Não imaginei que o dia pudesse piorar, mas a comida deu forças a Henrique, que estava ainda pior do que de manhã. Aos gritos, criticava todas as coisas que eu fazia, e não parava de se curvar sobre meu computador e encostar em mim, tentando corrigir minhas planilhas enquanto os outros funcionários me encaravam, complacentes, mas sem dizer uma palavra.
Eu queria morrer.
— Está tudo errado! — Sem aviso, jogou outra pilha de papéis sobre minha mesa, e a xícara de café quase caiu. — Não te mandei revisar de novo? Os números estão errados!
Me esforçava ao máximo para manter a compostura, cerrando os dentes e engolindo meus suspiros de frustração.
— Já revisei duas vezes, senhor, mas posso olhar de novo — murmurei. — Só que eu realmente não faço ideia do que está errado, pode por favor me explicar?
Um grande erro.
— Faça de novo desde o começo! Eu preciso te explicar tudo? Acha mesmo que merece continuar aqui — me cortou, com um rugido arrogante e repleto de desdém.
Não estava mais aguentando.
Antes de ser demitida por justa causa, me levantei. Enquanto caminhava, o ouvia gritar comigo e ouvia também os sussurros dos curiosos. Mas continuei andando, até chegar ao banheiro, onde olhei meu reflexo e respirei fundo.
Observei o mármore branco, e o cheiro de sabonete e a luz suave me acalmaram. O perfume de lavanda encheu meu olfato de apreciação, reduzindo minha ansiedade, enquanto o fio da cerâmica me abraçava. Ouvi os saltos de algumas colegas, mas continuei imóvel, olhando para meus dedos úmidos sobre a pia.
— Você está bem? — uma voz doce sussurrou atrás de mim.
Uma jovem loira, parecia genuinamente preocupada, enquanto encolhia uma das mãos contra o peito, fazendo menção de me tocar. Quando não me esquivei, seus dedos pararam em meu ombro, e seu sorriso gentil me acolheu.
Li o nome “Beatriz” em seu crachá, querendo decorá-lo.
— Estou, só precisava respirar — garanti, me esforçando para sorrir.
Beatriz inclinou a cabeça de leve, e pude ver o quanto ela não acreditava.
— Henrique é um arrogante pé no saco, mas não deixe que ele pise em você, aquele cara não é dono de nada aqui — recolheu a mão, indo ajeitar sua maquiagem no espelho ao meu lado. — E se precisar de uma força, pode me procurar, não tivemos tempo de nos conhecer, mas sou Beatriz, e me sento no fim do corredor.
— Muito obrigada, Beatriz, será ótimo poder contar com você — a gentileza inesperada me fez sentir um pouco melhor.
Estava determinada, mas Henrique não estava mais lá quando voltei a minha mesa. Faltava muito pouco para o fim do expediente, só tinha que aguentar mais uma hora.
Só não esperava o que viria a seguir.
Perto da hora de ir, Henrique me chamou. Estava com frio no estômago, nervosa por ficar sozinha com ele, mas, quando cheguei, ele nem mesmo me olhou.
— Sua última tarefa do dia — disse com desprezo, jogando o envelope na mesa. — Vá para o vigésimo andar e entregue nas mãos do CEO.
Me senti uma idiota, claro que uma coisa assim poderia acontecer.
— O quê? — não havia firmeza na minha voz, que saiu muito mais baixo do que eu gostaria.
— Está com problemas para seguir ordens? — arqueou a sobrancelha. — Preciso da assinatura de Matheus Vasconcellos até amanhã de manhã.
Peguei o envelope depressa, tentando parecer séria e despreocupada, para afastar seu interesse em mim e sair logo dali. Eu tinha passado o dia inteiro tentando evitar Matheus, e agora, do nada, Henrique me forçava a ir até ele.
Eu realmente o odiava.
Será que ele sabia de alguma coisa?
Entrei no elevador, e o caminho até lá pareceu durar uma eternidade.
Caminhei pelo corredor com a vista panorâmica, que parecia bem menos bonito e mais assustador agora. Tentei me convencer que era só trabalho, que continuaríamos como antes, uma secretária e o chefe que a conhecia de vista, mas não se importava.
Bati na porta e esperei.
A voz rouca e desconcertante respondeu do outro lado.
— Entre.
Obedeci.
