O silêncio dentro do carro é opressor.
Os bancos de couro creme refletem a luz suave que entra pelas janelas, mas nada ali consegue aquecer a sensação de vazio que me toma. Meu pai está ao volante, os olhos fixos na estrada, sua expressão intransigente como sempre. Minha mãe, ao meu lado, olha pela janela, como se estivesse distante, em outro lugar. Em algum lugar onde a dor do momento não fosse tão real.
Eu, por outro lado, não consigo desviar o olhar da barra do meu vestido azul. A delicadeza do tecido contra a minha pele parece quase zombar da minha incapacidade de escolher o próprio futuro. Cada fibra, cada detalhe cuidadosamente escolhido para ser a perfeita apresentação do que sou — uma obra de arte, mas apenas para ser admirada, não tocada.
Hoje, meu futuro marido finalmente me verá. A imagem que sempre me foi vendida, o homem que todas as lendas falam. Mas para mim, ele não é mais do que uma sombra. Uma promessa de um destino que não escolhi.
Os cabelos loiros, cuidadosamente ondulados, caem suavemente sobre os ombros. Meus olhos azuis são um reflexo do que me ensinaram a ser: fria, controlada, impecável. A postura ereta, a expressão sem emoção. Uma esposa bem treinada, pronta para fazer o que lhe é ordenado.
Minha mãe me olha brevemente, o olhar vazio de qualquer sentimento real. Ela nunca soube o que era ser livre, então jamais poderia me entender. Meu pai, imperturbável, está ao seu lado com a mesma frieza que sempre usou para me criar. Eles nunca me viram como uma pessoa. Sempre fui a herdeira que precisava ser moldada, e agora, aos 21 anos, o único caminho para mim é o de uma moeda de troca.
Eu fui feita para ser a esposa de um mafioso. Para ser útil a uma família, a uma causa maior do que eu mesma.
Nunca poderei conhecer outro homem. Nunca poderei me apaixonar, ser livre, viver. Meu corpo, minha mente, meu coração... tudo isso foi comprometido desde o momento em que nasci.
A dor, ao pensar nisso, quase me arranca um suspiro. Mas não. Eu não sou feita para demonstrar fraqueza. Não sou feita para sentir.
— Está tudo bem, querida? — A voz suave de minha mãe chega até mim, mas é uma pergunta vazia. Não é um interesse real. Não há empatia ali, apenas uma tentativa de preencher o espaço entre nós.
— Sim. — respondo, minha voz mais firme do que eu realmente me sinto. — Estou só... pensando.
Ela não insiste. Há tanto tempo que somos estranhas uma para a outra que qualquer tentativa de conversar soa como um eco distante. Eu sou apenas o reflexo do que ela quis, do que meu pai exigiu.
O carro desacelera ao se aproximar do aeroporto. O que está por vir não é uma surpresa, mas sinto uma leve pressão no peito. Não posso deixar transparecer. Não posso.
Atravessamos o portão do aeroporto, e uma pequena parte de mim se permite sonhar por um segundo. Sonhar com algo diferente. Com liberdade. Com a chance de escolher. Mas o sonho logo se desfaz, dissipado pelo medo do que virá.
Meus olhos se fixam à frente, no que está por vir: a Itália, minha nova prisão. O lugar onde finalmente serei entregue ao homem que escolhi, mas que nunca amei.
E o que me resta? Apenas a aceitação.
O voo é longo e silencioso. O zumbido constante das turbinas preenche o ambiente, mas não consegue silenciar os pensamentos que ecoam na minha mente. Estou sentada ao lado de minha mãe, que continua tentando fazer da viagem algo leve, mas suas palavras são como meras distrações.
— Você vai adorar a Sicília. — ela diz, a voz suave, como se tentasse convencer a si mesma. — É uma região linda, cheia de história. O clima, a comida... você vai ver, vai se sentir em casa rapidamente.
Ela sorri para mim, com um sorriso que não chega aos olhos. Eu sei o que ela quer: que eu me sinta animada. Que eu aceite o que está por vir com o mesmo fervor com que ela aceitou o destino dela. Mas não consigo.
Eu olho pela janela, observando as nuvens passarem, imaginando o que me espera na terra que agora será minha. Luca... A figura que até então era apenas uma lenda, uma sombra que pairava sobre minha vida. Agora ele é o homem a quem pertencerei, o homem a quem meu destino foi selado.
— Sim, mãe — respondo, tentando imitar um tom de entusiasmo, mas minha voz sai mais baixa, sem vida. — Estou ansiosa para conhecer.
Ela não percebe a falsidade nas minhas palavras, ou talvez prefira não perceber. Ela sorri novamente, mais uma tentativa de criar uma atmosfera confortável, como se o fato de estarmos dentro de um jato privado já tornasse tudo um conto de fadas.
