A noite caía sobre Palermo, tingindo o céu com tons de violeta e dourado. Da sacada do meu quarto, eu observava os jardins iluminados por pequenas lanternas penduradas nos galhos das oliveiras, onde homens engravatados e mulheres em vestidos refinados se moviam como sombras dançando sob a luz. Todas as famílias aliadas à Cosa Nostra estavam ali para prestigiar a assinatura do contrato de casamento. A união que selaria um pacto de sangue, de poder. E a mim, caberia o papel da noiva obediente.
Minha mãe trabalhava nos últimos retoques do meu cabelo, suas mãos precisas prendendo uma mecha solta atrás da orelha, enquanto uma das empregadas subia o zíper do vestido de seda branca. O tecido era frio contra minha pele, pesado de significados que eu ainda não ousava nomear.
— Você está perfeita, Elena — disse minha mãe, sua voz baixa, como um sussurro que apenas nós duas poderíamos ouvir. Mas eu sabia que seu olhar analisava mais do que minha aparência. Ela queria ter certeza de que eu me lembrava do meu dever.
Antes que eu pudesse responder, a porta do quarto se abriu, e meu pai entrou sem cerimônia. O silêncio se instaurou, e as outras mulheres entenderam o comando implícito. Sem hesitar, minha mãe se afastou e fez um sinal para que todas saíssem. A porta se fechou atrás delas, deixando-me a sós com ele.
Meu pai era um homem de presença imponente, os cabelos grisalhos bem penteados, o terno escuro sem um único vinco fora do lugar. Caminhou até mim, suas mãos às costas, e se posicionou diante da sacada, seus olhos percorrendo a cena lá embaixo antes de finalmente pousarem sobre mim.
— É um grande dia para você — ele disse, sua voz carregada de uma calma calculada. — Para todos nós.
Eu apenas assenti. Ele nunca foi um homem de palavras desnecessárias. Se estava ali, era porque queria dizer algo que realmente importava.
— Você se tornará a matriarca da máfia mais poderosa do mundo esta noite — continuou ele. — Mas nunca se esqueça de onde está sua verdadeira lealdade.
Eu prendi a respiração por um segundo. Já sabia o que viria a seguir. Ainda assim, ouvir as palavras era diferente de apenas carregá-las no pensamento.
— A sua fidelidade pertence à coroa — ele prosseguiu. — O sangue real francês sempre prevalece. É o que somos. O que sempre fomos. Luca pode pensar que conquistou algo esta noite, mas no final, o verdadeiro poder ainda será nosso.
Fechei os dedos ao redor da grade da sacada, sentindo o ferro frio contra minha pele quente. Sabia o que esperavam de mim. Meu casamento era apenas o primeiro passo. O verdadeiro plano já estava traçado.
— Após a cerimônia, você deve seguir o plano — meu pai continuou, sem hesitação. — Luca deve morrer. E quando isso acontecer, eu assumirei o poder da Cosa Nostra.
Aquelas palavras pairaram no ar entre nós, pesadas, irreversíveis.
Matar Luca.
Sabia o que isso significava. Uma traição como essa não passaria impune. A Cosa Nostra nunca perdoava. A única punição para a deslealdade era a morte. E ainda assim, qual escolha eu tinha?
Olhei para meu pai, para o homem que moldou meu destino desde o meu nascimento. Eu podia sentir a expectativa em seu olhar, a certeza de que eu cumpriria meu dever sem questionar.
— Você entende, Elena? — ele perguntou, e dessa vez, sua voz soou quase gentil.
Engoli seco e assenti.
— Sim, papai. Serei fiel a você.
Ele pareceu satisfeito com minha resposta. Tocou meu rosto de leve, como se quisesse reforçar sua confiança em mim. Mas assim que ele se virou para sair, senti algo apertar dentro de mim. Uma verdade incômoda que eu ainda não havia confessado nem para mim mesma.
Porque, no fundo do meu coração, eu queria buscar proteção em Luca. Eu sabia que esse casamento poderia ser a minha ruína, minha morte e a minha ascensão como uma traídora, mas também poderia ser a minha liberdade.
