Cap. UM

"E você, tornou-se o adulto que sonhou ser quando criança?"

Jogo a revista sobre a mesa de centro da sala e solto um longo suspiro, incapaz de continuar lendo mais uma linha sequer sobre a vida perfeita, de pessoas perfeitas. Não sei ao menos porque me dei ao capricho de folhear uma revista tão previsível como essa.

Me pego pensando então, em como a vida de alguns parece tão certa, enquanto a de outros não passa de uma grande e inacabável confusão.

Você está pensando demais.

Ouço uma voz dentro de mim sussurrar e mesmo sabendo que pode ser perigoso, já é tarde demais: estou me lembrando de quem eu costumava ser. A garota doce, de futuro promissor, que ainda sonhava, que ainda acreditava...

Você era assim no passado, mas já não é mais!

Obrigo-me a concordar com o meu eu interior. Situações duras fazem as pessoas mudarem e, automaticamente, as tornam duras também. Foi isso que me tornei. Apenas uma pessoa fria, incapaz de sentir certas coisas.

Acredito que seja por isso que é tão difícil de deixar o passado para trás, se consideramos que o presente foge completamente do que foi planejado.

— Angel? — levo um susto ao perceber que não estou mais só.

— Que bom que você voltou! — abraço o único homem que permito continuar na minha vida. — Como estão os negócios?

Sentamos no sofá e César me conta sobre umas das filiais de sua casa de show, localizada no Rio de Janeiro. Deixo com que ele fale, apenas fazendo pequenas interrupções quando julgo conveniente. Decididamente prefiro pensar nos problemas dos outros ao invés dos meus.

— Você sabe que dia é hoje, não? — por fim ele pergunta, depois que nossa conversa sobre à casa de shows se encerra.

— Claro. — respondo contra a vontade. Eu esperava que ele tocasse no assunto, mas isso não significa que eu esteja pronta para falar sobre ele.

— Dois anos que você veio morar aqui. Passou rápido...

Uma das descobertas que fiz nesses últimos anos é que tempo não é capaz de resolver problemas ou curar todas as feridas. Existem coisas, que passe o tempo que for, continuarão presentes na sua memória, por mais que você deseje esquecê-las. Há feridas que não cicatrizam e ponto final.

— Já está tarde, acho que vou me deitar. — tento dar a César um sorriso convincente, porque no fundo só quero ficar sozinha. Estou exausta demais para continuar conversando sobre o passado.

No entanto, quando me deito, parece ainda mais difícil de evitar que os pensamentos tomem um rumo indesejável.

Automaticamente volto para quando eu tinha 19 anos. César sempre fora meu amigo, mas se mostrou um verdadeiro irmão quando mais precisei. Desde aquela noite, há dois anos, quando ele me encontrou completamente bêbeda em um barzinho, ele vem cuidando de mim.

Admiro muito a pessoa que ele é. Em como sente empatia pelos outros e que apesar das constantes viagens devido aos negócios, sempre encontra um tempinho para mim, sem nunca pedir nada em troca.

Viro-me para o lado, sentindo que não vai demorar muito para meu corpo ceder ao cansaço. Já sei exatamente o que me espera, então apenas fecho os olhos, esperando que os pesadelos comecem.

Quando desperto, o sol já nasceu lá fora. Meus olhos estão inchados, como se eu tivesse passado a noite inteira em claro. No início, era mais difícil para mim. Passava o dia todo bocejando, com o corpo cansado e com os pensamentos lentos. Mas agora, depois de tanto tempo, já me acostumei com a consequência das noites mal dormidas.

Sabendo que não há muito que se fazer, tomo um banho e vou para a cozinha em busca de um café forte o suficiente para me ajudar a acordar. Uma sensação de culpa se apodera de mim, assim que vejo César sentado à mesa.

— Sinto muito. — murmuro, desabando na cadeira ao lado dele.

— Pelo quê? — franze a testa, fitando-me.

— Você sabe... Os pesadelos... Os gritos...

— Deixe disso! Já lhe falei que não me incomodo.

