Conversamos por um tempo, tempo este que me pareceram horas, embora tenha sido apenas parte da noite. As barreiras que eu tanto me esforçava para manter pareciam dispostas a desaparecer. Enquanto isso, meu interior derretia mediante sua atenção, sua voz grave, seus comentários inteligentes e sua lucidez perspicaz. Em pouco tempo estava rindo, a discretas gargalhadas, embalada numa felicidade que há muito tempo não conhecia.
Até que Matheus tocou minha mão.
Um gesto pequeno, quase insignificante. Mas foi como se uma corrente elétrica passasse entre nós, não consegui conter o salto em meu coração, nem a retraída de meus músculos que desejaram se afastar mas não conseguiram, e Matheus percebeu.
Seu olhar se tornou ainda mais intenso, era como um teste silencioso, como se desejasse com unhas e dentes estar certo sobre algo.
— Julia — ele murmurou, e meu nome na sua boca soou assustador. — Eu não costumo insistir quando percebo que alguém está fugindo, mas não quero que fuja de mim.
Aquelas palavras, aterradoras, acenderam um alerta e me mandaram ir embora, e eu queria ter ido.
Mas não fui.
Estava muito envolvida nas promessas implícitas em seus olhos e, por um instante, permiti-me esquecer de tudo. De todas as minhas próprias promessas, meus sacrifícios e minhas escolhas egoístas do passado que me fizeram chegar a esse tipo de momento da minha vida.
Desejei realmente que todas as memórias se fossem, só para que eu e aquele homem estranho pudéssemos ter um ao outro na noite mais louca e breve de toda minha vida.
Eu não fugi, mas não confirmei que foi por vontade própria, e tentei fazer parecer que suas palavras não haviam me atingido com a força com a qual atingiram.
Depois de mais alguns drinks, aceitei ir com ele até a pista de dança. A batida, agora mais calma e íntima, nos envolvia. Mesmo sabendo que deveria me afastar, me entreguei. Matheus tinha um toque gentil e firme, suas mãos tomaram posse de minha cintura como se meu corpo fosse dele. Minha derme reconheceu seu calor, despejando calafrios estrondosos por todos os cantos.
Cada movimento, cada troca de olhar parecia carregada de algo maior, algo que eu não conseguia nomear. A forma como ele me guiava, como sussurrava em meu ouvido, fazia com que eu esquecesse de tudo. Esqueci da dor, do passado, do medo de me envolver. Fazia tudo isso parecer um conto secreto e antigo, um sussurro que desaparecia aos poucos.
E quando a noite avançou, quando a música desacelerou e as luzes ficaram mais difusas, e a hora de partir foi se aproximando, percebi que não queria que aquilo acabasse.
Mas sabia que precisaria enfrentá-lo novamente, todos aqueles sentimentos e rancores sussurrados.
Tudo seria diferente.
Nunca mais nos veríamos, porque eu não devia ver ninguém, não desejava.
Não merecia.
No terraço da boate, o ar era mais fresco, fugimos do ar abafado da pista de dança, mas a verdade é que precisava de um último momento com ele, sem testemunhas. Precisava de um fôlego, me desconectar, mas seus passos vieram atrás de mim.
— Fugindo de novo? — A voz de Matheus era leve, mas a profundidade bagunçou minha respiração.
— Só precisava de um pouco de ar. — Cruzei os braços, queria interpor uma barreira física, uma barreira tão fácil de se ultrapassar que era doentio ser vista assim. — E você?
Ele encostou-se à grade, observando a cidade iluminada abaixo de nós.
— Talvez eu também precise de um pouco de ar — admitiu, me olhando de esguelha, enquanto apoiava os cotovelos na proteção.
Ficamos em silêncio por alguns instantes, apenas ouvindo a música de fundo, que tinha votlado a ser agitada. Queria encerrar isso ali, não era natural se apegar tanto a um desconhecido, eu só o havia visto uma vez na vida.
Mas Matheus não parecia o tipo de homem fácil de ignorar.
— Você tem um olhar triste — ele comentou, quebrando o silêncio. — Me faz querer protegê-la de algo que cresce dentro do seu peito.
Suas palavras foram introduzidas abruptamente, marcando a ferro e fogo meu coração.
Quem diz esse tipo de coisa para alguém que conheceu há horas em uma boate?
Ele era intenso demais.
Estava me arrastando com ele.
— E você fala como alguém que pode entender os outros apenas olhando, como se tivesse algum tipo de poder.
