A situação era tão irreal que parecia um sonho distorcido. Eu, Jhulietta Duarte, professora de uma escola pública, estava agora enclausurada no banco de trás de um carro luxuoso, a mão pequena de Ethan apertando a minha com uma força quase desesperada. À nossa frente, o homem que presumivelmente era seu pai, o motorista, emanava uma aura de tensão palpável. Sua postura rígida, os olhos fixos na estrada como se fugisse de algo, denunciavam uma batalha interna, um turbilhão de emoções contido a duras penas.
— Senhor… — tentei quebrar o silêncio denso que nos envolvia como uma mortalha. — Santorini. Nicolas Santorini — respondeu ele, sem desviar o olhar da estrada. A voz grave e autoritária ecoou no interior do carro, revelando um homem acostumado a comandar. Engoli em seco. O sobrenome soava familiar, uma vaga lembrança que dançava à margem da minha memória, sem se concretizar. — Senhor Santorini, não quero me intrometer, mas… acho que precisamos conversar sobre o que aconteceu. Um suspiro impaciente escapou de seus lábios, como se minha tentativa de diálogo fosse uma intrusão irritante. — Não há muito o que dizer, senhorita… — Ele lançou um olhar rápido pelo retrovisor, como se esperasse que eu completasse a frase. — Jhulietta Duarte — respondi, e ele permaneceu em silêncio por alguns segundos, processando a informação. — Senhorita Duarte, Ethan tem passado por momentos difíceis recentemente. Ele está… confuso. Isso explica o comportamento dele. Olhei para Ethan. Sua cabeça baixa, o aperto em minha mão, tudo nele gritava confusão e dor. Mas havia algo no tom de Nicolas que me incomodava profundamente. Era como se ele estivesse minimizando a angústia do próprio filho. — E o que aconteceu para deixá-lo assim? — arrisquei, sentindo um frio na espinha. Uma longa pausa pairou no ar antes que Nicolas respondesse, como se ele estivesse medindo cada palavra, decidindo o quanto revelar. — A mãe de Ethan faleceu há seis meses — a voz carregada de uma tristeza contida, quase fria. Um nó se formou em minha garganta. Voltei meu olhar para Ethan, que pareceu encolher ainda mais com a menção da mãe. A fragilidade em seus ombros era quase insuportável. — Meus sentimentos — murmurei, a voz embargada. Palavras pareciam tão insuficientes diante de tamanha dor. — Obrigado — respondeu Nicolas, seco. O resto da viagem transcorreu em um silêncio opressor. Eu ansiava por fazer mais perguntas, entender a dinâmica daquela família, mas Nicolas havia erguido uma barreira intransponível. Quando o carro parou em frente a um prédio imponente, a realidade da situação me atingiu com ainda mais força. A fachada grandiosa, a entrada luxuosa, tudo ali gritava riqueza e poder, um universo completamente distante da minha vida simples e cotidiana. Nicolas estacionou na garagem subterrânea e saiu do carro com movimentos rápidos e precisos, abrindo a porta para Ethan. O menino hesitou em soltar minha mão, mas o pai o chamou com uma firmeza que não admitia réplicas. — Ethan, vamos. Agora. O tom autoritário fez com que ele soltasse minha mão lentamente. Senti um aperto no coração ao vê-lo se afastar, os ombros curvados sob o peso da tristeza. — Senhorita Duarte, agradeço por ter ajudado meu filho, mas agora é melhor que siga seu caminho. A frieza daquelas palavras me atingiu como um tapa. Antes que eu pudesse sequer formular uma resposta, Ethan correu de volta e se agarrou às minhas pernas, com o rosto banhado em lágrimas. — Não vai embora, mamãe! Por favor, não me deixa! Encarei Nicolas. A irritação era evidente em seu rosto, mas havia algo mais ali, uma sombra de desespero, um pedido silencioso de ajuda que