Ouvia a música vibrar pelas paredes, as penetrando dramaticamente, como se o som e o ambiente fossem um só. Sacudindo o ar e ocultando sussurros secretos dos presentes. As luzes piscavam, e as cores neon implodiram em erupções luminosas, ora quente, ora frias, enfeitando a pele das pessoas que dançavam ao meu redor. Tão contentes, tão alheios. Construindo sozinhos sua própria serenata particular de felicidade, loucura, empolgação e desejo, como se estivessem dispostos a me causar certo grau de inveja.
Eu não queria estar ali.
No entanto, minha melhor amiga – Sofia —, sempre foi muito boa com oratória. Filha de advogados e campeã municipal de redação, claro que falava mais que uma matraca e o suficiente para me meter nisso. Eu, que estava desempregada e deprimida, e passara as últimas semanas enviando e-mails e andando pela cidade em entrevistas medonhas, com pessoas terríveis que nem olhavam na minha cara.
"Vamos lá, Julia! Não é crime nenhum, você precisa respirar."
Foi o que ela disse por último, e percebi pelo seu tom que era mesmo pro meu bem, eu precisava me distrair, ou ficaria maluca muito em breve. Foi então que coloquei um vestido esquecido no fundo do armário, com um decote profundo e muito brilho, e agora estava ali naquele bar, bebendo para distrair minha cabeça um pouco.
Mas, já estava ficando ansiosa, porque sentia olhos pesados em cima de mim. Ajeitei meu decote, desconfortável, querendo me encolher e esconder como um caracol.
Havia um homem do outro lado do bar, me olhando por intervalos, como se tentasse disfarçar. Mas estava falhando miseravelmente.
Tinha cabelos dourados, num corte moderno, fios não muito curtos que marcavam seu queixo. Usava uma camisa branca desabotoada, deixando à mostra parte do seu peitoral liso. A camisa estava amassada e dobrada na altura dos cotovelos, e um pingente prateado brilhava na altura do primeiro botão preso. Sua aura era poderosa e irresistível, quase me fez sentir culpada, nua. Não me sentia assim pela sua beleza, que era óbvia, mas sim pela forma como seus olhos perscrutavam ao redor, curiosos, ansiosos. Me analisava com um cuidado e crueza preocupante, como se conseguisse ver algo meu que ninguém mais via, como se tivéssemos ambos um fio extenso e embolado nos ligando, e só agora viemos a nos conectar.
Não gostava disso, não gostava do fato deste seu maldito fio estar conectado a mim.
Desviei o olhar, sentindo certo grau de taquicardia. Eu não estava pronta, não estava ali para isso, só queria me divertir com minhas amigas e evitar os homens o máximo que pudesse.
— Ju, aquele cara tá te olhando há um tempão — Sofia esbarrou no meu braço discretamente, me contando algo que já havia percebido. — Por que não vai falar com ele?
— Não, Sofia, eu tenho que ir pra casa, não estou aqui pra isso — a repreendi e Sofia fez uma careta, ela odiava esse tipo de discussão comigo.
Me virei para pegar minha bolsa, mas os olhos de minha amiga se arregalaram, e a mulher colocou o cabelo preto atrás da orelha enquanto encarava algo às minhas costas. Senti um arrepio, ao mesmo tempo que a temperatura mudou, e algumas luzes foram ocultas por uma sombra que escureceu minhas mãos estendidas.
— Boa noite, meninas, espero que não se importem com minha indelicadeza — uma voz profunda soou, e girei na banqueta.
Ao erguer os olhos, lá estava ele. Era ainda mais impressionante de perto, como a gravura de um anjo ou de um príncipe perdido dos contos de fada. Seu perfume, apesar de amadeirado, tinha notas suaves que denunciavam seu bom gosto. Meu cérebro queria se afastar, mas não consegui, estava sem fôlego.
— Boa noite — não quis parecer grosseira, então o respondi e, por incrível que pareça, minha voz pareceu firme.