Eu me tornaria a matriarca da família mais poderosa do mundo, minha lealdade seria do meu marido e a dele me pertenceria. Luca poderia ser a minha salvação se eu fosse digna de sua confiança. Eu desejava isso, pela primeira vez ser algo além da filha que meus pais geraram por um acordo.
Desejava a confiança de alguém.
A noite estava quente, e o aroma de jasmim e vinho pairava no ar conforme eu caminhava entre as mesas dispostas pelo jardim. Os cumprimentos eram previsíveis, palavras formais, apertos de mãos firmes, olhares que diziam mais do que qualquer saudação poderia expressar. Ao meu lado, minha mãe mantinha a postura impecável de sempre, cumprimentando os convidados com a graça e a autoridade que sempre exerceu dentro da Cosa Nostra.— Esta noite marca o início de uma nova era, Luca — ela disse suavemente, sem desviar os olhos de um dos capos que se aproximava. — Alguém tomará o meu lugar ao seu lado. Uma mulher escolhida para governar com você. Deve respeitá-la.Eu sabia disso. Sabia de tudo. E, ainda assim, a ideia de um casamento arranjado, de dividir minha vida com alguém que nunca escolhi, era um peso que eu carregava em silêncio. Mas eu era um homem fiel à minha casa, à minha instituição. Os sentimentos pessoais não tinham lugar a
A noite em Palermo era pesada, carregada de umidade salgada que grudava na pele como um aviso silencioso. Eu havia acabado de sair do jantar de assinatura do contrato de casamento com Elena. A cerimônia foi tão formal quanto esperado: sorrisos falsos, brindes vazios e aquele olhar de desespero nos olhos da princesa que tentava disfarçar com uma postura impecável. Ela era forte, eu dava isso a ela. Mas não era hora de pensar em Elena. Agora, eu tinha negócios mais urgentes para resolver.Matia, meu irmão e subchefe, já estava no carro me esperando, com Pietro, meu conselheiro, ao seu lado. Pietro era um homem de poucas palavras, mas cada uma delas valia seu peso em ouro. Ele era o cérebro por trás de muitas das minhas decisões, e eu confiava nele como confiava em poucos. Matia, por outro lado, era sangue do meu sangue. Leal até a morte, mas impulsivo como um furacão. Juntos, éramos a tríade que mantinha a Cosa Nostra em pé.O carro deslizou pelas ruas estreitas de Palermo até chegarmos
A brisa salgada da noite acariciava minha pele enquanto eu permanecia sentada no banco de pedra, cercada pelo perfume das magnólias que resistiam ao vento marítimo. O som das ondas quebrando nas rochas abaixo da mansão era quase hipnótico, um ritmo constante que contrastava com o turbilhão dentro de mim. Não importava quantas vezes eu tentasse, o sono me escapava.Minhas mãos descansavam no colo, entrelaçadas, enquanto meus pensamentos se perdiam no desconhecido do futuro. O casamento havia sido selado em papel, e dentro de dias seria selado perante o mundo. Como matriarca da Cosa Nostra, quais seriam meus deveres? Quais os sacrifícios que ainda teriam que ser feitos?Eu nunca conheci liberdade, apenas uma coleira dourada que mudava de formato ao longo dos anos. Mas agora, ironicamente, o casamento que deveria me aprisionar parecia prestes a me dar algo diferente. Um lugar
As luzes douradas do ateliê refletiam nos espelhos altos, multiplicando os vestidos espalhados pelo salão. Camadas e mais camadas de tecidos volumosos, rendas pesadas e brilhos exagerados me envolviam como uma fortaleza opressiva. Eu estava sentada no pequeno tablado de provas, cercada por tule e seda bordada, enquanto minha mãe e minha futura sogra debatiam acaloradamente sobre qual modelo era digno de um casamento como o meu.— Esse tem presença! — minha mãe exclamou, apontando para um vestido com uma saia tão ampla que poderia engolir metade da sala.— Mas esse aqui tem mais sofisticação! — a sogra rebateu, puxando outro modelo ainda mais exagerado, coberto de bordados brilhantes.Eu respirei fundo, minhas mãos apertando o tecido do vestido que estava usando. Pesado, volumoso, sufocante. Assim como tudo naquele casamento. Como toda a min
