Horas depois, voltamos ao apartamento, e Matheus desabou.Tirou o paletó, largou os sapatos pelo quarto e se jogou na poltrona com as mãos no rosto. Ele tremia. Não de frio — mas de exaustão emocional.— Eu tô tentando manter tudo sob controle — ele disse, a voz abafada. — Mas tem horas que parece que tudo vai desmoronar. Que vou desmoronar.Me aproximei devagar, ajoelhando à frente dele.— Você não precisa manter tudo sozinho, Matheus. — Você não entende, eu preciso, preciso provar pro meu pai que não sou defeituoso, que posso fazer isso sozinho.Ele me olhou, e havia algo quebrado ali. Uma rachadura aberta demais pra fingir que não existia.— Eu tô com medo de piorar, Julia. Medo de entrar num episódio de verdade. Isso… isso tudo tá me levando pro limite.Toquei o rosto dele com as duas mãos.— Então vamos buscar ajuda. Você já faz o tratamento, você reconhece os sinais. Isso é força, não fraqueza.Ele assentiu devagar, os olhos cheios. Ficamos em silêncio, comigo acariciando seus
A sala de reuniões da sede corporativa parecia mais gelada do que eu lembrava. Talvez fosse o ar-condicionado forte demais. Ou talvez fosse o silêncio incômodo das seis pessoas que me esperavam sentadas à mesa de vidro, todas com seus olhos atentos e semblantes impassíveis. Ao centro, uma câmera já ligada apontava para a única cadeira vazia: a minha.Respirei fundo antes de me sentar.— Sra. Julia Nunes — começou uma das advogadas da empresa, sem levantar os olhos do tablet —, este é o registro oficial do seu depoimento voluntário para o comitê interno de ética e compliance da NovaCorp. Você está ciente de que esta gravação poderá ser utilizada como parte do processo disciplinar e, se necessário, encaminhada para órgãos externos?— Estou — respondi, firme, tentando manter a voz estável.— Deseja a presença de um representante legal?— Não. Eu mesma falarei.Uma leve tensão percorreu a sala. O homem do outro lado da mesa — o presidente interino do comitê — entrelaçou os dedos sobre os
No dia seguinte, acordei com meu celular vibrando sem parar. Notificações, mensagens, chamadas perdidas. A entrevista vazada com meu depoimento havia se espalhado como um incêndio pelas redes.O nome de Henrique estava entre os assuntos mais comentados. Ao lado do meu.Abri o Twitter e levei um segundo para entender a avalanche."A funcionária que teve coragem de falar. Que venham mais vozes.""Se até agora estavam caladas, é porque sabiam que ninguém ouviria. Agora é diferente."Mas nem todos os comentários eram assim. Alguns me chamavam de oportunista. Outros diziam que eu estava tentando destruir a carreira de um “homem de sucesso”. Havia até um vídeo manipulado de uma reunião antiga onde eu aparecia rindo de uma piada dele — como se aquilo fosse prova de consentimento.Os advogados de Henrique haviam começado sua defesa agressiva.“Desacreditar a vítima. Manual padrão”, pensei com amargura.Matheus veio até mim, os olhos vermelhos de cansaço, mas a expressão bem melhor que do dia
As mensagens começaram a chegar logo.Primeiro, uma DM de uma advogada de uma associação de mulheres que havia lido os relatos anônimos na matéria que vazou no fim de semana. Depois, uma jornalista de um portal progressista que cobria casos de assédio e corrupção corporativa. E, por fim, o mais inesperado: uma defensora pública querendo agendar uma conversa comigo “em caráter informal”, segundo suas palavras. Quase todas diziam a mesma coisa — que meu depoimento poderia ser importante não só para mim, mas para outras.Eu li tudo sem conseguir respirar direito.Parte de mim queria sumir. Outra parte, a que Matheus vinha ajudando a acordar aos poucos, sentia algo novo: força.O telefone vibrou de novo. Beatriz.“Estamos com você. Quase todas do time estão. E algumas mulheres de outros setores também querem te apoiar publicamente. Se você deixar.”Era estranho. Depois de tanto tempo me sentindo invisível ou silenciada, agora havia vozes surgindo das sombras. E mesmo que o medo ainda esti
