A noite em Palermo era pesada, carregada de umidade salgada que grudava na pele como um aviso silencioso. Eu havia acabado de sair do jantar de assinatura do contrato de casamento com Elena. A cerimônia foi tão formal quanto esperado: sorrisos falsos, brindes vazios e aquele olhar de desespero nos olhos da princesa que tentava disfarçar com uma postura impecável. Ela era forte, eu dava isso a ela. Mas não era hora de pensar em Elena. Agora, eu tinha negócios mais urgentes para resolver.
Matia, meu irmão e subchefe, já estava no carro me esperando, com Pietro, meu conselheiro, ao seu lado. Pietro era um homem de poucas palavras, mas cada uma delas valia seu peso em ouro. Ele era o cérebro por trás de muitas das minhas decisões, e eu confiava nele como confiava em poucos. Matia, por outro lado, era sangue do meu sangue. Leal até a morte, mas impulsivo como um furacão. Juntos, éramos a tríade que mantinha a Cosa Nostra em pé.
O carro deslizou pelas ruas estreitas de Palermo até chegarmos ao porto. O lugar era um labirinto de contêineres empilhados, guindastes silenciosos e o som constante das ondas batendo nos pilares de concreto. Era aqui que o verdadeiro poder da família era exercido, longe dos holofotes e dos jantares chiques. Aqui, a hierarquia era clara: eu era o Don, o chefe incontestável. Abaixo de mim, Matia e Pietro. Depois, os caporegimes, cada um responsável por sua própria equipe de soldados. E, finalmente, os soldados, homens que haviam provado sua lealdade através de sangue e suor. Ninguém chegava ao topo sem provar seu valor. A confiança era conquistada com atos, não com palavras.
Descemos do carro e caminhamos até a lancha que nos esperava. O motor roncou ao ser ligado, e logo estávamos cortando as águas escuras do Mediterrâneo. Matia ficou em pé ao meu lado, os olhos fixos no horizonte, enquanto Pietro permaneceu sentado, suas mãos entrelaçadas sobre o joelho, como se estivesse em uma reunião de negócios comum.
— Acha que é verdade, Luca? — Matia finalmente quebrou o silêncio, sua voz carregada de tensão. — Um traidor entre nós?
— Não acho, Matia. Eu sei — respondi, mantendo os olhos fixos no navio de carga que se aproximava. — Alguém está brincando com fogo, e eu vou descobrir quem é.
O navio era um monstro de aço, com suas luzes fracas piscando na escuridão. Subimos a escada de corda até o convés, onde o comandante nos esperava. Ele era um homem baixo e corpulento, com um olhar nervoso que não combinava com sua posição.
— Don Grecco — ele cumprimentou, curvando-se levemente. — O contêiner está pronto para inspeção.
— Leve-nos até ele — ordenei, sem perder tempo com formalidades.
Ele nos guiou por corredores estreitos até o contêiner em questão. Matia e Pietro ficaram atrás de mim, vigilantes. Quando o contêiner foi aberto, o cheiro de plástico e produtos químicos invadiu o ar. Lá estavam eles: pacotes e mais pacotes de drogas, cada um marcado com o emblema da Bratva, a máfia russa. Meu sangue ferveu.
— Merda — Matia resmungou, pegando um dos pacotes e examinando o símbolo. — Eles realmente têm a audácia de nos desafiar assim?
— Não é a Bratva — disse Pietro, calmamente. — É alguém aqui dentro, tentando nos colocar contra eles. Alguém que quer ver a família em guerra.
Eu sabia que ele estava certo. A Bratva não era burra o suficiente para marcar suas mercadorias assim, a menos que quisessem uma guerra. E uma guerra não beneficiava ninguém. Alguém dentro da Cosa Nostra estava tentando semear discórdia, manchar nossa honra. E eu não toleraria traição.
— Pietro — falei, minha voz tão fria quanto o vento noturno. — Comece a investigação. Quero nomes. Matia, aumente a segurança em todos os pontos de entrega. Ninguém entra ou sai sem minha autorização.