Matheus estava sentado atrás da mesa enorme, imponente, e seu olhar parecia surpreso quando encontrou o meu.
O tempo pareceu parar.
Eu nunca deveria ter aceitado esse emprego, queria muito ir embora dali.
Eram emoções demais para um único dia.
Parei diante da porta, o coração batia violentamente no peito, enquanto eu tentava reunir coragem para entrar. Depois do dia caótico, claro que quando Henrique me enviou até ali, obedeci sem questionar, mas agora estava pagando por isso. Os sentimentos eram pesados e conflitantes, como se estivesse prestes a invadir um espaço proibido.Mesmo assim, empurrei a maçaneta.Os olhos vagaram pela sala, analisando cada detalhe, mapeando inconscientemente aquele local que me pareceu estranhamente íntimo. Matheus estava levemente inclinado para frente, com os cotovelos apoiados na mesa de mogno e um meio-sorriso nos lábios, enquanto os olhos estavam fixos apenas na mulher à sua frente.Se portava de uma maneira diferente da que pude acompanhar nos últimos dias, parecia tão relaxado quanto quando nos encontramos naquele bar. Era cordial. A luz iluminava seu rosto, destacando seus traços mais marcantes, que pareciam suaves e expressivos, diferente de sua frieza assustadora.Meus músculos travara
O corredor se estendia à minha frente, quase infinito. Meus passos eram pesados, como se todos os pensamentos e angústias acumulados nestes dias longos e ansiosos estivessem amarrados aos meus tornozelos, lutando para me impedir de sair do lugar. Meus dedos ainda amassavam as bordas dos papéis, e me lembrei de afrouxar o aperto, para não danificá-los.A verdade adoecedora era que eu queria sentir seu toque, como se a sensação pudesse ser transmitida através das digitais deixadas na celulose maculada por suor e tinta.Aquela semana tinha sido um inferno. Mal dormi nos últimos dias, e tinha aquela sensação adoecedora de que estava bem próxima do meu limite. Henrique corroía todas as minhas forças, se alimentando de minhas vontades como um parasita, e ainda não havia completado nem meu primeiro mês.No entanto, a sombra da presença de Matheus pelos corredores era sempre mais asfixiante, a sombra e a esperança de que ele viesse a me perceber outra vez. E todas as vezes que pensava nesse t
Aceitei a convocação sem pensar muito. Totalmente por impulso, porque sabia que recusar não pegaria bem. Eu estava em período de testes, não poderia simplesmente me dar ao luxo de dizer não ao chefe, por pior que ele fosse. Mas se eu soubesse o quão torturante seriam as horas seguintes, poderia ter reconsiderado melhor.Henrique dirigia com a mão firme no volante, mas sua atenção estava em qualquer lugar, menos na estrada. O trânsito parecia um detalhe insignificante diante do verdadeiro centro das suas preocupações: a sua esposa.— Eu faço de tudo naquela casa e ela ainda reclama! — bufou grosseiramente, acelerando um pouco mais do que deveria. — E agora vem com essa história de terapia de casal. Como se eu tivesse tempo para isso! Quem é que banca as viagens, os jantares, os presentes? Sou eu! Mas, claro, eu sou o problema também! O que mais preciso fazer pra que aquela encostada fique satisfeita?Assenti com a cabeça, tentando não me encolher no banco. Não era a primeira vez que o
O vestido preto que escolhi era simples, elegante e seguro. Nada que chamasse atenção demais, mas também nada que me fizesse parecer deslocada em um evento como aquele. O tecido leve abraçava meu corpo sem marcar demais, e as alças finas revelavam meus ombros. Meus cabelos estavam presos em um coque baixo, e o batom vinho que passei foi a única ousadia que permiti a mim mesma. Encostei-me ao espelho do quarto do hotel, respirando fundo antes de sair. Ainda havia um nó no meu estômago, um peso que me acompanhava desde a viagem de carro com Henrique.Ao descer para a recepção, encontrei Henrique já me esperando no saguão. Ele usava um terno bem cortado, e o perfume forte denunciava que ele havia exagerado na quantidade. Quando seus olhos deslizaram sobre mim de cima a baixo, senti um arrepio desagradável.— Nada mal, Julia. — sorriu de lado, tomando um gole do uísque que segurava. — Mas talvez um pouco comportada demais. Está parecendo uma freira.Engoli seco, apertando minha bolsa entr