— Ele acha que tá ajudando — murmurou. — Mas tudo o que faz é me lembrar do quanto eu nunca fui suficiente pra ele.Fui até ele, sentei ao seu lado e segurei sua mão.— Talvez você precise de distância. Às vezes o que a gente chama de família também adoece a gente.Matheus virou o rosto devagar e me encarou.— Você acha que eu devia cortar laços com ele?— Eu acho que você merece paz. E se ela não existe quando ele tá por perto... talvez seja um começo pensar sobre isso.Ele não respondeu. Apenas apertou minha mão com força, e ali, naquele gesto silencioso, eu senti que ele estava ouvindo. Talvez pela primeira vez.No elevador, o silêncio era diferente do anterior. Não havia tranquilidade. Só uma tensão latejante no ar.— Desculpa — ele disse, finalmente. — Por te expor a isso. Por ele.— Não é você quem tem que se desculpar.Ele esfregou o rosto com as mãos, visivelmente esgotado, se desfazendo num tipo de cansaço que parecia arrastá-lo para baixo como areia movediça.— Ele não enten
A estrada era quase deserta.Matheus dirigia com uma das mãos no volante e a outra entrelaçada à minha, repousando sobre meu colo. Às vezes ele cantava baixinho, outras apenas ficava em silêncio, os olhos perdidos na linha do horizonte. Não era o silêncio tenso de antes. Era como se, pela primeira vez em semanas, ele tivesse espaço para respirar.O rádio tocava uma música antiga, com arranjos suaves e voz rouca. Uma daquelas que a gente não sabe de onde conhece, mas parece feita pra aquele momento.Quando finalmente paramos, o sol já começava a cair. Encontramos uma pousada simples perto de uma praia deserta, com chalés de madeira e cheiro de maresia. O quarto era pequeno, mas confortável, com uma varanda voltada para o mar. Assim que entramos, largamos as mochilas no chão e deixamos as janelas abertas, deixando o vento invadir tudo.Eu me deitei de lado na cama e fiquei observando Matheus tirar os sapatos, o olhar perdido nos próprios movimentos.— Tá tudo bem? — perguntei baixinho.
Ouvia a música vibrar pelas paredes, as penetrando dramaticamente, como se o som e o ambiente fossem um só. Sacudindo o ar e ocultando sussurros secretos dos presentes. As luzes piscavam, e as cores neon implodiram em erupções luminosas, ora quente, ora frias, enfeitando a pele das pessoas que dançavam ao meu redor. Tão contentes, tão alheios. Construindo sozinhos sua própria serenata particular de felicidade, loucura, empolgação e desejo, como se estivessem dispostos a me causar certo grau de inveja. Eu não queria estar ali.No entanto, minha melhor amiga – Sofia —, sempre foi muito boa com oratória. Filha de advogados e campeã municipal de redação, claro que falava mais que uma matraca e o suficiente para me meter nisso. Eu, que estava desempregada e deprimida, e passara as últimas semanas enviando e-mails e andando pela cidade em entrevistas medonhas, com pessoas terríveis que nem olhavam na minha cara. "Vamos lá, Julia! Não é crime nenhum, você precisa respirar." Foi o que ela
Conversamos por um tempo, tempo este que me pareceram horas, embora tenha sido apenas parte da noite. As barreiras que eu tanto me esforçava para manter pareciam dispostas a desaparecer. Enquanto isso, meu interior derretia mediante sua atenção, sua voz grave, seus comentários inteligentes e sua lucidez perspicaz. Em pouco tempo estava rindo, a discretas gargalhadas, embalada numa felicidade que há muito tempo não conhecia.Até que Matheus tocou minha mão. Um gesto pequeno, quase insignificante. Mas foi como se uma corrente elétrica passasse entre nós, não consegui conter o salto em meu coração, nem a retraída de meus músculos que desejaram se afastar mas não conseguiram, e Matheus percebeu. Seu olhar se tornou ainda mais intenso, era como um teste silencioso, como se desejasse com unhas e dentes estar certo sobre algo.— Julia — ele murmurou, e meu nome na sua boca soou assustador. — Eu não costumo insistir quando percebo que alguém está fugindo, mas não quero que fuja de mim.Aque