Eles assentiam, entendendo a gravidade da situação. Enquanto descemos do navio e voltamos para a lancha, minha mente já trabalhava em todas as possibilidades. Quem seria o traidor? Um caporegime ambicioso? Um soldado descontente? Ou alguém ainda mais próximo?
A noite estava longe de acabar, e eu sabia que, antes do amanhecer, sangue seria derramado.
A honra da família não era negociável, e eu faria o que fosse necessário para protegê-la.
A brisa salgada da noite acariciava minha pele enquanto eu permanecia sentada no banco de pedra, cercada pelo perfume das magnólias que resistiam ao vento marítimo. O som das ondas quebrando nas rochas abaixo da mansão era quase hipnótico, um ritmo constante que contrastava com o turbilhão dentro de mim. Não importava quantas vezes eu tentasse, o sono me escapava.Minhas mãos descansavam no colo, entrelaçadas, enquanto meus pensamentos se perdiam no desconhecido do futuro. O casamento havia sido selado em papel, e dentro de dias seria selado perante o mundo. Como matriarca da Cosa Nostra, quais seriam meus deveres? Quais os sacrifícios que ainda teriam que ser feitos?Eu nunca conheci liberdade, apenas uma coleira dourada que mudava de formato ao longo dos anos. Mas agora, ironicamente, o casamento que deveria me aprisionar parecia prestes a me dar algo diferente. Um lugar
As luzes douradas do ateliê refletiam nos espelhos altos, multiplicando os vestidos espalhados pelo salão. Camadas e mais camadas de tecidos volumosos, rendas pesadas e brilhos exagerados me envolviam como uma fortaleza opressiva. Eu estava sentada no pequeno tablado de provas, cercada por tule e seda bordada, enquanto minha mãe e minha futura sogra debatiam acaloradamente sobre qual modelo era digno de um casamento como o meu.— Esse tem presença! — minha mãe exclamou, apontando para um vestido com uma saia tão ampla que poderia engolir metade da sala.— Mas esse aqui tem mais sofisticação! — a sogra rebateu, puxando outro modelo ainda mais exagerado, coberto de bordados brilhantes.Eu respirei fundo, minhas mãos apertando o tecido do vestido que estava usando. Pesado, volumoso, sufocante. Assim como tudo naquele casamento. Como toda a min
O motor do carro roncava baixo enquanto eu dirigia pelas ruas estreitas da cidade, os faróis cortando a escuridão da noite. Matia estava ao meu lado, sentado no banco do passageiro, os dedos batendo levemente no joelho, como sempre fazia quando estava prestes a dizer algo que sabia que eu não queria ouvir. Eu conhecia meu irmão melhor do que ninguém. Ele era a parte sensata de nós dois, o equilíbrio que eu precisava. Por isso o escolhi como meu subchefe. A Cosa Nostra precisava de um líder forte, mas também de alguém sábio e inteligente. E Matia era exatamente isso.Mas, às vezes, eu odiava como ele sempre parecia saber o que eu estava pensando.— Luca — ele começou, a voz calma, mas firme. — Você quer me dizer por que decidiu aparecer no ateliê hoje.Eu não respondi de imediato, mantendo os olhos fixos na estrada. Sabia que ele não ia gostar da resposta. Matia sempre foi direto, e eu sempre fui teimoso. Era uma dinâmica que funcionava, mas que também gerava atritos.— Só queria me cer
A madrugada em Palermo é silenciosa, tão silenciosa que parece que até o vento respeita o código de mudeza que paira sobre esta cidade. Outra noite em que o sono não vem. Viro na cama, o eco dos meus pensamentos mais alto que o tic-tac do relógio na parede. A mansão dos Grecco, este pequeno castelo sombrio, parece respirar segredos. Os funcionários mal falam comigo, seus olhares sempre fugidios, como se eu fosse uma intrusa em um mundo que não me pertence. E talvez eu seja.Mas hoje, a curiosidade vence o medo. Levanto-me da cama, envolta em um roupão fino, e deslizo pelos corredores escuros. As escadas rangem sob meus pés descalços, mas não há ninguém para me ouvir. Luca não está em casa. Ele nunca está. As noites são dele, e eu não me permito pensar no que ele faz enquanto a lua brilha sobre Palermo.O terceiro andar é proibido para mim, mas é justamente por isso que vou. A ala de Luca é um mistério que não consigo ignorar. Os corredores são estreitos, as paredes adornadas com quadr