— Eu sou Matheus, posso saber seus nomes? — ele fez sinal para o barman, e o rapaz colocou três copos chiques na nossa frente, com alguma bebida que com certeza nunca provei.
— Prazer, eu sou a Sofia — minha amiga respondeu, e os dois apertaram as mãos, um gesto amistoso e estranhamente distante.
Não compreendi, já que normalmente era ela quem sempre chamava mais a atenção, desde a escola. Ele com toda certeza perceberia logo o quanto ela estava disposta a sair dali com ele, e o quanto eu era sem graça e não tinha o menor interesse.
— Julia — respondi, e ele apertou minha mão.
Seu toque fez meu braço arder como se tivesse pegado fogo, e tudo estremeceu dentro de mim, enquanto por fora tentava me manter impassível.
— Muito prazer, meninas — tomou um gole de sua bebida, se sentando na banqueta ao meu lado. Apoiava um pé no chão e o outro no apoio do banco, estava voltado em minha direção. — Mas por que, apesar de linda, você parece tão entediada em uma noite divertida dessas? Posso saber, Julia?
Pega desprevenida, acabei rindo, e me senti idiota porque não queria que o rapaz sentisse que o estava dando algum tipo de abertura. Não ria assim faz tempo, mas sua simpatia me cativou, e até me senti grata por isso.
Realmente, não andava muito fácil me divertir.
— Bem, é que fui arrastada para um lugar em que não queria estar — dei de ombros, provando finalmente a bebida.
Neste momento, o celular de Sofia apitou, e fiquei alarmada.
— Foi mal, gente, vou precisar ir — minha amiga informou, ficando de pé na mesma hora.
— O que aconteceu? Eu vou com você! — Me prontifiquei, mas ela não respondeu, se abaixando para me dar um abraço.
— Nada grave, se diverte aí com o bonitão, para de se culpar — sussurrou no meu ouvido. — Muito prazer Matheus, tenha uma boa noite!
— Foi um prazer, espero que a gente se veja de novo.
Os dois acenaram um para o outro, e meu coração acelerou ao ver as costas de minha amiga se afastando na multidão.
— Estou feliz que tenha vindo, Julia, espero que possa te ajudar a ficar menos entediada, pelo menos esta noite — Matheus se inclinou mais em minha direção, passando o braço ao meu redor, e me senti uma idiota quando percebi que era só pra pegar o copo intocado do outro lado.
Tinha um alerta piscando, me dizendo para ir na direção oposta. Mas meus pés estavam incapacitados, não conseguia correr, estavam presos no chão. Matheus era magnético, e eu estava odiando cada vez mais aquelas borboletas no estômago.
— Então, Matheus — decidi tentar conversar, tentando fazer parecer que tudo isso não significava nada de mais. — O que um cara como você faz aqui sozinho?
Ele sorriu, e seu sorriso me chacoalhou ainda mais, vibrei junto com o som do gelo quando Matheus girou os cubos dentro do copo.
— Caras como eu também se esgotam às vezes.
— Caras como você? — Curiosa, a taça em minhas mãos, sem conseguir disfarçar o interesse desta vez.
— Um cara que passa muito tempo tomando decisões, e que não queria pensar em nada essa noite. Além disso, precisava muito de alguém pra conversar, e melhor ainda sendo uma mulher linda como você.
Seu tom era um tanto melancólico, por mais que tivesse tentado parecer divertido no final. Senti o peso oculto em suas palavras, uma discreta insatisfação. Mas, por mais que ele estivesse passando por qualquer coisa, eu não estava disposta a descobrir, só queria me distrair e passar o tempo, nem devia estar conversando com um homem.
Tentei focar em me lembrar disso.