O motor do carro roncava baixo enquanto eu dirigia pelas ruas estreitas da cidade, os faróis cortando a escuridão da noite. Matia estava ao meu lado, sentado no banco do passageiro, os dedos batendo levemente no joelho, como sempre fazia quando estava prestes a dizer algo que sabia que eu não queria ouvir. Eu conhecia meu irmão melhor do que ninguém. Ele era a parte sensata de nós dois, o equilíbrio que eu precisava. Por isso o escolhi como meu subchefe. A Cosa Nostra precisava de um líder forte, mas também de alguém sábio e inteligente. E Matia era exatamente isso.Mas, às vezes, eu odiava como ele sempre parecia saber o que eu estava pensando.— Luca — ele começou, a voz calma, mas firme. — Você quer me dizer por que decidiu aparecer no ateliê hoje.Eu não respondi de imediato, mantendo os olhos fixos na estrada. Sabia que ele não ia gostar da resposta. Matia sempre foi direto, e eu sempre fui teimoso. Era uma dinâmica que funcionava, mas que também gerava atritos.— Só queria me cer
A madrugada em Palermo é silenciosa, tão silenciosa que parece que até o vento respeita o código de mudeza que paira sobre esta cidade. Outra noite em que o sono não vem. Viro na cama, o eco dos meus pensamentos mais alto que o tic-tac do relógio na parede. A mansão dos Grecco, este pequeno castelo sombrio, parece respirar segredos. Os funcionários mal falam comigo, seus olhares sempre fugidios, como se eu fosse uma intrusa em um mundo que não me pertence. E talvez eu seja.Mas hoje, a curiosidade vence o medo. Levanto-me da cama, envolta em um roupão fino, e deslizo pelos corredores escuros. As escadas rangem sob meus pés descalços, mas não há ninguém para me ouvir. Luca não está em casa. Ele nunca está. As noites são dele, e eu não me permito pensar no que ele faz enquanto a lua brilha sobre Palermo.O terceiro andar é proibido para mim, mas é justamente por isso que vou. A ala de Luca é um mistério que não consigo ignorar. Os corredores são estreitos, as paredes adornadas com quadr
Eu a vejo antes que ela me veja. Elena está ali, no meio do meu escritório, segurando aquela pasta como se fosse a única coisa que a mantivesse de pé. Meu sangue ferve. Ela não deveria estar aqui. Ninguém deveria estar aqui. Mas é ela. E aqueles papéis... aqueles papéis que eu guardei por anos, escondidos até de mim mesmo, estão agora em suas mãos.— O que você está fazendo aqui?Minha voz soa mais áspera do que eu pretendia, mas não consigo ajudá-lo. Ela se vira, os olhos arregalados, como uma presa acuada. Os papéis voam pelo chão, e eu vejo a confusão, o medo, a curiosidade em seu rosto. Ela gagueja algo sobre insônia, sobre não conseguir dormir. Insônia? É essa a desculpa que ela me dá?— Então você achou que seria uma boa ideia bisbilhotar? — Pergunto, avançando em sua direção. Cada passo que dou parece ecoar no silêncio da sala. Ela se agarra aos papéis como se fossem sua salvação, como se eu fosse arrancá-los de suas mãos a qualquer momento. E talvez eu devesse. Mas há algo em
O sol da manhã entra suavemente pela janela do meu quarto, iluminando o vestido de noiva que penduram na frente do espelho. É um vestido deslumbrante, cheio de detalhes em renda e pérolas, digno de uma princesa. Mas quando olho para ele, sinto um nó no estômago. Não consigo ver beleza ali, apenas um símbolo do que minha vida se tornou: uma gaiola dourada.Os preparativos para o casamento estão em pleno andamento. A mansão está cheia de pessoas – costureiras, floristas, decoradores – todos ocupados, todos falando ao mesmo tempo. É um caos organizado, mas eu me sinto distante, como se estivesse observando tudo de fora. Minha mente não para de vagar para a noite passada, para aquela conversa com Luca no escritório."O seu pai, Elena, foi o mandante da morte do meu pai."As palavras dele ecoam na minha cabeça, uma sentença que não consi