— Talvez eu possa. — Se voltou para mim, sério. — Vejo que está me afastando, e nunca vou insistir, mas sou sincero. Não posso protegê-la de si, mas posso compreender quando alguém está machucado. Não dá pra esconder.
Por um momento quase cedi, mas me repeti tudo.
O contexto.
Quem éramos.
Quem ele era.
Quem eu era.
Tudo o que havia perdido.
— Algumas coisas não precisam ser ditas, Matheus. — Sussurrei. — Prefiro que elas fiquem no passado.
Ele concordou.
A noite terminou pouco tempo depois, nossa despedida foi distante, decepcionante, como se o feitiço tivesse sido quebrado. Matheus me pagou um táxi, beijou minha bochecha e me deixou partir em minha infeliz e deprimente carruagem, e conclui, de fato, que nunca mais nos veríamos de novo.
E que assim seria. Um homem como ele não podia entrar na minha vida, não podia.
O sábado de manhã chegou. De ressaca, só me levantei quando os reflexos da luz através do vidro, que batiam em meu rosto, se tornaram insuportáveis. Voltei a me deitar, tentando prolongar o silêncio tranquilo antes que o dia realmente começasse. A noite anterior ainda estava confusa, voltando aos poucos, assim como a culpa.Me sentia uma criminosa.Como se tivesse traído alguém.O celular vibrou sobre a mesa de cabeceira, desejei ignorá-lo, me fingir de morta e continuar ali até desaparecer. As mensagens matinais geralmente não traziam boas notícias, ainda mais em um sábado.Mas o peguei mesmo assim e, quando vi o remetente, meu coração deu um salto."Parabéns, Julia! Você foi aprovada no processo seletivo. Esperamos você na segunda-feira às 8h. Bem-vinda à equipe."Me sentei na cama, sem acreditar que aquela mensagem era mesmo para mim. Depois de meses tentando e me sustentando com uma mesada dada por meus pais, finalmente as portas voltavam a se abri. Senti o peito encher de alívio,
Pega de surpresa, me virei depressa, e o susto foi imenso quando a visão finalmente revelou quem se tratava.Meu coração saltou no peito, como se aquela fosse uma aparição ou uma alucinação ocasionada pela fadiga e cansaço.Mas era mesmo Matheus.Usava um terno impecável, olhava para a frente e admirava a vista do seu próprio jeito, como se não tivesse me reconhecido. Como se aquela sexta-feira tivesse acontecido apenas comigo.O encarei, esperando alguma reação, sem saber se deveria dizer ou não alguma coisa. Esperei por um olhar, reconhecimento, um sorriso, mas sua expressão não se alterou. Os olhos passaram por mim rapidamente, mas se manteve sério, como se eu fosse uma secretária qualquer.— Não esperava te encontrar aqui, mas espero que goste do trabalho.Frio.Ele estava frio como gelo e nossa troca de olhares não durou nem trinta segundos.Senti frustração, alivio, e tentei manter a compostura e continuar seguindo o mesmo tom que ele, como se não me importasse. A boate não tinh
A manhã seguinte começou, tão agitada como sempre. A luz fria da manhã entrava pelas paredes de vidro do escritório moderno, as mesas em fileiras estavam organizadas — dentro do possível —, cada uma com sua própria pilha de documentos. O ar-condicionado soprava, zumbindo solenemente, um ruído relaxante naquele ambiente sem vida, se misturando ao som dos teclados que eram pressionados com maestria por todos os trabalhadores.Quando cheguei à minha mesa, o estômago chegou a embrulhar com a visão de Henrique mexendo nas minhas coisas e conferindo ele mesmo a pilha de documentos deixada por mim no organizador.— Até que enfim — disse, mas sem olhar na minha direção. — Tem até o meio-dia para revisar esse contrato, ouviu? Estou cheio de coisas, não terei tempo de revisar de novo seu trabalho, seja prolífica o suficiente para manter seu lugar aqui.Quase revirei os olhos, enquanto segurava a vontade de fazer ele mesmo engolir os malditos papéis.— Sim, senhor — disse suavemente, absorvendo
Não imaginei que o dia pudesse piorar, mas a comida deu forças a Henrique, que estava ainda pior do que de manhã. Aos gritos, criticava todas as coisas que eu fazia, e não parava de se curvar sobre meu computador e encostar em mim, tentando corrigir minhas planilhas enquanto os outros funcionários me encaravam, complacentes, mas sem dizer uma palavra.Eu queria morrer.— Está tudo errado! — Sem aviso, jogou outra pilha de papéis sobre minha mesa, e a xícara de café quase caiu. — Não te mandei revisar de novo? Os números estão errados!Me esforçava ao máximo para manter a compostura, cerrando os dentes e engolindo meus suspiros de frustração.— Já revisei duas vezes, senhor, mas posso olhar de novo — murmurei. — Só que eu realmente não faço ideia do que está errado, pode por favor me explicar?Um grande erro.— Faça de novo desde o começo! Eu preciso te explicar tudo? Acha mesmo que merece continuar aqui — me cortou, com um rugido arrogante e repleto de desdém.Não estava mais aguentan
