A chuva encharca meus sapatos enquanto caminho pela calçada de uma das avenidas mais movimentadas da cidade, rezando para que, desta vez, eu não chegue atrasada. O som do meu estômago roncando me faz soltar uma das mãos da sombrinha e apertar o próprio corpo.
Lidar com a chuva até que é fácil — eu poderia tentar secar o cabelo no secador de mãos do banheiro de novo. Mas hoje trabalhar será difícil, porque não conseguirei passar na padaria e gastar minhas últimas moedas. Nem chegamos à metade do mês, e meu salário já foi quase todo embora.
Paro em frente ao semáforo e espero abrir para atravessar em direção ao prédio da Fiori Security, uma das filiais da maior empresa de segurança italiana. Por um milagre, depois de ter sido demitida do meu último emprego de babá, consegui uma vaga de secretária.
Deus abençoe minha mãe no dia em que me obrigou a fazer aquele curso.
Meu pé desliza dentro do salto molhado ao entrar no saguão de mármore branco e dourado. Chamo o elevador e subo para o vigésimo andar da presidência.
O elevador demora a chegar.
Ou talvez seja só a minha impaciência tornando tudo mais lento.
Quando finalmente entra, o pequeno cubículo parece apertado demais, como se o peso da manhã estivesse todo ali, me sufocando. Subo até o vigésimo andar, o som da chuva batendo no teto metálico e o estômago roncando ainda mais alto.
Eu tento me concentrar no trabalho, mas tudo que consigo pensar é em como minha vida parece estar se arrastando em um dia após o outro, uma sequência interminável de pequenas derrotas.
O elevador para e, quando as portas se abrem, eu me vejo de frente para o saguão que me aguarda, vazio, exceto pela minha mesa. Cada passo até ela parece uma eternidade. Não consigo deixar de me sentir exausta. Não fisicamente — já estou acostumada com a correria —, mas emocionalmente.
O dia mal começou e eu já sinto que ele vai ser um daqueles onde nada dá certo.
Por um momento, fico ali parada, observando a mesa vazia.
O computador parece me desafiar com sua tela em branco, como se estivesse esperando que eu desse o primeiro passo, mas tudo que eu quero é me encolher ali mesmo. E então, como se o universo resolvesse se divertir com a minha falta de sorte, minha chefe aparece.
— Bom dia, Stella. O clima está horrível hoje.
Minha chefe abre a porta da sala separada e se aproxima da minha mesa carregando uma pilha de papéis.
— Senhora Bianchi, me perdoe, o trânsito estava horrível, eu tentei…
— Não precisa se explicar — ela levanta um dedo. — Recomponha-se e comece o trabalho. Sei que conseguirá compensar.
— Sim, senhora.
Espero até que o som dos seus sapatos se encerre com o fechar da porta e desabo na minha cadeira. Fiorella Bianchi é a representante e CEO da filial brasileira, braço direito do irmão, uma mulher bem-sucedida e um pouco ranzinza, mas que me estendeu a mão.
Está sempre com os cabelos castanhos perfeitamente ondulados caindo pelas costas, vestida com elegância em caros vestidos italianos, com postura impecável. Seus olhos azuis são afiados, capazes de detectar erros a metros de distância.
Ela é tão bonita que chega a me faltar o ar, e me pergunto como devem ser seus outros dois irmãos. A Fiori tem duas filiais, no Brasil e na Bélgica, além da matriz em Roma, cada uma liderada por um dos irmãos Bianchi.
Já procurei fotos dos três na internet, mas elas não fazem jus à beleza real da minha chefe. Não que isso me interesse muito.
Desde que eu mantenha meu bom desempenho e continue mantendo sua vida organizada, consigo ter um bom dia de trabalho e receber um salário decente no final do mês.
Empurro a cadeira e sigo para a copa no final do corredor das outras salas. Coloco a cafeteira para funcionar e me encosto no balcão, conferindo as contas que ainda não foram pagas. Ainda estou quitando os custos do tratamento da minha mãe.
