O avião toca o solo de Palermo com uma suavidade que quase passa despercebida pela minha mente, atolada em pensamentos sombrios. Quando as portas do jato se abrem, uma brisa fresca da Sicília invade o ambiente, mas não é o suficiente para afastar o peso em meu peito. O cheiro do mar, misturado com a terra quente, faz minha cabeça girar por um instante, como se o futuro me puxasse para uma realidade que eu nunca quis.
Matia, o subchefe da Cosa Nostra, espera por nós na pista, um homem de presença imponente e olhos calculistas. Ao seu lado, estão os soldados, homens com rostos duros, tatuagens visíveis, sempre em alerta. Eles nos recebem com um cumprimento formal, mas nenhum deles oferece um sorriso. Somos guiados até uma grande limusine preta, a qual nos leva em silêncio por ruas estreitas e sinuosas até a base da montanha.
A mansão do Don, erguida sobre a rocha, parece surgir do próprio coração da terra. Uma construção maciça, imponente, com paredes de pedra que parecem ser parte da própria montanha. Lá de cima, posso ver o mar brilhando ao longe, como um espelho quebrado. Cada curva do caminho me leva mais fundo em um lugar onde nada parece ser real, apenas uma prisão disfarçada de opulência.
Ao chegarmos, Matia nos conduz até a entrada. A mansão é silenciosa, exceto pelo som das nossas passadas ecoando pelas pedras frias.
— O Don estará com vocês no jantar — ele diz, a voz grave e direta. — Está ocupado com assuntos... internos. — Sua resposta é vaga, mas não preciso perguntar mais nada. Sei que o que quer que ele esteja fazendo, é algo que não podemos entender.
— Claro — responde minha mãe, com um sorriso cortês, tentando esconder sua ansiedade. Ela se vira para mim com um olhar que diz "tudo ficará bem", mas não encontro conforto nas palavras dela. Não sei mais o que esperar. Não há mais espaço para promessas ou para ilusões de um futuro diferente.
Matia nos conduz até um grande salão, onde a vista da cidade é de tirar o fôlego. A luz suave da tarde reflete na água, criando uma paisagem que, por um momento, me faz esquecer onde estou. A mansão é decorada com mobília de luxo, mas cada detalhe parece exibir a mão fria e calculista de um homem que controla tudo, até os detalhes mais insignificantes.
A primeira coisa que faço, assim que me vejo sozinha no quarto, é abrir a janela.
O vento fresco me acerta o rosto, carregado de sal e de promessas de liberdade que me parecem distantes demais. O mar se estende diante de mim como um vasto campo de possibilidades, e por um instante, me sinto pequena diante de sua grandeza. O som das gaivotas e o farfalhar das ondas batendo contra a areia me hipnotizam. Sinto uma vontade irresistível de sair correndo até a praia, sentir a areia fria nos meus pés, deixar o vento bagunçar meus cabelos e esquecer, ao menos por alguns segundos, tudo o que está prestes a acontecer.
Mas sei que não posso. Não sou mais dona do meu próprio corpo. E cada passo em direção à liberdade parece um sonho inalcançável, distante demais para ser tocado.
— Você está bem?
A voz da minha mãe me tira do transe. Ela entrou no quarto sem que eu percebesse, provavelmente para ver se estava acomodada. Sua presença é suave, mas carrega o peso de expectativas que ela jamais deixaria de colocar sobre meus ombros.
— Sim, mãe — respondo, tentando esconder o turbilhão de emoções dentro de mim. — Só... observando a vista.
Ela se aproxima de mim, suas mãos delicadas ajeitando os fios de cabelo que escapam do meu penteado.
— A Sicília é maravilhosa — ela diz com um suspiro. —Você vai ver. Vai ser o lugar perfeito para começar sua nova vida.
Ela não entende. Ela nunca entenderá. Eu fui feita para isso, e no entanto, uma parte de mim ainda se recusa a aceitar. Tento sorrir para ela, mas sei que não convenço nem a mim mesma.
— É, acho que sim — respondo, sem muita convicção. — Mas... mãe, você acha que... eu realmente... posso ser feliz aqui?
Ela para, por um momento, como se a pergunta tivesse a pegado de surpresa. Mas logo seu rosto se suaviza em um sorriso compreensivo, como se estivesse dando a resposta certa.
— Você não precisa ser feliz, querida. Você precisa ser forte. E isso, você já aprendeu.
Essas palavras me cortam mais do que eu gostaria de admitir. Ser forte. Sempre fui ensinada a ser forte, mas nunca me ensinaram a ser feliz. Não há espaço para isso, não quando a felicidade é um luxo que não me foi concedido.