Mas dentro de mim, tudo o que existe é um vazio sombrio. O medo, que aperta meu peito e me faz respirar mais devagar, não me deixa mentir para mim mesma. Não me deixa acreditar nas palavras confortantes de minha mãe.
— A Sicília é como um pedaço de céu, querida. Um lugar que poucos têm o privilégio de chamar de lar. — Ela continua, com a voz impregnada de nostalgia. — O que você vai viver lá será especial. Será para sempre.
Eu olho para ela, tentando entender como ela pode falar com tanta convicção. Como pode acreditar que ser esposa de um mafioso, pertencente a uma família como a Cosa Nostra, é algo "especial". Mas, ao mesmo tempo, sei que minha mãe jamais entenderá o que se passa dentro de mim. Para ela, não há espaço para questionamentos.
— Espero que sim — respondo, mantendo o mesmo tom vago. — Eu realmente espero.
Ela olha para mim, aparentemente satisfeita com a resposta, e volta a olhar pela janela. Eu continuo olhando para ela, me perguntando, por um breve instante, se ela já sentiu medo como eu sinto agora.
O medo de ser engolida por algo maior, algo que não podemos controlar. O medo de um destino que não escolhemos, mas que temos de aceitar. E, com isso, o medo de nunca mais ter controle sobre a minha própria vida.
Mas não posso dizer nada disso. Não posso quebrar a aparência de conformidade. Apenas me recosto na poltrona do jato e deixo que o mundo ao meu redor se torne uma névoa distante, à medida que me preparo para o inevitável.
O destino está traçado, e a Sicília será apenas o começo do meu novo lar.
O avião toca o solo de Palermo com uma suavidade que quase passa despercebida pela minha mente, atolada em pensamentos sombrios. Quando as portas do jato se abrem, uma brisa fresca da Sicília invade o ambiente, mas não é o suficiente para afastar o peso em meu peito. O cheiro do mar, misturado com a terra quente, faz minha cabeça girar por um instante, como se o futuro me puxasse para uma realidade que eu nunca quis.Matia, o subchefe da Cosa Nostra, espera por nós na pista, um homem de presença imponente e olhos calculistas. Ao seu lado, estão os soldados, homens com rostos duros, tatuagens visíveis, sempre em alerta. Eles nos recebem com um cumprimento formal, mas nenhum deles oferece um sorriso. Somos guiados até uma grande limusine preta, a qual nos leva em silêncio por ruas estreitas e sinuosas até a base da montanha.A mansão do Don, erguida sobre a rocha, parece surgir do próprio coração da terra. Uma construção maciça, imponente, com paredes de pedra que parecem ser parte da p
Eu estava diante do espelho, ajustando o nó da gravata, quando minha mãe, Athena, entrou no quarto com aquele olhar de quem sabe o que está acontecendo antes mesmo de acontecer.— Se você mexer mais uma vez nessa gravata, Luca — ela disse, sua voz firme, quase um comando, "arrancarei sua mão." Não havia dúvida em suas palavras, nem mesmo em seu tom.Mamma era a única pessoa no mundo que ainda conseguia mandar em mim aos 34 anos de idade, com a autoridade de um império. Ela não tolerava desatenção, especialmente em momentos como aquele.Ajeitei o colarinho e dei uma última olhada em minha roupa. O terno estava perfeito, cortado sob medida, como sempre. Mas o maldito maluco no porto me fazia querer sair dali e resolver as coisas à força. Eu detestava lidar com traidores, mas Mamma sempre dizia: "O verdadeiro poder é silencioso, Luca. Não se perde tempo com gritos."Ainda inquieto, me virei para ela, buscando algum tipo de conselho ou distração.— Eu detesto esses malditos jantares. — mu
A mesa estava iluminada apenas por velas, o ambiente opressor e formal. A comida, excelente como se esperava, estava sendo servida em silêncio, mas o verdadeiro banquete parecia estar acontecendo nas conversas, as palavras disfarçadas de elogios e investigações disfarçadas de casualidade. Eu, como sempre, mantinha minha postura impecável, minhas mãos delicadamente repousadas sobre o colo, e as palavras escolhidas com extremo cuidado.Athena, a mãe de Luca, falava com minha mãe, Marie, sobre a educação que eu havia recebido. Seus olhos, frios e calculistas, estavam fixos em minha mãe, mas eu podia sentir o peso do olhar de Luca em mim, tão pesado que parecia que eu estava sendo analisada por dentro, como se ele buscasse entender cada pedaço de mim que eu tentava esconder.— A Elena sempre foi muito dedicada aos estudos — minha mãe começou, com um sorriso orgulhoso no rosto. — Ela estudou nas melhores escolas de etiqueta, se formou em três idiomas e ainda teve uma educação política bast