Um câncer a levou de mim, minha única família restante, e além de um coração dilacerado, fiquei com as dívidas hospitalares que, há três meses, vêm acabando com minha saúde financeira e me forçaram a mudar para um cômodo em um dos piores bairros de São Paulo.
— Bem, o banco vai ter que esperar mais um mês. Posso não ter armários, mas ainda preciso colocar comida nas gavetas que me restam.
Sirvo o café na xícara e Amanda, a secretária de um dos nossos advogados, me encontra.
— Bom dia, Stella. Dia péssimo, quase caí em uma poça do lado de fora.
Ela pega uma das xícaras e se serve.
— Não tive muito mais sorte que você. O ônibus quebrou, e precisei fazer o resto do percurso a pé.
— Meu Deus, amiga, será que em algum momento nós vamos ter sorte?
Ela me acompanha, mexendo nas pontas loiras do cabelo.
Ela pega uma das xícaras e se serve, antes de encostar ao balcão ao meu lado. Amanda é uma das poucas pessoas aqui com quem consigo conversar sem sentir que estou sendo julgada. Às vezes, parece que estamos as duas lutando no mesmo barco, só que em turnos diferentes.
— Preciso acreditar que sim, pelo menos nas histórias que eu leio.
— Por falar em histórias, ficou sabendo que o chefão estará aqui amanhã?
Franzo o cenho, um pouco confusa.
— O chefão?
Amanda faz uma cara misteriosa e se aproxima um pouco mais, como se fosse contar um segredo.
— Matteo Bianchi, o irmão da sua chefe. Ele chega amanhã para supervisionar a empresa de perto.
Meu coração dá um salto, uma mistura de surpresa e curiosidade. Eu sempre ouvi falar dele, mas nunca vi o homem pessoalmente. O irmão de Fiorella Bianchi, o CEO da Fiori Security, que mora na Itália e raramente visita a filial brasileira. Por algum motivo, a ideia de ele aparecer aqui, no meio de todo esse caos, me deixa nervosa.
— Sério? Nunca imaginei que ele fosse aparecer. A última vez que ouvi falar dele, estava lidando com uma crise na matriz em Roma.
Amanda sorri e mexe nas pontas do cabelo, um hábito dela quando está empolgada com alguma fofoca.
— Eu também nunca achei que ele viria. E dizem que ele é super misterioso. Ninguém sabe muito sobre ele, porque sempre fica lá na Itália. Mas sempre tem aquelas histórias, né? Todo mundo fala que ele é… bem, digamos… difícil de agradar.
Dou uma risada nervosa.
— E o que mais você ouviu sobre ele? Eu nunca encontrei ninguém que o conhecesse pessoalmente.
Amanda baixa a voz, como se estivesse revelando um grande segredo.
— Dizem que ele é charmoso, imponente, e que tem esse jeito de líder que intimida. Algumas pessoas o acham meio frio, mas quem trabalha diretamente com ele sempre fala muito bem dele. E, claro, tem toda essa aura de poder… É, não vou mentir, estou bastante curiosa para vê-lo.
Balanço a cabeça, pouco interessada.
— Bom, isso não mudará nada para nós, meras secretárias.
— Não, mas pelo menos poderemos admirar o bonitão.
— Fale por você. Tenho cinco pautas para digitar, meus olhos ficarão apenas no computador.
Aceno me despedindo de uma das minhas poucas amigas, puxo a cadeira, respiro fundo e estico os dedos, pronta para enfrentar mais um dia. Abro a gaveta para procurar o grampeador e a pilha de boletos do tratamento da minha mãe me encara de volta.
Fecho os olhos e respiro fundo, lembrando que posso ser despejada, que voltarei para casa e os armários estarão vazios, mas preciso continuar.
Pronta para desejar que as coisas mudem, preciso acreditar.