O ar fresco do jardim me trouxe um alívio imediato. O som abafado da recepção ainda ecoava ao fundo, mas ali, entre as sombras das árvores e o perfume suave das flores noturnas, parecia um outro mundo. Caminhei devagar pelo caminho de pedra, abraçando a mim mesma. Meu coração ainda estava acelerado, e a lembrança daquele telefone tocando depois da briga com Gabriel continuava grudada na minha mente como um veneno.Ouvi passos atrás de mim e me virei instintivamente. Matheus estava ali, com as mãos nos bolsos do terno, me observando. Seu olhar era intenso, mas sem o julgamento que eu esperava. Apenas observador, paciente.— Está fugindo de novo? — Sua voz era baixa, quase gentil.Soltei um suspiro e dei de ombros. — Talvez só precisando respirar. E você? O que está fazendo aqui?— Precisando respirar também. — Ele sorriu de lado e caminhou até mim, parando a uma distância segura. — Parece que você teve uma noite difícil.Ri sem humor, desviando o olhar. — E você percebeu isso tão fác
O silêncio no quarto de hotel era cortado apenas pelo ruído distante da cidade lá fora. Me virei na cama, puxando os lençóis até o queixo, tentando me entregar ao sono. Mas algo me despertou.Um som baixo. Irregular.Abri os olhos, franzindo a testa. Era quase como uma respiração acelerada.Pisquei algumas vezes, tentando entender se tinha sido apenas coisa da minha cabeça. Mas lá estava de novo, vindo de algum lugar além da porta que separava o meu quarto do de Matheus.A inquietação tomou conta de mim.Eu podia simplesmente ignorar. Me virar para o outro lado e tentar dormir. Não era problema meu. Matheus e eu não éramos amigos, apenas colegas de trabalho. Pior que isso, éramos chefe e funcionária. Mas algo me dizia que aquilo não era normal.Joguei os lençóis para o lado e me levantei. Meus pés tocaram o chão frio, e um arrepio percorreu minha pele quando me aproximei da porta entreaberta. Hesitei, mordendo o lábio, antes de empurrá-la levemente.A cena diante de mim fez meu peito
A manhã seguinte foi estranhamente silenciosa.Depois da noite anterior, eu não sabia como agir perto de Matheus. Ele também não parecia saber como agir perto de mim. Durante a reunião com os investidores, mantivemos a mesma formalidade de sempre — olhares calculados, palavras bem escolhidas. Mas havia algo diferente no ar.Era uma amizade silenciosa.Não precisávamos falar sobre o que aconteceu. Sobre como eu o vi no seu momento mais vulnerável. Sobre como ele segurou minha mão como se precisasse de algo firme para se apoiar.Mas mesmo sem falar, eu sentia.Para um homem como ele devia ser algo novo ter expressado tamanha vulnerabilidade na frente de uma quase desconhecida, ainda mais uma funcionária. Me lembrei da noite em que nos conhecemos, de ter expressado seus pensamentos sobre se sentir pressionado, e comecei a achar ser um equívoco da minha parte, sequer sugerir, que poderíamos nos tornar amigos.Pensei que tudo voltaria a ser como antes.Mas, fui surpreendida, quando voltam
O restaurante escolhido para o jantar de negócios do nosso último dia era sofisticado e discreto, localizado no terraço de um hotel cinco estrelas. Luzes baixas, velas acesas sobre a mesa e uma vista panorâmica da cidade que brilhava abaixo de nós.Um ambiente perfeito para uma reunião corporativa — ou para algo completamente diferente. Eu sabia que nossa utopia estava chegando ao fim, e fiquei ansiosa com a possibilidade de as coisas voltarem exatamente ao que eram antes.Mas eu não deveria estar pensando nisso.Matheus estava ao meu lado, impecável em um terno escuro, sua presença dominando o ambiente sem esforço. O perfume amadeirado e o brilho das luzes refletindo em seus olhos verdes impossibilitavam ignorá-lo.Eu me obriguei a manter a postura profissional enquanto discutiam números e estratégias com os investidores, e eu era obrigada a anotar tudo, enquanto era monitorada por Henrique. Mas era difícil.Porque toda vez que eu desviava o olhar para ele, Matheus já estava me obser