Capítulo 02

O resto da manhã passou num borrão de tarefas básicas que pareciam desenhadas para testar sua paciência. Configurar o e-mail corporativo foi um exercício de frustração – a senha temporária que Margaret lhe dera ("Blackwood123", criativo demais) exigiu três tentativas até funcionar, e o sistema travou duas vezes antes de carregar. Organizar a agenda de Victor significou decifrar uma série de anotações enviadas por e-mail, algumas com instruções tão vagas que pareciam charadas – "Reunião com R&D, confirmar horário" ou "Ligar para J. Klein, urgente". Responder mensagens foi ainda pior; Margaret jogara uma pilha de papéis e um pendrive em sua mesa com um grunhido que dizia "não me pergunte nada", e Elena passou uma hora separando solicitações banais (como "preciso de mais grampeadores no terceiro andar") de e-mails crípticos que mencionavam Victor com uma reverência quase assustadora – "O Sr. Blackwood saberá o que fazer" ou "Ele já viu isso antes".Por volta das onze, ela já estava com os olhos ardendo de tanto encarar a tela e os dedos dormentes de tanto digitar.

O ar condicionado zumbia baixo, mantendo o ambiente gelado, e o som dos saltos de alguém passando pelo corredor era o único sinal de vida além dela. Elena recostou-se na cadeira, esfregando as têmporas, e deixou a mente vagar. Victor Blackwood não era só frio ou intimidante. Havia algo mais, algo que ela não conseguia nomear. A maneira como ele se movia, como falava, como parecia... intocado. Era ridículo, claro. Ninguém era imortal. Ninguém vivia séculos. Mas, enquanto mexia num arquivo digital da empresa – uma pasta chamada "Histórico" que abrira por curiosidade –, ela encontrou uma foto antiga, datada de 1985.

Era um evento de gala, com homens de smoking e mulheres de vestidos longos, e lá estava Victor, no canto da imagem, idêntico ao que ela vira naquela manhã. O mesmo cabelo preto penteado para trás, os mesmos olhos cinza, a mesma postura rígida. Elena piscou, inclinando-se para a tela. Devia ser um erro. Um parente, talvez. Mas a legenda dizia "Victor Blackwood, CEO", e o arrepio voltou, mais forte dessa vez.

— Isso é loucura — murmurou ela para si mesma, fechando o arquivo como se pudesse apagar a imagem da mente.

Às doze e meia, Damien apareceu na porta, segurando duas canecas de café que soltavam um vapor quente e um aroma forte o suficiente para tirá-la do transe. Ele estava sem o paletó agora, as mangas da camisa arregaçadas até os cotovelos, o que lhe dava um ar mais relaxado, quase humano em contraste com a rigidez do andar.

— Pausa pro almoço? — perguntou Damien, erguendo uma das canecas com um sorriso que parecia genuíno. — Trouxe combustível. Você parece precisar.

Elena olhou para ele, surpresa, mas aceitou a caneca com um suspiro de alívio.

— Se isso for café decente, você já é meu melhor amigo aqui — disse ela, tomando um gole e sentindo o amargor forte queimar a língua de um jeito bom.

— É decente o suficiente pra sobreviver ao Victor — respondeu Damien, sentando-se na borda da mesa dela, o peso fazendo a madeira ranger levemente. — Como foi a primeira manhã com o chefe de gelo?

— Intensa — admitiu Elena, recostando-se na cadeira e girando a caneca entre as mãos. — Ele é... diferente. Não sei explicar. Parece que está sempre segurando algo.

Damien assentiu, os olhos azuis brilhando com algo que ela não conseguiu decifrar, talvez diversão, talvez conhecimento

- Ele é assim. Sempre foi. O cara é uma lenda, mas ninguém sabe muito sobre ele. Tipo, você já viu fotos dele de vinte anos atrás? Igualzinho. Nem uma ruga a mais — disse ele, o tom casual, mas carregado de uma insinuação que fez Elena franzir a testa.

— O que você quer dizer com "sempre foi"? Você trabalha com ele há quanto tempo? — perguntou ela, inclinando a cabeça, curiosa.

- Uns cinco anos — respondeu Damien, dando de ombros como se a pergunta não importasse. — Mas ouvi histórias de gente que trabalhou aqui antes de mim. Dizem que ele não muda. Nem um fio de cabelo grisalho. Alguns acham que ele faz Botox, outros que tem um pacto com o diabo. Eu só acho que ele é esquisito pra caramba.

Elena riu, mas o comentário ficou ecoando na cabeça dela, como um sino que não parava de tocar.

— Isso é o que chamam de mito corporativo — disse ela, tentando manter o tom leve. — Todo chefe grande tem uma história assim. O meu último chefe jurava que tinha lutado boxe com um urso. Ninguém acreditava, mas ele contava mesmo assim.

Damien riu, inclinando a cabeça para trás, o som enchendo o espaço pequeno da sala.