Esfrego os olhos, sentindo que estou prestes a enlouquecer.Meus dedos estão exaustos de tanto digitar as pautas que minha chefe precisa para as reuniões de amanhã. Pelo menos consegui almoçar no refeitório da empresa. A Fiori fornece almoço para todos os funcionários e isso ajuda a economizar.Levando em consideração que minhas opções de culinária são limitadas no fogão de duas bocas que cabe na minha cozinha.Não reclamo de ficar um pouco depois, as horas extras sempre me ajudam.Às vezes sinto falta do meu antigo emprego.Trabalhei por cinco anos como babá para uma família rica e foram ótimos anos de trabalho. Recebia um salário adequado que me ajudou a pagar a faculdade de secretariado e convivendo com as duas crianças mais fofas e amáveis desse mundo.Era muito bem tratada pela família, que pagou meus cursos de idioma e me levou em algumas viagens.Sempre serei grata por tudo o que fizeram por mim.Infelizmente, o pai foi transferido para Londres, para uma das filiais da empresa
Estou tão cansada que desmaiaria ali mesmo, então decido fazer o que qualquer pessoa lascada de dinheiro faz em um dia de chuva.— Eu mereço voltar para casa confortável... Só hoje.Abro o aplicativo de Uber e começo a procurar um motorista, ciente de que vou me arrepender.Esse é um problema para a Stella de amanhã.Percebo um veículo preto e luxuoso diminuir a velocidade pela rua do prédio e estacionar devagar bem na minha frente. Agarro a bolsa, pronta para correr; se alguém vai me sequestrar, então terá que me pegar primeiro.Já estou fodida demais, ninguém pagaria meu resgate.O vidro abaixa devagar, e no banco do motorista vejo o mesmo par de olhos azuis do elevador.— Ei, nova amiga de trabalho. Quer uma carona?O sorriso dele me desconcerta, e por um instante, fico hesitante. A chuva fina que começa a cair sobre a calçada me faz pensar rapidamente. Não quero esperar mais um segundo para pegar um Uber, e a grana está tão curta que, sinceramente, vou deixar a minha preocupação c
Tranco a porta me certificando de dar duas voltas.Não quero ser acordada pelo meu vizinho bêbado entrando no apartamento errado novamente.Fico em pé encarando a mansão de um cômodo em que moro. O apartamento é formado apenas por um banheiro e na parte onde estou ficam o meu sofá cama, a televisão sobre o móvel de madeira gasta e ao lado da porta, a cozinha com apenas um balcão e um armário superior.Não posso esquecer do meu incrível fogão de duas bocas.Deixo a bolsa sobre a bancada e em dois passos estou sentada no sofá.Tenho vontade de chorar ao imaginar que mal consigo andar sozinha nesse apartamento, quem dirá com um bebê.— Ninguém descobriu sobre você ainda — deslizo a mão pelo volume inexistente na minha barriga — Ainda temos um tempinho.Descobri que estou grávida de três semanas há alguns dias.A notícia fez com que o meu mundo desabasse um pouco mais. Eu preciso daquele emprego, e preciso muito mais agora. Não tenho ajuda, o pai dele ou dela é um cara com quem saí apenas
O alarme tocou às cinco da manhã.O som era discreto, quase gentil, mas foi suficiente para me arrancar do sono. Eu abri os olhos e encarei o teto do quarto por um momento, deixando minha mente se ajustar. Dormir mais um pouco? Nem pensar. Esse tipo de indulgência era reservado para outros, não para mim.Levantei e troquei de roupa sem pensar muito.Calça de treino, camiseta básica, tênis.Tudo funcional, sem firulas.A academia do prédio era no térreo, então o elevador se tornou meu primeiro companheiro do dia. Dentro dele, observei meu reflexo no painel metálico. O cabelo estava uma bagunça, os olhos meio sonolentos, mas não importava. Eu não estava ali para agradar ninguém.A academia estava deserta quando cheguei, como sempre. Perfeito. Comecei o aquecimento na esteira, aumentando gradativamente o ritmo até sentir o coração acelerar e a mente clarear. Depois vieram os pesos. Rotina é uma coisa estranha: parece tediosa para quem vê de fora, mas para mim, é um alicerce. Quando tudo
