Meu nome é Jhulietta Duarte, mas todos me chamam de Ju. Leciono em uma escola pública no coração da cidade e, se aprendi algo nesses anos, é que a rotina simplesmente não existe. Por mais que eu planeje cada detalhe das minhas aulas, sempre surge uma criança com uma pergunta inesperada, um pequeno incidente ou um evento que vira o dia de cabeça para baixo.
Naquela tarde, porém, eu ansiava por uma exceção à regra. Após uma semana exaustiva, meu único desejo era chegar em casa, me livrar dos sapatos apertados, preparar uma xícara de chá quente e me afundar em um filme qualquer. Um final de semana tranquilo, sem sobressaltos. O relógio se aproximava das seis e o céu se incendiava em tons de laranja e rosa, um espetáculo que sempre me lembrava da beleza nas pequenas coisas. O trajeto até o ponto de ônibus era uma trilha conhecida: ruas calmas onde crianças corriam e brincavam, cães latiam para o vento e o murmúrio distante do trânsito ecoava do centro. Mas, naquela tarde, a atmosfera estava carregada de uma estranha quietude. Ao virar a esquina, meus olhos encontraram um menino sentado na sarjeta, os braços magros abraçando os joelhos. Ele parecia ter se perdido de tudo, pequeno demais para o abandono que exalava. Suas roupas estavam empoeiradas, os cabelos em desalinho, e seus olhos fixos no asfalto como se buscassem ali a resposta para um enigma indecifrável. Meus pés pararam antes que minha mente pudesse sequer processar a cena. Talvez tenha sido o instinto materno que reside em toda professora, ou simplesmente a compaixão diante daquela figura tão frágil, mas me vi caminhando em sua direção. — Oi, tudo bem? — perguntei, tentando transmitir segurança e afeto na voz. Lentamente, o menino ergueu o rosto. Seus olhos, de um azul tão profundo que pareciam abismos, me atingiram como um choque. Eram olhos de quem já viu demais, carregados de uma tristeza antiga. Por um instante, ele apenas me encarou, como se tentasse decifrar se eu era real. Então, num movimento súbito, ele se levantou, correu e me envolveu em um abraço desesperado. — Mamãe! — a palavra escapou de seus lábios como um grito silencioso, seu rosto enterrado em meu casaco. Meu corpo inteiro congelou. *Mamãe?* A palavra reverberou em minha mente como um trovão. O que estava acontecendo? Meu coração disparou em um ritmo frenético enquanto a confusão tomava conta de mim. — Ei, calma… — murmurei, acariciando seus cabelos emaranhados com a mão hesitante. — Acho que você está me confundindo com outra pessoa. Ele se afastou minimamente para me fitar nos olhos, ainda agarrado ao meu casaco com uma força surpreendente. — Você é a mamãe! Eu sabia que você ia voltar. A dor em sua voz era tão palpável que meus próprios olhos começaram a arder. *Quem era essa criança? E por que ele tinha tanta certeza de que eu era sua mãe?* — Qual o seu nome? — consegui perguntar, tentando manter a voz firme. — Ethan — respondeu ele, com a convicção de quem oferece a única explicação necessária. — Ethan, me desculpe, mas eu não sou sua mãe… — comecei, mas ele sacudiu a cabeça em negativa, interrompendo-me. — Você é! O papai disse que você tinha ido embora, mas eu sabia que você ia voltar. *Papai?* Um frio percorreu meu estômago. A possibilidade de ele estar perdido, ou pior, fugindo de casa, me atingiu como um soco. Ajoelhei-me para ficar à sua altura e segurei seus ombros pequenos. — Ethan, onde está seu pai? Ele sabe que você está aqui? Ele desviou o olhar, como se a simples menção do pai fosse dolorosa. Antes que eu pudesse insistir, uma voz grave e autoritária ecoou atrás de mim. — Ethan! Virei-me bruscamente e me deparei com um homem alto, vestido em um terno impecável, o rosto marcado por uma mistura de alívio e… fúria? Seus passos eram rápidos e determinados, os olhos fixos no menino. — O que você pensa que está fazendo? — ele perguntou, sem sequer me dirigir um olhar. Ethan se encolheu atrás de mim, apertando minha mão com força. — Eu não quero voltar para casa, papai. Eu quero ficar com a mamãe. — Ethan, chega! — o homem exclamou, a paciência claramente se esgotando. Finalmente, seus olhos se voltaram para mim, como se só então notasse minha presença. — Quem é você? — Eu… eu sou Jhulietta. Eu o encontrei aqui na rua. Ele parecia perdido, então parei para ajudar. O homem suspirou pesadamente, passando a mão pelo rosto em um gesto de exasperação. — Me desculpe por esse comportamento. Ele… ele está confuso. Antes que eu pudesse responder, Ethan gritou, com a voz embargada: — Ela é a mamãe, papai! Eu sei que é! Por um instante, o homem