Sei que ele diz isso apenas para me confortar. Nas primeiras semanas em que estávamos morando juntos, era comum ele adentrar meu quarto no meio da noite, com medo de que algo estivesse acontecendo, devido aos meus gritos — mais uma das consequências dos malditos pesadelos.

— Tenho uma coisa muito importante para lhe contar.

Analiso César com atenção. Ele parece tenso, certamente está com medo da minha reação em relação ao que vai me dizer.

— Estou ouvindo. — o encorajo, frente a seu silêncio.

— Estou apaixonado. — ele diz depressa, como os olhos fixos na xícara de café que está em sua frente.

— Lhe encontro no fundo do poço! — sorrio na tentativa de deixá-lo mais calmo.

— Estou falando sério, Angel. — ele ralha comigo, mas agora seus lábios formam um discreto sorriso.

— Pois bem, eu também estou.

— Se não estou muito enganado, isso se chama ciúmes. — diz ele, claramente querendo me provocar.

— Ah, francamente! — reviro os olhos, sem querer dar o braço a torcer. — E quem é a sortuda? — indago, porque curiosidade sempre fez parte das minhas características.

— O nome dela é Luiza Oliveira. Irmã do meu sócio, Gabriel. — ele comenta, e vasculho minha memória em busca de alguma lembrança relacionada a ela.

— Acho que a conheço de vista. Ela é bonita, não posso negar.

— Amanhã vamos jantar na casa dela, para de certo modo "oficializar o namoro". — César faz uma careta, provavelmente percebendo quão antiquadas as últimas palavras soam.

— Eu realmente preciso ir? — pergunto, sem demonstrar muita disposição.

— Você sabe que não posso contar com meus pais. Eu ficaria feliz se minha única irmã pudesse ir comigo. — ele me fita com expectativa e consigo compreender o que ele sente. Os pais de César moram no Rio Grande do Sul e detestam viajar. A perspectiva de encarar a família da namorada sozinho deve ser apavorante.

— Tudo bem. — aceito por fim. — Mas vamos sair hoje a noite para uma espécie de despedida de solteiro, está bem? — proponho, e ele aceita sem qualquer reclamação.

Quando estou na companhia de César, as horas passam sem que ao menos eu me de conta. Já anoiteceu e estamos no sofá, assistindo um episódio da nossa série favorita.

— Se realmente vamos sair, precisamos nos arrumar. — comento, assim que o episódio termina.

— Claro que vamos. — ele confirma já se levantando. — Em 20 minutos, aqui na sala?

— Nenhum minuto a mais, nenhum minuto a menos. — concordo, mas sei que isso dificilmente acontecerá.

César é a pessoa mais vaidosa que já conheci. Sou muito prática quando o assunto é me arrumar, fazendo isso em pouquíssimo tempo. Ao contrário do meu irmão, que nesse quesito deveria ser considerado a mulher da casa.

— 20 minutos, não é mesmo? — provoco César assim que ele finalmente aparece, com um atraso de mais de meia hora.

— Você precisa começar a considerar uma margem de erro. — ele ri, animado como sempre e só então seguimos para nosso destino.

Sair com César, diga-se de passagem, sempre foi sinônimo de diversão. Passamos boa parte do tempo juntos, mas como ele é o proprietário da casa de shows onde estamos, em determinado momento da noite, ele precisou me deixar para lidar com alguns pequenos contratempos.

Já percebi, depois de todo esse tempo, que dificilmente um homem se aproxima de mim enquanto César está por perto. Certamente imaginando que ele é meu namorado e não meu irmão. Hoje, não foi diferente.

A primeira regra que criei em relação a qualquer homem, é: nunca, em hipótese alguma, passe seu número. Costumo sair à noite única e exclusivamente para curtir, definitivamente não tenho paciência para lidar com um cara pós-balada.

— Está na minha hora. — sussurro, quando os lábios de um moreno, bastante interessante, se afastam dos meus.

— Posso te acompanhar? — ele pergunta, deixando um beijo em meu pescoço.