As vozes ao meu redor se acumulavam, buscando qualquer resquício da minha atenção.E eu deveria mesmo estar entretido no assunto que os investidores insistem em debater comigo no meio do corredor. Todos em busca de mais uma fatia do nosso império familiar. Minha irmã decidiu que esse era um ótimo momento para desaparecer e me deixar lidar com os problemas dos quais fugi todos esses meses.— Acho poderíamos expandir para outras cidades, talvez uma ou duas filiais — o homem ao meu lado sugere, ajeitando a gravata torta no pescoço.— Claro, é uma ideia que poderia ser estudar.Respondo sem nem ao menos desviar os olhos para ele.Eu tentava me concentrar na conversa, mas as palavras deles se misturavam em um borrão. Concordei com um sorriso educado aqui, um aceno ali, enquanto minha atenção estava em outro lugar.Melhor dizendo, em outra pessoa.Através das portas de vidro do escritório da Fiorella, eu conseguia vê-la.Stella.Sentada à mesa, inclinada sobre alguns papéis, seus dedos desl
O relógio na parede indicava que o dia tinha se estendido mais do que o previsto.Suspirei, ajeitando os papéis na mesa com movimentos rápidos, mas visivelmente cansados. Os relatórios e as pautas das reuniões de Fiorella estavam por toda parte, espalhados como folhas após uma tempestade. Desde que ela chegou pela manhã, entrando e saindo de reuniões com os investidores ao lado do irmão, minha mesa parecia uma zona de guerra.Eu sabia que precisava deixar tudo organizado antes de ir embora.Deveria ter levantado para esticar as pernas ao menos uma vez, mas até esses poucos minutos pareciam luxo. Mesmo recebendo horas extras por continuar ali, sentia falta de um pouco mais de tempo em casa. Principalmente agora.Um ronco repentino ecoou no silêncio, me arrancando de meus pensamentos. Foi só então que percebi o quão vazia minha barriga estava. Instintivamente, levei a mão ao ventre, acariciando a pequena curva que começava a se formar.— Calma, meu amor — murmurei baixinho, como se pude
O trajeto no carro até o restaurante é silencioso.Matteo parece concentrado no caminho, com os olhos fixos na estrada, apenas movendo a mão vez ou outra para ajustar o ar condicionado ou a música baixa que toca entre nós. Eu gostaria de me virar um pouco mais, apenas para estudar seu rosto e descobrir se é realmente tão assustados agora estando tão perto.As luzes amareladas do restaurante projetavam sombras suaves na calçada, e eu me perguntava pela milésima vez o que estava fazendo ali. Meu coração estava dividido entre o receio de ser vista com Matteo — meu chefe, e não apenas um cara qualquer — e a inesperada sensação de conforto que sua presença me trazia.Já fazia tanto tempo desde a última vez em que alguém me perguntou como eu estava, ou ao menos se importou com o meu bem estar.Mordo o lábio ao folhear as páginas do cárdapio, tentando não arregalar os olhos ao ler os preços dos pratos italianos. Nunca em toda a minha vida tive a oportunidade de comer um macarrão que custasse
O cheiro estéril do hospital me sufoca. Minha cabeça lateja pela pancada, mas graças a Deus não sofri nada grave.Mistura-se com o latejar constante na minha cabeça, uma lembrança cruel do impacto, do som metálico da batida e do grito dela que ainda ecoa nos meus ouvidos. Estou sentado em uma das cadeiras desconfortáveis da recepção, mas não consigo ficar parado. Levanto, começo a andar de um lado para o outro, com as mãos nos bolsos do casaco, tentando conter a agonia que cresce a cada minuto de espera.Stella.É o único nome que consigo pensar. A garota que conheci há poucos dias, que entrou na minha vida de um jeito tão improvável, agora está atrás de portas duplas, inconsciente, enquanto eu não tenho a menor ideia do que está acontecendo com ela.Lembro do som do impacto, do estalo do vidro se partindo, do silêncio que veio logo depois, mais apavorante do que qualquer barulho. Eu a chamei pelo nome, sacudi o ombro dela, mas Stella não respondeu. O lado dela foi o mais atingido. E e