Eu a vejo antes que ela me veja. Elena está ali, no meio do meu escritório, segurando aquela pasta como se fosse a única coisa que a mantivesse de pé. Meu sangue ferve. Ela não deveria estar aqui. Ninguém deveria estar aqui. Mas é ela. E aqueles papéis... aqueles papéis que eu guardei por anos, escondidos até de mim mesmo, estão agora em suas mãos.— O que você está fazendo aqui?Minha voz soa mais áspera do que eu pretendia, mas não consigo ajudá-lo. Ela se vira, os olhos arregalados, como uma presa acuada. Os papéis voam pelo chão, e eu vejo a confusão, o medo, a curiosidade em seu rosto. Ela gagueja algo sobre insônia, sobre não conseguir dormir. Insônia? É essa a desculpa que ela me dá?— Então você achou que seria uma boa ideia bisbilhotar? — Pergunto, avançando em sua direção. Cada passo que dou parece ecoar no silêncio da sala. Ela se agarra aos papéis como se fossem sua salvação, como se eu fosse arrancá-los de suas mãos a qualquer momento. E talvez eu devesse. Mas há algo em
O sol da manhã entra suavemente pela janela do meu quarto, iluminando o vestido de noiva que penduram na frente do espelho. É um vestido deslumbrante, cheio de detalhes em renda e pérolas, digno de uma princesa. Mas quando olho para ele, sinto um nó no estômago. Não consigo ver beleza ali, apenas um símbolo do que minha vida se tornou: uma gaiola dourada.Os preparativos para o casamento estão em pleno andamento. A mansão está cheia de pessoas – costureiras, floristas, decoradores – todos ocupados, todos falando ao mesmo tempo. É um caos organizado, mas eu me sinto distante, como se estivesse observando tudo de fora. Minha mente não para de vagar para a noite passada, para aquela conversa com Luca no escritório."O seu pai, Elena, foi o mandante da morte do meu pai."As palavras dele ecoam na minha cabeça, uma sentença que não consi
Eu não queria mais pedaços soltos, fragmentos de histórias distorcidas para se encaixarem nos interesses do meu pai. Cansei de ser moldada para ser um presente, uma peça no tabuleiro dele. Precisava ouvir a verdade, diretamente da boca de Luca.— Quero que você me conte. — Minha voz saiu firme, apesar do nó na garganta. — Estou cansada de ser usada, de ser protegida como uma extensão dos planos do meu pai. Não quero mais documentos ou meias-verdades. Eu quero ouvir de você.Luca me olhou por um longo tempo. Eu pude ver o conflito dentro dele, o peso do que estava prestes a dizer. Mas, acima de tudo, eu vi algo que nunca encontrei nos olhos de nenhum homem antes: proteção.—Senta aqui comigo. — Ele disse, batendo levemente no sofá ao lado dele.Obedeci, sentando ao seu lado sem desviar os
O escritório estava mergulhado em penumbra, iluminado apenas pelo abajur sobre minha mesa e pelo brilho distante das luzes da propriedade. O silêncio era quebrado apenas pelo leve farfalhar das páginas que Matia folheava, sentado à minha frente. Pietro, como sempre, mantinha-se em pé diante das janelas, os braços cruzados, observando o nada.Eu sabia que eles estavam insatisfeitos. Podia sentir isso na tensão que pairava no ar, na maneira como Matia franziu a testa ao ler o relatório em suas mãos, no modo como Pietro apertava a mandíbula, ponderando algo que ainda não havia dito.— Você contou para ela — a voz de Matia cortou o silêncio, carregada de censura. Ele ergueu os olhos para mim, um brilho de frustração no olhar. — O que diabos você estava pensando, Luca?Recostei-me na cadeira, cruzando os dedos sobre a mesa. Eu já esperava essa reação.— Eu estava pensando que manter Elena no escuro só a deixaria mais determinada a descobrir tudo por conta própria — respondi com calma. — E s