- Talvez. Mas com o Victor, é diferente. Você vai ver. Ele é mais velho do que parece, Elena. Muito mais — disse ele, baixando a voz no final, como se estivesse compartilhando um segredo que não deveria.

Ela abriu a boca para responder, mas o telefone na mesa tocou, cortando a conversa com um som estridente que a fez pular na cadeira. Elena atendeu, segurando o fone com uma mão enquanto segurava a caneca com a outra, e a voz de Victor ecoou do outro lado, fria e direta como uma lâmina de gelo.

— Reunião às duas com o financeiro. Esteja pronta — disse ele, sem preâmbulos, a linha caindo em seguida com um clique seco.

— Sim, senhor — respondeu Elena ao vazio, anotando a informação no caderno com uma caligrafia apressada antes de olhar para Damien.

— De volta ao trabalho. O chefe de gelo não perde tempo.

— Boa sorte — disse Damien, levantando-se da mesa com um sorriso torto. — E cuidado pra não congelar aí dentro.

Ele saiu, os passos ecoando pelo corredor, e Elena ficou sozinha, encarando o caderno cheio de anotações. O dia continuou com uma série de tarefas que pareciam sugar a vida dela – reuniões com equipes que falavam em jargões corporativos que ela mal entendia, e-mails para redigir em nome de Victor com uma formalidade que não combinava com ela, documentos para revisar cheios de números e termos que faziam sua cabeça girar. Mas sua mente não parava de voltar para ele.

Victor Blackwood. Aquele olhar, aquela voz, a maneira como ele parecia fora do tempo. Era ridículo, claro. Ninguém era imortal. Ninguém vivia séculos. Mas a foto de 1985 ficava voltando à mente dela, como uma peça de quebra-cabeça que não encaixava.Às seis da tarde, o andar estava quase vazio. O zumbido do ar condicionado era o único som, acompanhado pelo clique ocasional de uma porta se fechando em algum lugar distante. Elena terminou de organizar a agenda do dia seguinte – reunião com a NovaTech às dez, uma ligação com um fornecedor às onze, e uma nota para "verificar relatórios de vendas" que ela não tinha ideia de onde encontrar – e pegou a bolsa, pronta para ir embora.

O céu lá fora estava escurecendo, o sol poente pintando as janelas com tons de laranja e roxo, e a cidade abaixo começava a acender suas luzes, um tapete de estrelas artificiais que se estendia até o horizonte.Passou pelo escritório de Victor no caminho para o elevador, e a porta estava entreaberta, uma fresta de luz escapando para o corredor escuro. Ela hesitou, os pés parando quase por instinto. A curiosidade – aquele defeito que sempre a metia em encrencas – venceu o bom senso. Bateu levemente na porta, o som quase inaudível, e espiou dentro, segurando a respiração.Victor estava lá, sozinho, de pé perto da janela, olhando para a cidade lá embaixo como se pudesse ver além do horizonte. O sol poente lançava sombras longas no rosto dele, destacando os traços afiados – o nariz reto, a mandíbula marcada, os olhos que pareciam capturar a luz e devolvê-la em tons de prata. Ele segurava um medalhão dourado nas mãos, os dedos longos e pálidos traçando os contornos como se fosse algo sagrado – ou amaldiçoado.

O objeto era pequeno, mas intricado, com detalhes que ela não conseguia distinguir à distância, e a maneira como ele o segurava sugeria uma reverência que contrastava com a frieza que mostrara o dia todo. Elena ficou parada, o coração acelerando sem motivo aparente, o ar preso nos pulmões.Ele virou a cabeça ligeiramente, como se soubesse que ela estava ali antes mesmo de olhar, os olhos cinza encontrando os dela com uma precisão que a fez recuar um passo.

— Algo mais, Senhorita Carter? — perguntou Victor, a voz calma, mas carregada de uma tristeza que ela não esperava, um peso que parecia atravessar o espaço entre eles.Elena improvisou, a mente correndo para encontrar uma desculpa.

— Não, só... vim dizer que terminei por hoje. Vejo você amanhã — disse ela, a voz saindo mais alta do que pretendia, ecoando no silêncio.

Ele assentiu, os olhos voltando para o medalhão como se ela já tivesse desaparecido.

— Boa noite — respondeu Victor, o tom baixo, quase um sussurro.

Elena saiu rápido, fechando a porta atrás de si com um clique que pareceu alto demais. Enquanto caminhava para o elevador, o coração ainda disparado, tentou racionalizar o que sentira nos nervos, cansaço, imaginação demais. O elevador desceu em silêncio, o zumbido do motor acompanhando seus pensamentos acelerados. Chegou em casa – um apartamento pequeno com paredes descascadas e uma janela que dava para um beco – e jogou as chaves na mesa com um suspiro. Mas uma frase ficou ecoando na mente dela, algo que Victor murmurara baixinho enquanto ela saía, quase inaudível, mas que ela jurava ter ouvido: "Não outra vez."

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