fechou os olhos, como se aquelas palavras tivessem atingido um ponto vulnerável. Quando os abriu novamente, sua expressão estava mais controlada, mas ainda fria e distante. — Escute, senhorita… Jhulietta, certo? Agradeço por ter ajudado meu filho, mas eu posso cuidar dele agora. Algo na forma como ele pronunciou essas palavras me causou um arrepio. Talvez fosse o tom cortante, a postura de quem está acostumado a dar ordens. Antes que eu pudesse protestar, Ethan apertou minha mão com ainda mais força. — Não me deixa, mamãe! Por favor, não me deixa! Meu coração se apertou diante daquele apelo desesperado. Havia algo naquele menino, uma dor profunda que me impedia de simplesmente ir embora. — Eu só quero ter certeza de que ele está bem — respondi, encarando o homem diretamente nos olhos. Ele pareceu surpreso com minha ousadia, mas assentiu lentamente. — Muito bem. Se insiste, venha conosco até o carro. Olhei para Ethan, que me agarrava como se eu fosse sua âncora, e soube que não tinha mais escolha. Um pressentimento sombrio me dizia que, de alguma forma inexplicável, minha vida acabava de tomar um rumo completamente novo.A situação era tão irreal que parecia um sonho distorcido. Eu, Jhulietta Duarte, professora de uma escola pública, estava agora enclausurada no banco de trás de um carro luxuoso, a mão pequena de Ethan apertando a minha com uma força quase desesperada. À nossa frente, o homem que presumivelmente era seu pai, o motorista, emanava uma aura de tensão palpável. Sua postura rígida, os olhos fixos na estrada como se fugisse de algo, denunciavam uma batalha interna, um turbilhão de emoções contido a duras penas.— Senhor… — tentei quebrar o silêncio denso que nos envolvia como uma mortalha.— Santorini. Nicolas Santorini — respondeu ele, sem desviar o olhar da estrada. A voz grave e autoritária ecoou no interior do carro, revelando um homem acostumado a comandar.Engoli em seco. O sobrenome soava familiar, uma vaga lembrança que dançava à margem da minha memória, sem se concretizar.— Senhor Santorini, não quero me intrometer, mas… acho que precisamos conversar sobre o que aconteceu.Um susp
Nicolas Santorini Chegar em casa sempre me proporcionava uma trégua efêmera. Um breve alívio antes da exaustão inevitável. Meu dia, como tantos outros, fora uma maratona de reuniões intermináveis, a frieza dos contratos e o peso das decisões cruciais. Ao sair do elevador privativo, tudo o que eu ansiava era o silêncio reconfortante do meu lar e a presença de Ethan, mesmo que nossos encontros, desde a partida de Laura, fossem permeados por uma melancolia persistente.Mas, assim que as portas se abriram, uma dissonância me atingiu. O apartamento estava silencioso demais. Um silêncio que gritava ausência. Normalmente, a essa hora, Ethan estaria espalhando alegria – e brinquedos – pela sala, sua risada ecoando pelos cômodos. Fechei a porta atrás de mim, um pressentimento incômodo se instalando em meu peito.— Ethan? — chamei, a voz ecoando no vazio.O silêncio respondeu.A calma que eu tanto buscava se esvaiu, dando lugar a uma crescente apreensão. Caminhei pelo apartamento, cada passo a
Jhulietta Duarte O dia na escola transcorreu entre a sinfonia usual de vozes infantis, risadas contagiantes e os desafios inerentes ao desenvolvimento. Ensinar era mais do que uma profissão, era a minha paixão, a força motriz que me impelia adiante. No entanto, mesmo em meio à rotina, a imagem de Ethan e o eco de sua voz me chamando de “mamãe” persistiam em minha mente. Aquele gesto, apesar de toda a sua estranheza, havia plantado uma semente de afeto em meu coração.Enquanto organizava meus materiais após o expediente, uma mensagem inesperada vibrou em meu celular. Era de Nicolas Santorini. A mensagem, concisa e direta, contrastava com a imagem fria que eu tinha dele."Ethan insiste em vê-la. Se estiver disponível, venha até minha casa. Ele parece mais tranquilo com sua presença."Relendo a mensagem, tentei decifrar o que motivara aquele convite. Desespero? Pragmatismo? Ou algo mais? A mera possibilidade de rever Ethan me trouxe um calor reconfortante. Aos poucos, as visitas foram s