ele se recusava a verbalizar. — Talvez… talvez eu possa ajudar — sugeri, sentindo a ousadia das minhas próprias palavras. — Ajudar como? — perguntou Nicolas, o ceticismo estampado em cada traço de seu rosto. — Não sei exatamente. Sou professora. Trabalho com crianças todos os dias. Talvez Ethan precise de alguém que… se conecte com ele. Ele me observou por um longo momento, como se estivesse tentando ler meus pensamentos. Então, suspirou profundamente, um gesto que parecia carregar o peso do mundo. — Suba. A surpresa me paralisou por um instante, mas não hesitei. Ethan segurou minha mão novamente, e Nicolas nos guiou até um elevador privativo. Quando as portas se abriram para um apartamento que ocupava um andar inteiro, fiquei sem palavras. As janelas panorâmicas emolduravam uma vista deslumbrante da cidade, e a decoração, embora impecável, exalava uma frieza asséptica. Era um lar sem alma. Ethan me puxou pela mão até um quarto que, apesar da quantidade de brinquedos intocados, parecia igualmente vazio. Não havia a bagunça típica de uma criança, apenas a ordem fria imposta pela ausência de vida. — Este é meu quarto — disse ele, a voz carregada de uma tristeza profunda. — É lindo, Ethan. Você tem muitos brinquedos. Ele assentiu, mas seus olhos permaneceram opacos. — O papai comprou tudo isso, mas… eu só queria a minha mamãe. Ajoelhei-me à sua frente, sentindo a dor lancinante daquele pequeno coração. — Eu sei que é difícil, Ethan, mas tenho certeza de que sua mãe está olhando por você, onde quer que ela esteja. Ele assentiu lentamente, os olhos marejados. — Você vai ficar? Antes que eu pudesse responder, Nicolas surgiu na porta. — Ethan, vá lavar as mãos. Vou pedir algo para comermos. O menino hesitou, mas acabou obedecendo. Assim que ele saiu, Nicolas cruzou os braços e me encarou com uma intensidade que me intimidou. — Escute, senhorita Duarte, não sei qual o seu interesse nisso, mas quero deixar uma coisa bem clara: eu não preciso da sua ajuda. Imitei seu gesto, cruzando os braços também. — Não parece estar lidando muito bem com a situação, senhor Santorini. Ethan está sofrendo, e o senhor está simplesmente ignorando isso. Seus olhos se estreitaram, como se ele não estivesse acostumado a ser contrariado. — E o que a senhorita sugere? Que eu a contrate como babá? — Não sou babá. Sou professora. E talvez Ethan precise de algo mais do que brinquedos caros e um apartamento de luxo. Talvez ele precise de… conexão. Por um instante, temi que ele me expulsasse dali. Mas, para minha surpresa, ele suspirou novamente, um som carregado de exaustão. — Certo. Vou permitir que passe um tempo com ele. Mas apenas até que ele… supere isso. — A forma como ele me olhou, como se eu fosse uma intrusa em seu mundo perfeito, deixou claro que aquela era uma concessão relutante. Percebi que, por trás da fachada fria e autoritária, Nicolas também estava perdido. Talvez Ethan não fosse o único a precisar de ajuda.Nicolas Santorini Chegar em casa sempre me proporcionava uma trégua efêmera. Um breve alívio antes da exaustão inevitável. Meu dia, como tantos outros, fora uma maratona de reuniões intermináveis, a frieza dos contratos e o peso das decisões cruciais. Ao sair do elevador privativo, tudo o que eu ansiava era o silêncio reconfortante do meu lar e a presença de Ethan, mesmo que nossos encontros, desde a partida de Laura, fossem permeados por uma melancolia persistente.Mas, assim que as portas se abriram, uma dissonância me atingiu. O apartamento estava silencioso demais. Um silêncio que gritava ausência. Normalmente, a essa hora, Ethan estaria espalhando alegria – e brinquedos – pela sala, sua risada ecoando pelos cômodos. Fechei a porta atrás de mim, um pressentimento incômodo se instalando em meu peito.— Ethan? — chamei, a voz ecoando no vazio.O silêncio respondeu.A calma que eu tanto buscava se esvaiu, dando lugar a uma crescente apreensão. Caminhei pelo apartamento, cada passo a