Conversamos por um tempo, tempo este que me pareceram horas, embora tenha sido apenas parte da noite. As barreiras que eu tanto me esforçava para manter pareciam dispostas a desaparecer. Enquanto isso, meu interior derretia mediante sua atenção, sua voz grave, seus comentários inteligentes e sua lucidez perspicaz. Em pouco tempo estava rindo, a discretas gargalhadas, embalada numa felicidade que há muito tempo não conhecia.Até que Matheus tocou minha mão. Um gesto pequeno, quase insignificante. Mas foi como se uma corrente elétrica passasse entre nós, não consegui conter o salto em meu coração, nem a retraída de meus músculos que desejaram se afastar mas não conseguiram, e Matheus percebeu. Seu olhar se tornou ainda mais intenso, era como um teste silencioso, como se desejasse com unhas e dentes estar certo sobre algo.— Julia — ele murmurou, e meu nome na sua boca soou assustador. — Eu não costumo insistir quando percebo que alguém está fugindo, mas não quero que fuja de mim.Aque
O sábado de manhã chegou. De ressaca, só me levantei quando os reflexos da luz através do vidro, que batiam em meu rosto, se tornaram insuportáveis. Voltei a me deitar, tentando prolongar o silêncio tranquilo antes que o dia realmente começasse. A noite anterior ainda estava confusa, voltando aos poucos, assim como a culpa.Me sentia uma criminosa.Como se tivesse traído alguém.O celular vibrou sobre a mesa de cabeceira, desejei ignorá-lo, me fingir de morta e continuar ali até desaparecer. As mensagens matinais geralmente não traziam boas notícias, ainda mais em um sábado.Mas o peguei mesmo assim e, quando vi o remetente, meu coração deu um salto."Parabéns, Julia! Você foi aprovada no processo seletivo. Esperamos você na segunda-feira às 8h. Bem-vinda à equipe."Me sentei na cama, sem acreditar que aquela mensagem era mesmo para mim. Depois de meses tentando e me sustentando com uma mesada dada por meus pais, finalmente as portas voltavam a se abri. Senti o peito encher de alívio,
Pega de surpresa, me virei depressa, e o susto foi imenso quando a visão finalmente revelou quem se tratava.Meu coração saltou no peito, como se aquela fosse uma aparição ou uma alucinação ocasionada pela fadiga e cansaço.Mas era mesmo Matheus.Usava um terno impecável, olhava para a frente e admirava a vista do seu próprio jeito, como se não tivesse me reconhecido. Como se aquela sexta-feira tivesse acontecido apenas comigo.O encarei, esperando alguma reação, sem saber se deveria dizer ou não alguma coisa. Esperei por um olhar, reconhecimento, um sorriso, mas sua expressão não se alterou. Os olhos passaram por mim rapidamente, mas se manteve sério, como se eu fosse uma secretária qualquer.— Não esperava te encontrar aqui, mas espero que goste do trabalho.Frio.Ele estava frio como gelo e nossa troca de olhares não durou nem trinta segundos.Senti frustração, alivio, e tentei manter a compostura e continuar seguindo o mesmo tom que ele, como se não me importasse. A boate não tinh
A manhã seguinte começou, tão agitada como sempre. A luz fria da manhã entrava pelas paredes de vidro do escritório moderno, as mesas em fileiras estavam organizadas — dentro do possível —, cada uma com sua própria pilha de documentos. O ar-condicionado soprava, zumbindo solenemente, um ruído relaxante naquele ambiente sem vida, se misturando ao som dos teclados que eram pressionados com maestria por todos os trabalhadores.Quando cheguei à minha mesa, o estômago chegou a embrulhar com a visão de Henrique mexendo nas minhas coisas e conferindo ele mesmo a pilha de documentos deixada por mim no organizador.— Até que enfim — disse, mas sem olhar na minha direção. — Tem até o meio-dia para revisar esse contrato, ouviu? Estou cheio de coisas, não terei tempo de revisar de novo seu trabalho, seja prolífica o suficiente para manter seu lugar aqui.Quase revirei os olhos, enquanto segurava a vontade de fazer ele mesmo engolir os malditos papéis.— Sim, senhor — disse suavemente, absorvendo