— Eu adoraria, mas vim com meu irmão. Ele já deve estar me esperando. — uso a desculpa de sempre e me despeço, deixando para trás um cara com um número de telefone que não é meu e com esperanças de que realmente estou interessada.

Consigo encontrar César em um dos camarotes, conversando com outro homem. Encaro-o a distância por alguns instantes e só então o reconheço. Gabriel Oliveira. Apesar de sócio e melhor amigo do meu irmão, é a primeira vez que o vejo pessoalmente.

— Olá. — cumprimento os dois ao me aproximar.

— Oi. — Gabriel responde com um belo sorriso no rosto.

— Vamos embora, César? — pergunto, porque de alguma maneira, a companhia de Gabriel me deixa desconfortável.

— Vamos sim. — ele concorda e em seguida estende a mão para o amigo. — Resolvemos isso amanhã, pode ser?

— Claro. — Gabriel retribui o gesto e em seguida desvia sua atenção para mim. — Até mais.

— Até. — respondo de forma automática e respiro aliviada quando César pousa o braço em meu ombro e me guia rumo ao estacionamento. — O cara que estava com você é seu sócio, certo? — questiono assim que entramos no carro.

— Certo.

— E por que eu nunca o vi aqui antes?

— Porque ele estava morando no Rio de Janeiro. Foi para lá na época em que iriamos inaugurar mais uma de nossas filiais e acabou ficando.

— Então ele está só de passagem? — pergunto, mas intimamente estou tentando entender qual foi o problema que vi em Gabriel e que me causou esse repentino interesse.

— Na verdade não. A família dele mora aqui e por isso ele resolveu voltar. Chegou ontem à noite, junto comigo. — César esclarece, mas em seguida sinto um ar tenso se apoderar do ambiente. — Sem querer ser chato, mas Gabriel tem namorada. — completa, cheio de cautela.

— Não! — exclamo, ao perceber o que se passa na cabeça do meu irmão. — Não estou interessada nele, pelo contrário. Só lhe perguntei por curiosidade.

— Fico aliviado em ouvir isso. Gabriel já é meu sócio, melhor amigo, cunhado... Namorado da minha irmã seria demais para mim!

— Credo, César! Não há a menor possibilidade de isso acontecer! — afirmo convicta.

— E o cara que estava com você hoje à noite? — questiona, lançando-me um olhar de canto.

— Advinha?

— Você não deu seu número para ele...

— Exatamente!

— Quantos homens você já iludiu?

— Essa é uma conta difícil de fazer. — respondo e tanto eu quanto César acabamos rindo.

— Eu ainda espero pelo dia que você vai passar o número certo para um cara.

— Espere sentando, porque isso definitivamente não acontecerá.

— Já parou para pensar que talvez você só esteja magoada demais pelo o que aconteceu? Não acho justo você eliminar todas as opções de uma única vez. — ele argumenta, enquanto guarda o carro na garagem de nossa casa.

— Eu prefiro continuar assim, porque, com todo o respeito, homens não prestam.

— Assim você me ofende.

— Você sabe que é minha única exceção.

— Talvez possa existir outra.

— Talvez nós devêssemos ir dormir e esquecer essa conversa. — sugiro assim que chegamos à sala.

— Tudo bem. — ele suspira derrotado. — Mas não se esqueça do jantar na casa da Luiza.

— Não esquecerei. — afirmo e César deposita um beijo no topo da minha cabeça. — Boa noite.

— Boa noite e obrigado por não me deixar sozinho.

Quando me deito na cama, me pego pensando instantaneamente no moreno que conheci essa noite. Apesar de ser absolutamente bonito e o mais importante, ser um cara interessante em uma conversa, torço para não encontrá-lo novamente. Ou se caso isso venha acontecer, que ele simplesmente me ignore e não venha pedir explicações a respeito do número que passei errado.

Infelizmente isso já me aconteceu algumas vezes. Poucas, na verdade, mas que ocasionaram situações absolutamente chatas. Alguns homens simplesmente não aceitam o fato de serem dispensados por uma mulher. Voltam com aquele ar de "acho que você se enganou" ou "devo ter entendido errado".

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