Jhulietta Duarte O dia na escola transcorreu entre a sinfonia usual de vozes infantis, risadas contagiantes e os desafios inerentes ao desenvolvimento. Ensinar era mais do que uma profissão, era a minha paixão, a força motriz que me impelia adiante. No entanto, mesmo em meio à rotina, a imagem de Ethan e o eco de sua voz me chamando de “mamãe” persistiam em minha mente. Aquele gesto, apesar de toda a sua estranheza, havia plantado uma semente de afeto em meu coração.Enquanto organizava meus materiais após o expediente, uma mensagem inesperada vibrou em meu celular. Era de Nicolas Santorini. A mensagem, concisa e direta, contrastava com a imagem fria que eu tinha dele."Ethan insiste em vê-la. Se estiver disponível, venha até minha casa. Ele parece mais tranquilo com sua presença."Relendo a mensagem, tentei decifrar o que motivara aquele convite. Desespero? Pragmatismo? Ou algo mais? A mera possibilidade de rever Ethan me trouxe um calor reconfortante. Aos poucos, as visitas foram s
Nicolas SantoriniAs palavras de Ethan martelavam em minha mente como uma acusação silenciosa: “Eles dizem que sou órfão. Que minha mãe não me aguentou.” A crueldade infantil, tão brutal quanto inesperada, me confrontava com minha própria negligência. Eu estava falhando com meu filho, deixando-o à mercê de um mundo implacável.O restante do jantar se arrastou em um silêncio constrangedor. Ethan, absorto em seus próprios pensamentos sombrios, mal tocou na comida. Jhulietta, com uma delicadeza admirável, tentava amenizar a atmosfera pesada, mas seus esforços eram em vão. Eu apenas observava, perdido em um turbilhão de culpa e arrependimento. Quando Ethan finalmente pediu licença para se retirar, um alívio momentâneo pairou na sala de jantar. Mas a conversa que se seguiu prometia ser ainda mais difícil.Jhulietta me encarou, um misto de desconforto e determinação em seus olhos.— Ele não deveria passar por isso. — Sua voz era suave, mas carregada de convicção.— Acha que eu não sei? — re
Nicolas Santorini Saí do quarto de Ethan com o peso do mundo sobre os ombros. Cada passo ecoava no corredor silencioso, a responsabilidade de ser o pai que meu filho merecia me oprimindo a cada instante. Eu me sentia perdido, sem saber como preencher o vazio deixado por Laura, um vazio que, sem perceber, havia me afastado de Ethan, deixando-o à deriva em meio à própria dor. Na mesa da sala de estar, um envelope chamou minha atenção. Era um dossiê de Pedro, meu assistente e homem de confiança, sempre diligente em me manter informado sobre tudo, especialmente sobre aqueles que se aproximavam da minha família. Desde a morte de Laura, minha cautela se tornara quase paranoica, e Pedro entendia essa necessidade de proteção. Sentei-me na poltrona, o couro macio cedendo sob meu peso, e abri o envelope. O nome “Jhulietta Duarte” saltava aos meus olhos. Eu precisava saber mais sobre a mulher que havia entrado em nossas vidas com tanta intensidade. As páginas seguintes revelaram uma históri