Parei diante da porta, o coração batia violentamente no peito, enquanto eu tentava reunir coragem para entrar. Depois do dia caótico, claro que quando Henrique me enviou até ali, obedeci sem questionar, mas agora estava pagando por isso. Os sentimentos eram pesados e conflitantes, como se estivesse prestes a invadir um espaço proibido.Mesmo assim, empurrei a maçaneta.Os olhos vagaram pela sala, analisando cada detalhe, mapeando inconscientemente aquele local que me pareceu estranhamente íntimo. Matheus estava levemente inclinado para frente, com os cotovelos apoiados na mesa de mogno e um meio-sorriso nos lábios, enquanto os olhos estavam fixos apenas na mulher à sua frente.Se portava de uma maneira diferente da que pude acompanhar nos últimos dias, parecia tão relaxado quanto quando nos encontramos naquele bar. Era cordial. A luz iluminava seu rosto, destacando seus traços mais marcantes, que pareciam suaves e expressivos, diferente de sua frieza assustadora.Meus músculos travara
O corredor se estendia à minha frente, quase infinito. Meus passos eram pesados, como se todos os pensamentos e angústias acumulados nestes dias longos e ansiosos estivessem amarrados aos meus tornozelos, lutando para me impedir de sair do lugar. Meus dedos ainda amassavam as bordas dos papéis, e me lembrei de afrouxar o aperto, para não danificá-los.A verdade adoecedora era que eu queria sentir seu toque, como se a sensação pudesse ser transmitida através das digitais deixadas na celulose maculada por suor e tinta.Aquela semana tinha sido um inferno. Mal dormi nos últimos dias, e tinha aquela sensação adoecedora de que estava bem próxima do meu limite. Henrique corroía todas as minhas forças, se alimentando de minhas vontades como um parasita, e ainda não havia completado nem meu primeiro mês.No entanto, a sombra da presença de Matheus pelos corredores era sempre mais asfixiante, a sombra e a esperança de que ele viesse a me perceber outra vez. E todas as vezes que pensava nesse t
Aceitei a convocação sem pensar muito. Totalmente por impulso, porque sabia que recusar não pegaria bem. Eu estava em período de testes, não poderia simplesmente me dar ao luxo de dizer não ao chefe, por pior que ele fosse. Mas se eu soubesse o quão torturante seriam as horas seguintes, poderia ter reconsiderado melhor.Henrique dirigia com a mão firme no volante, mas sua atenção estava em qualquer lugar, menos na estrada. O trânsito parecia um detalhe insignificante diante do verdadeiro centro das suas preocupações: a sua esposa.— Eu faço de tudo naquela casa e ela ainda reclama! — bufou grosseiramente, acelerando um pouco mais do que deveria. — E agora vem com essa história de terapia de casal. Como se eu tivesse tempo para isso! Quem é que banca as viagens, os jantares, os presentes? Sou eu! Mas, claro, eu sou o problema também! O que mais preciso fazer pra que aquela encostada fique satisfeita?Assenti com a cabeça, tentando não me encolher no banco. Não era a primeira vez que o
O vestido preto que escolhi era simples, elegante e seguro. Nada que chamasse atenção demais, mas também nada que me fizesse parecer deslocada em um evento como aquele. O tecido leve abraçava meu corpo sem marcar demais, e as alças finas revelavam meus ombros. Meus cabelos estavam presos em um coque baixo, e o batom vinho que passei foi a única ousadia que permiti a mim mesma. Encostei-me ao espelho do quarto do hotel, respirando fundo antes de sair. Ainda havia um nó no meu estômago, um peso que me acompanhava desde a viagem de carro com Henrique.Ao descer para a recepção, encontrei Henrique já me esperando no saguão. Ele usava um terno bem cortado, e o perfume forte denunciava que ele havia exagerado na quantidade. Quando seus olhos deslizaram sobre mim de cima a baixo, senti um arrepio desagradável.— Nada mal, Julia. — sorriu de lado, tomando um gole do uísque que segurava. — Mas talvez um pouco comportada demais. Está parecendo uma freira.Engoli seco, apertando minha bolsa entr