O silêncio pairava sobre a sala como uma lâmina prestes a cair. Homens de rostos endurecidos, leais à Cosa Nostra – ou assim afirmavam ser – me observavam ao redor da mesa de mogno escuro. Olhos calculistas. Alguns, desafiadores. Outros, inseguros. Mas nenhum ousava desviar o olhar quando eu falava.A informação tinha chegado a mim mais cedo, um sussurro camuflado no submundo, carregado pelo vento de Palermo: há um traidor entre nós.Cruzei os dedos sobre a mesa, mantendo a postura firme. Eu não demonstraria fraqueza. Eles não me viam como um homem comum. Eu era o Don. O sangue e o suor de gerações estavam no peso do meu nome.— Recebi uma denúncia. — Minha voz soou fria, controlada. — Alguém aqui acredita que pode me trair e sair impune.Os homens se entreolharam. O ambiente se tornou mais tenso. Meu olhar varreu cada rosto presente. Eu conhecia cada um deles. Conhecia suas famílias, suas histórias, seus medos. Sabia exatamente até onde cada um estaria disposto a ir por poder.— Isso
A noite caía sobre Palermo, tingindo o céu com tons de violeta e dourado. Da sacada do meu quarto, eu observava os jardins iluminados por pequenas lanternas penduradas nos galhos das oliveiras, onde homens engravatados e mulheres em vestidos refinados se moviam como sombras dançando sob a luz. Todas as famílias aliadas à Cosa Nostra estavam ali para prestigiar a assinatura do contrato de casamento. A união que selaria um pacto de sangue, de poder. E a mim, caberia o papel da noiva obediente.Minha mãe trabalhava nos últimos retoques do meu cabelo, suas mãos precisas prendendo uma mecha solta atrás da orelha, enquanto uma das empregadas subia o zíper do vestido de seda branca. O tecido era frio contra minha pele, pesado de significados que eu ainda não ousava nomear.— Você está perfeita, Elena — disse minha mãe, sua voz b
A noite estava quente, e o aroma de jasmim e vinho pairava no ar conforme eu caminhava entre as mesas dispostas pelo jardim. Os cumprimentos eram previsíveis, palavras formais, apertos de mãos firmes, olhares que diziam mais do que qualquer saudação poderia expressar. Ao meu lado, minha mãe mantinha a postura impecável de sempre, cumprimentando os convidados com a graça e a autoridade que sempre exerceu dentro da Cosa Nostra.— Esta noite marca o início de uma nova era, Luca — ela disse suavemente, sem desviar os olhos de um dos capos que se aproximava. — Alguém tomará o meu lugar ao seu lado. Uma mulher escolhida para governar com você. Deve respeitá-la.Eu sabia disso. Sabia de tudo. E, ainda assim, a ideia de um casamento arranjado, de dividir minha vida com alguém que nunca escolhi, era um peso que eu carregava em silêncio. Mas eu era um homem fiel à minha casa, à minha instituição. Os sentimentos pessoais não tinham lugar a
A noite em Palermo era pesada, carregada de umidade salgada que grudava na pele como um aviso silencioso. Eu havia acabado de sair do jantar de assinatura do contrato de casamento com Elena. A cerimônia foi tão formal quanto esperado: sorrisos falsos, brindes vazios e aquele olhar de desespero nos olhos da princesa que tentava disfarçar com uma postura impecável. Ela era forte, eu dava isso a ela. Mas não era hora de pensar em Elena. Agora, eu tinha negócios mais urgentes para resolver.Matia, meu irmão e subchefe, já estava no carro me esperando, com Pietro, meu conselheiro, ao seu lado. Pietro era um homem de poucas palavras, mas cada uma delas valia seu peso em ouro. Ele era o cérebro por trás de muitas das minhas decisões, e eu confiava nele como confiava em poucos. Matia, por outro lado, era sangue do meu sangue. Leal até a morte, mas impulsivo como um furacão. Juntos, éramos a tríade que mantinha a Cosa Nostra em pé.O carro deslizou pelas ruas estreitas de Palermo até chegarmos
A brisa salgada da noite acariciava minha pele enquanto eu permanecia sentada no banco de pedra, cercada pelo perfume das magnólias que resistiam ao vento marítimo. O som das ondas quebrando nas rochas abaixo da mansão era quase hipnótico, um ritmo constante que contrastava com o turbilhão dentro de mim. Não importava quantas vezes eu tentasse, o sono me escapava.Minhas mãos descansavam no colo, entrelaçadas, enquanto meus pensamentos se perdiam no desconhecido do futuro. O casamento havia sido selado em papel, e dentro de dias seria selado perante o mundo. Como matriarca da Cosa Nostra, quais seriam meus deveres? Quais os sacrifícios que ainda teriam que ser feitos?Eu nunca conheci liberdade, apenas uma coleira dourada que mudava de formato ao longo dos anos. Mas agora, ironicamente, o casamento que deveria me aprisionar parecia prestes a me dar algo diferente. Um lugar