Nicolas SantoriniAs palavras de Ethan martelavam em minha mente como uma acusação silenciosa: “Eles dizem que sou órfão. Que minha mãe não me aguentou.” A crueldade infantil, tão brutal quanto inesperada, me confrontava com minha própria negligência. Eu estava falhando com meu filho, deixando-o à mercê de um mundo implacável.O restante do jantar se arrastou em um silêncio constrangedor. Ethan, absorto em seus próprios pensamentos sombrios, mal tocou na comida. Jhulietta, com uma delicadeza admirável, tentava amenizar a atmosfera pesada, mas seus esforços eram em vão. Eu apenas observava, perdido em um turbilhão de culpa e arrependimento. Quando Ethan finalmente pediu licença para se retirar, um alívio momentâneo pairou na sala de jantar. Mas a conversa que se seguiu prometia ser ainda mais difícil.Jhulietta me encarou, um misto de desconforto e determinação em seus olhos.— Ele não deveria passar por isso. — Sua voz era suave, mas carregada de convicção.— Acha que eu não sei? — re
Nicolas Santorini Saí do quarto de Ethan com o peso do mundo sobre os ombros. Cada passo ecoava no corredor silencioso, a responsabilidade de ser o pai que meu filho merecia me oprimindo a cada instante. Eu me sentia perdido, sem saber como preencher o vazio deixado por Laura, um vazio que, sem perceber, havia me afastado de Ethan, deixando-o à deriva em meio à própria dor. Na mesa da sala de estar, um envelope chamou minha atenção. Era um dossiê de Pedro, meu assistente e homem de confiança, sempre diligente em me manter informado sobre tudo, especialmente sobre aqueles que se aproximavam da minha família. Desde a morte de Laura, minha cautela se tornara quase paranoica, e Pedro entendia essa necessidade de proteção. Sentei-me na poltrona, o couro macio cedendo sob meu peso, e abri o envelope. O nome “Jhulietta Duarte” saltava aos meus olhos. Eu precisava saber mais sobre a mulher que havia entrado em nossas vidas com tanta intensidade. As páginas seguintes revelaram uma históri
Jhulietta DuarteO “ok” que digitei no celular parecia ecoar na quietude do meu pequeno apartamento. Um simples “ok” que selava um acordo, um compromisso, algo que eu jamais imaginei aceitar. Nicolas Santorini, um homem envolto em mistério e frieza, havia me oferecido um lugar na vida de seu filho, um lugar que, por algum motivo inexplicável, parecia destinado a mim.A noite se arrastou, povoada por pensamentos inquietos. A imagem de Ethan, com seus olhos azuis carregados de tristeza e a voz embargada ao falar da mãe, se misturava às lembranças dolorosas da minha própria infância. A dor da perda, o vazio da ausência, a crueldade das palavras… eu conhecia cada faceta daquele sofrimento. E talvez fosse essa compreensão, essa empatia visceral, que me impelia a aceitar a proposta de Nicolas.Na manhã seguinte, preparei-me para o trabalho com uma sensação estranha. A rotina na escola parecia distante, ofuscada pela iminente conversa com Nicolas. As crianças, com suas energias vibrantes e p
A chuva começou a cair assim que saí da mansão Santorini, grossos pingos molhando meu rosto e lavando, momentaneamente, a sensação opressora que me acompanhava. O vento uivava entre os prédios, como se carregasse consigo os ecos de um passado que eu tanto me esforçava para manter adormecido. A conversa com Nicolas, a revelação sobre a pesquisa de Pedro, a vaga e perturbadora semelhança entre mim e Laura… tudo se somava a um turbilhão de pensamentos que me deixavam inquieta. Dentro do ônibus, enquanto observava as luzes da cidade se refletirem nas janelas molhadas, tentei organizar minhas ideias. Nicolas havia sido surpreendentemente aberto sobre a situação de Ethan, demonstrando uma preocupação genuína com o bem-estar do filho. A oferta de ser tutora de Ethan, embora inesperada, me parecia uma oportunidade de fazer a diferença na vida daquele menino tão fragilizado. Mas a menção à pesquisa de Pedro… isso me perturbava profundamente. Sempre fui muito reservada sobre meu passado. As
Nicolas Santorini A manhã amanheceu com um céu plúmbeo, como se as nuvens densas refletissem o turbilhão de pensamentos que me assaltavam. Desde a chegada de Jhulietta à mansão, uma corrente invisível havia alterado a atmosfera da casa, e, mais inquietante, a minha própria. Uma energia sutil, difícil de definir, pairava no ar. Contudo, a cautela, cultivada a ferro e fogo ao longo dos anos, mantinha-se em guarda. Jhulietta era uma incógnita, um enigma que me atraía e, ao mesmo tempo, me deixava em estado de alerta constante. Após o café da manhã solitário na imensa sala de jantar um ritual matinal que se tornara rotina, decidi convocar Dona Bryana. Se alguém naquela casa possuía o dom da observação, era ela. — Dona Bryana, poderia vir ao meu escritório, por favor? — chamei, vendo-a surgir quase imediatamente na soleira da porta, com sua postura impecável e o olhar penetrante de quem tudo vê e pouco revela. — Às suas ordens, senhor Nicolas — respondeu, com a formalidade de sempre.