Ela começa a se afastar, mas antes de sair do quarto, ela se vira para mim com um olhar de preocupação.
— Precisa descansar um pouco. Mais tarde, virão me ajudar com os preparativos para o jantar. E você... deve estar perfeita, Elena. Será a primeira vez que você e o Don Grecco serão apresentados formalmente.
Perfeito. Eu tinha que ser perfeita. Não havia espaço para falhas. Não havia espaço para ser quem eu sou. Tudo o que me restava agora era o papel que me foi dado. A esposa do Don. A moeda de troca.
Assento com a cabeça, mas por dentro, uma tempestade se forma. O jantar. O encontro. A primeira vez que olharei nos olhos de Luca De Luca, o homem com quem minha vida será compartilhada por... quem sabe quanto tempo. O homem que eu fui obrigada a aceitar. O homem que será meu futuro, minha prisão.
E, enquanto o vento sopra através da janela aberta, a ideia de correr, de ser livre, de sentir a areia entre os dedos, nunca pareceu tão distante. Mas, por um breve momento, eu a imagino, a liberdade, como se fosse algo possível.
Quem sabe, em algum lugar distante, ela ainda me espera.
Eu estava diante do espelho, ajustando o nó da gravata, quando minha mãe, Athena, entrou no quarto com aquele olhar de quem sabe o que está acontecendo antes mesmo de acontecer.— Se você mexer mais uma vez nessa gravata, Luca — ela disse, sua voz firme, quase um comando, "arrancarei sua mão." Não havia dúvida em suas palavras, nem mesmo em seu tom.Mamma era a única pessoa no mundo que ainda conseguia mandar em mim aos 34 anos de idade, com a autoridade de um império. Ela não tolerava desatenção, especialmente em momentos como aquele.Ajeitei o colarinho e dei uma última olhada em minha roupa. O terno estava perfeito, cortado sob medida, como sempre. Mas o maldito maluco no porto me fazia querer sair dali e resolver as coisas à força. Eu detestava lidar com traidores, mas Mamma sempre dizia: "O verdadeiro poder é silencioso, Luca. Não se perde tempo com gritos."Ainda inquieto, me virei para ela, buscando algum tipo de conselho ou distração.— Eu detesto esses malditos jantares. — mu
A mesa estava iluminada apenas por velas, o ambiente opressor e formal. A comida, excelente como se esperava, estava sendo servida em silêncio, mas o verdadeiro banquete parecia estar acontecendo nas conversas, as palavras disfarçadas de elogios e investigações disfarçadas de casualidade. Eu, como sempre, mantinha minha postura impecável, minhas mãos delicadamente repousadas sobre o colo, e as palavras escolhidas com extremo cuidado.Athena, a mãe de Luca, falava com minha mãe, Marie, sobre a educação que eu havia recebido. Seus olhos, frios e calculistas, estavam fixos em minha mãe, mas eu podia sentir o peso do olhar de Luca em mim, tão pesado que parecia que eu estava sendo analisada por dentro, como se ele buscasse entender cada pedaço de mim que eu tentava esconder.— A Elena sempre foi muito dedicada aos estudos — minha mãe começou, com um sorriso orgulhoso no rosto. — Ela estudou nas melhores escolas de etiqueta, se formou em três idiomas e ainda teve uma educação política bast
O silêncio pairava sobre a sala como uma lâmina prestes a cair. Homens de rostos endurecidos, leais à Cosa Nostra – ou assim afirmavam ser – me observavam ao redor da mesa de mogno escuro. Olhos calculistas. Alguns, desafiadores. Outros, inseguros. Mas nenhum ousava desviar o olhar quando eu falava.A informação tinha chegado a mim mais cedo, um sussurro camuflado no submundo, carregado pelo vento de Palermo: há um traidor entre nós.Cruzei os dedos sobre a mesa, mantendo a postura firme. Eu não demonstraria fraqueza. Eles não me viam como um homem comum. Eu era o Don. O sangue e o suor de gerações estavam no peso do meu nome.— Recebi uma denúncia. — Minha voz soou fria, controlada. — Alguém aqui acredita que pode me trair e sair impune.Os homens se entreolharam. O ambiente se tornou mais tenso. Meu olhar varreu cada rosto presente. Eu conhecia cada um deles. Conhecia suas famílias, suas histórias, seus medos. Sabia exatamente até onde cada um estaria disposto a ir por poder.— Isso
