio,
Pega de surpresa, me virei depressa, e o susto foi imenso quando a visão finalmente revelou quem se tratava.Meu coração saltou no peito, como se aquela fosse uma aparição ou uma alucinação ocasionada pela fadiga e cansaço.Mas era mesmo Matheus.Usava um terno impecável, olhava para a frente e admirava a vista do seu próprio jeito, como se não tivesse me reconhecido. Como se aquela sexta-feira tivesse acontecido apenas comigo.O encarei, esperando alguma reação, sem saber se deveria dizer ou não alguma coisa. Esperei por um olhar, reconhecimento, um sorriso, mas sua expressão não se alterou. Os olhos passaram por mim rapidamente, mas se manteve sério, como se eu fosse uma secretária qualquer.— Não esperava te encontrar aqui, mas espero que goste do trabalho.Frio.Ele estava frio como gelo e nossa troca de olhares não durou nem trinta segundos.Senti frustração, alivio, e tentei manter a compostura e continuar seguindo o mesmo tom que ele, como se não me importasse. A boate não tinh