Jhulietta DuarteO “ok” que digitei no celular parecia ecoar na quietude do meu pequeno apartamento. Um simples “ok” que selava um acordo, um compromisso, algo que eu jamais imaginei aceitar. Nicolas Santorini, um homem envolto em mistério e frieza, havia me oferecido um lugar na vida de seu filho, um lugar que, por algum motivo inexplicável, parecia destinado a mim.A noite se arrastou, povoada por pensamentos inquietos. A imagem de Ethan, com seus olhos azuis carregados de tristeza e a voz embargada ao falar da mãe, se misturava às lembranças dolorosas da minha própria infância. A dor da perda, o vazio da ausência, a crueldade das palavras… eu conhecia cada faceta daquele sofrimento. E talvez fosse essa compreensão, essa empatia visceral, que me impelia a aceitar a proposta de Nicolas.Na manhã seguinte, preparei-me para o trabalho com uma sensação estranha. A rotina na escola parecia distante, ofuscada pela iminente conversa com Nicolas. As crianças, com suas energias vibrantes e p
A chuva começou a cair assim que saí da mansão Santorini, grossos pingos molhando meu rosto e lavando, momentaneamente, a sensação opressora que me acompanhava. O vento uivava entre os prédios, como se carregasse consigo os ecos de um passado que eu tanto me esforçava para manter adormecido. A conversa com Nicolas, a revelação sobre a pesquisa de Pedro, a vaga e perturbadora semelhança entre mim e Laura… tudo se somava a um turbilhão de pensamentos que me deixavam inquieta. Dentro do ônibus, enquanto observava as luzes da cidade se refletirem nas janelas molhadas, tentei organizar minhas ideias. Nicolas havia sido surpreendentemente aberto sobre a situação de Ethan, demonstrando uma preocupação genuína com o bem-estar do filho. A oferta de ser tutora de Ethan, embora inesperada, me parecia uma oportunidade de fazer a diferença na vida daquele menino tão fragilizado. Mas a menção à pesquisa de Pedro… isso me perturbava profundamente. Sempre fui muito reservada sobre meu passado. As
Nicolas Santorini A manhã amanheceu com um céu plúmbeo, como se as nuvens densas refletissem o turbilhão de pensamentos que me assaltavam. Desde a chegada de Jhulietta à mansão, uma corrente invisível havia alterado a atmosfera da casa, e, mais inquietante, a minha própria. Uma energia sutil, difícil de definir, pairava no ar. Contudo, a cautela, cultivada a ferro e fogo ao longo dos anos, mantinha-se em guarda. Jhulietta era uma incógnita, um enigma que me atraía e, ao mesmo tempo, me deixava em estado de alerta constante. Após o café da manhã solitário na imensa sala de jantar um ritual matinal que se tornara rotina, decidi convocar Dona Bryana. Se alguém naquela casa possuía o dom da observação, era ela. — Dona Bryana, poderia vir ao meu escritório, por favor? — chamei, vendo-a surgir quase imediatamente na soleira da porta, com sua postura impecável e o olhar penetrante de quem tudo vê e pouco revela. — Às suas ordens, senhor Nicolas — respondeu, com a formalidade de sempre.
O calor úmido de Recife me envolveu assim que pisei fora do avião, um contraste gritante com o ar frio e seco que eu deixara para trás na mansão Santorini. O cheiro salgado do mar, tão característico da região, trouxe à tona memórias de um tempo em que eu permitia que o lazer e a despreocupação fizessem parte da minha vida. O motorista, impecavelmente alinhado, aguardava com uma placa discreta com meu nome.— Boa noite, senhor Santorini — cumprimentou com uma breve inclinação de cabeça, pegando minha bagagem.— Boa noite. Direto para o resort, por favor — respondi, entrando no carro.A viagem até Porto de Galinhas durou cerca de uma hora. O trajeto me ofereceu um breve interlúdio para repassar mentalmente os detalhes do problema estrutural. Uma fissura preocupante, segundo Eduardo, exigindo intervenção imediata para evitar maiores danos. Um contratempo irritante, mas administrável.Eduardo me aguardava na entrada do resort, sua figura alta e elegante destacando-se mesmo sob o calor tr