A noite caía sobre Palermo, tingindo o céu com tons de violeta e dourado. Da sacada do meu quarto, eu observava os jardins iluminados por pequenas lanternas penduradas nos galhos das oliveiras, onde homens engravatados e mulheres em vestidos refinados se moviam como sombras dançando sob a luz. Todas as famílias aliadas à Cosa Nostra estavam ali para prestigiar a assinatura do contrato de casamento. A união que selaria um pacto de sangue, de poder. E a mim, caberia o papel da noiva obediente.Minha mãe trabalhava nos últimos retoques do meu cabelo, suas mãos precisas prendendo uma mecha solta atrás da orelha, enquanto uma das empregadas subia o zíper do vestido de seda branca. O tecido era frio contra minha pele, pesado de significados que eu ainda não ousava nomear.— Você está perfeita, Elena — disse minha mãe, sua voz b
A noite estava quente, e o aroma de jasmim e vinho pairava no ar conforme eu caminhava entre as mesas dispostas pelo jardim. Os cumprimentos eram previsíveis, palavras formais, apertos de mãos firmes, olhares que diziam mais do que qualquer saudação poderia expressar. Ao meu lado, minha mãe mantinha a postura impecável de sempre, cumprimentando os convidados com a graça e a autoridade que sempre exerceu dentro da Cosa Nostra.— Esta noite marca o início de uma nova era, Luca — ela disse suavemente, sem desviar os olhos de um dos capos que se aproximava. — Alguém tomará o meu lugar ao seu lado. Uma mulher escolhida para governar com você. Deve respeitá-la.Eu sabia disso. Sabia de tudo. E, ainda assim, a ideia de um casamento arranjado, de dividir minha vida com alguém que nunca escolhi, era um peso que eu carregava em silêncio. Mas eu era um homem fiel à minha casa, à minha instituição. Os sentimentos pessoais não tinham lugar a
A noite em Palermo era pesada, carregada de umidade salgada que grudava na pele como um aviso silencioso. Eu havia acabado de sair do jantar de assinatura do contrato de casamento com Elena. A cerimônia foi tão formal quanto esperado: sorrisos falsos, brindes vazios e aquele olhar de desespero nos olhos da princesa que tentava disfarçar com uma postura impecável. Ela era forte, eu dava isso a ela. Mas não era hora de pensar em Elena. Agora, eu tinha negócios mais urgentes para resolver.Matia, meu irmão e subchefe, já estava no carro me esperando, com Pietro, meu conselheiro, ao seu lado. Pietro era um homem de poucas palavras, mas cada uma delas valia seu peso em ouro. Ele era o cérebro por trás de muitas das minhas decisões, e eu confiava nele como confiava em poucos. Matia, por outro lado, era sangue do meu sangue. Leal até a morte, mas impulsivo como um furacão. Juntos, éramos a tríade que mantinha a Cosa Nostra em pé.O carro deslizou pelas ruas estreitas de Palermo até chegarmos
Seis anos antes...A catedral estava mergulhada na penumbra, iluminada apenas pelas velas que tremulavam em um ritmo irregular. O som dos meus passos ecoava pelo chão de mármore, cada batida lembrando que, a partir desta noite, minha vida não era mais minha. Era da Cosa Nostra.Olhei ao redor, permitindo que meus olhos percorressem cada banco. Todos os rostos estavam voltados para mim — aliados, cúmplices, homens e mulheres que deviam suas vidas e fortunas à minha família. Cada um deles estava aqui para testemunhar minha ascensão, para ver o filho de Salvatore De Luca tomar o lugar de seu pai.Meu olhar parou nos últimos bancos, onde estavam os Santoros. Sempre tão distintos, sempre escondidos sob a fachada impecável de uma família nobre, mas nós dois sabíamos o que eles realmente eram. O patriarca deles me lançou um breve aceno de cabeça, mas meu interesse não estava nele. Estava na garota ao seu lado.Ela estava parcialmente escondida pela escuridão, o rosto iluminado apenas pela lu
O silêncio dentro do carro é opressor.Os bancos de couro creme refletem a luz suave que entra pelas janelas, mas nada ali consegue aquecer a sensação de vazio que me toma. Meu pai está ao volante, os olhos fixos na estrada, sua expressão intransigente como sempre. Minha mãe, ao meu lado, olha pela janela, como se estivesse distante, em outro lugar. Em algum lugar onde a dor do momento não fosse tão real.Eu, por outro lado, não consigo desviar o olhar da barra do meu vestido azul. A delicadeza do tecido contra a minha pele parece quase zombar da minha incapacidade de escolher o próprio futuro. Cada fibra, cada detalhe cuidadosamente escolhido para ser a perfeita apresentação do que sou — uma obra de arte, mas apenas para ser admirada, não tocada.Hoje, meu futuro marido finalmente me verá. A imagem que sempre me foi vendida, o homem que todas as lendas falam. Mas para mim, ele não é mais do que uma sombra. Uma promessa de um destino que não escolhi.Os cabelos loiros, cuidadosamente