Não imaginei que o dia pudesse piorar, mas a comida deu forças a Henrique, que estava ainda pior do que de manhã. Aos gritos, criticava todas as coisas que eu fazia, e não parava de se curvar sobre meu computador e encostar em mim, tentando corrigir minhas planilhas enquanto os outros funcionários me encaravam, complacentes, mas sem dizer uma palavra.Eu queria morrer.— Está tudo errado! — Sem aviso, jogou outra pilha de papéis sobre minha mesa, e a xícara de café quase caiu. — Não te mandei revisar de novo? Os números estão errados!Me esforçava ao máximo para manter a compostura, cerrando os dentes e engolindo meus suspiros de frustração.— Já revisei duas vezes, senhor, mas posso olhar de novo — murmurei. — Só que eu realmente não faço ideia do que está errado, pode por favor me explicar?Um grande erro.— Faça de novo desde o começo! Eu preciso te explicar tudo? Acha mesmo que merece continuar aqui — me cortou, com um rugido arrogante e repleto de desdém.Não estava mais aguentan
Parei diante da porta, o coração batia violentamente no peito, enquanto eu tentava reunir coragem para entrar. Depois do dia caótico, claro que quando Henrique me enviou até ali, obedeci sem questionar, mas agora estava pagando por isso. Os sentimentos eram pesados e conflitantes, como se estivesse prestes a invadir um espaço proibido.Mesmo assim, empurrei a maçaneta.Os olhos vagaram pela sala, analisando cada detalhe, mapeando inconscientemente aquele local que me pareceu estranhamente íntimo. Matheus estava levemente inclinado para frente, com os cotovelos apoiados na mesa de mogno e um meio-sorriso nos lábios, enquanto os olhos estavam fixos apenas na mulher à sua frente.Se portava de uma maneira diferente da que pude acompanhar nos últimos dias, parecia tão relaxado quanto quando nos encontramos naquele bar. Era cordial. A luz iluminava seu rosto, destacando seus traços mais marcantes, que pareciam suaves e expressivos, diferente de sua frieza assustadora.Meus músculos travara
O corredor se estendia à minha frente, quase infinito. Meus passos eram pesados, como se todos os pensamentos e angústias acumulados nestes dias longos e ansiosos estivessem amarrados aos meus tornozelos, lutando para me impedir de sair do lugar. Meus dedos ainda amassavam as bordas dos papéis, e me lembrei de afrouxar o aperto, para não danificá-los.A verdade adoecedora era que eu queria sentir seu toque, como se a sensação pudesse ser transmitida através das digitais deixadas na celulose maculada por suor e tinta.Aquela semana tinha sido um inferno. Mal dormi nos últimos dias, e tinha aquela sensação adoecedora de que estava bem próxima do meu limite. Henrique corroía todas as minhas forças, se alimentando de minhas vontades como um parasita, e ainda não havia completado nem meu primeiro mês.No entanto, a sombra da presença de Matheus pelos corredores era sempre mais asfixiante, a sombra e a esperança de que ele viesse a me perceber outra vez. E todas as vezes que pensava nesse t
Aceitei a convocação sem pensar muito. Totalmente por impulso, porque sabia que recusar não pegaria bem. Eu estava em período de testes, não poderia simplesmente me dar ao luxo de dizer não ao chefe, por pior que ele fosse. Mas se eu soubesse o quão torturante seriam as horas seguintes, poderia ter reconsiderado melhor.Henrique dirigia com a mão firme no volante, mas sua atenção estava em qualquer lugar, menos na estrada. O trânsito parecia um detalhe insignificante diante do verdadeiro centro das suas preocupações: a sua esposa.— Eu faço de tudo naquela casa e ela ainda reclama! — bufou grosseiramente, acelerando um pouco mais do que deveria. — E agora vem com essa história de terapia de casal. Como se eu tivesse tempo para isso! Quem é que banca as viagens, os jantares, os presentes? Sou eu! Mas, claro, eu sou o problema também! O que mais preciso fazer pra que aquela encostada fique satisfeita?Assenti com a cabeça, tentando não me encolher no banco. Não era a primeira vez que o