Nada como viver um dia de cada vez.
Eu não tinha muito que reclamar da minha vida, já que a mesma realmente era uma droga. Sempre mantive a cabeça no lugar e procurava resolver meus problemas da melhor forma possível, apesar de muitas vezes ser feita de trouxa. Nessa hora, deveria estar trabalhando em meu projeto, mas ao contrário do que eu queria, vim ajudar uma amiga na lanchonete onde trabalha. Ficar devendo favores aos outros é uma droga. O favor em questão era em uma pequena lanchonete gerenciada pela carismática Emília Souza, uma senhora de idade que sofre de artrite reumatoide, uma doença inflamatória crônica que afetou as articulações de suas mãos e pés, causando um inchaço doloroso. Comovi-me com essa senhora, principalmente por ter que lidar com pessoas sem responsabilidades. Deixei-a anotando os pedidos enquanto eu preparava e entregava os mesmos para os clientes. Depois de lavar mais uma remessa de louça suja, apoiei o rosto em uma das mãos com um suspiro. As chances de ser demitida do trabalho estavam contra mim, que já estava por um fio, justamente por me recusar a fazer trabalhos dos outros. Além de ser gorda, o que era ainda mais humilhante, possuía um problema na perna. A Novaes Corporation sempre fora uma empresa de altos padrões estéticos e ter uma gorda trabalhando com os demais era um absurdo. Lembrei-me da cara do meu chefe ao ver meu manequim n°44 e meus óculos, fora a cicatriz em meu braço esquerdo, mas eu fui a mais qualificada e ele não teve alternativa além de me contratar. Em contrapartida, fui isolada dos outros e colocada em um pequeno depósito cheio de mofo e um computador velho. No começo fiquei chateada, mas com o tempo agradeci a atitude dele. Ficar o tempo todo olhando para as cobras se atacarem verbalmente me dava repulsa. Suspirando novamente, abri os olhos e olhei para mim mesma no espelho, sem entusiasmo. Meu cabelo castanho estava preso em um coque alto, vestia roupas amassadas e tinha um olhar abatido. Andar pelas ruas e ver as pessoas me olharem com pena, rindo de mim ou se metendo em minha vida, me irritavam bastante e ser solteira então. Voltei à realidade ao ouvir alguém me chamar: – Juli. Voltando meu olhar para a senhora que me chamava, abri um sorriso cansado. – Senhora!- respondi. Meus pais me educaram assim e chamar uma pessoa mais velha de você é uma falta de respeito com eles. – Não precisa me tratar com tanta formalidade – Ela sorri pra mim. – O movimento da lanchonete está grande hoje, poderia me ajudar a atender as mesas? – Claro. Ela balançava a cabeça ao se afastar e isso me fez sorrir. Respirei fundo, peguei o bloquinho de notas e saí da cozinha para atender os clientes. A lanchonete era bem localizada na avenida principal do meu bairro, mas fazia tempos em que não lotava com tanta gente. Isso me fez sorrir e agradecer a Deus pelo dia lucrativo que Emília teria pela frente. Os minutos foram passando e mais pessoas entraram, comecei a me preocupar com o horário, pois às 10h eu teria que ir para o trabalho e aquela folgada não tinha chegado ainda. Eu sabia que Emília não daria conta sozinha se o movimento continuasse desse jeito, mas não poderia ajudar a pobre senhora por mais tempo. Retirando meu celular do bolso, decidi ligar para ela na esperança de que ela já estivesse a caminho, porém não obtive resposta. Mandy sempre teve essa mania, até parece que não tem despertador em casa. Mas isso não me surpreende pelo simples fato dela sempre se atrasar. Ser pontual nunca foi seu forte. Um movimento na entrada da lanchonete despertou minha atenção, não apenas pelo carro luxuoso que acabara de estacionar ali na frente, mas também o homem de terno que saiu de dentro dele. Parecia um ator de Hollywood esbanjando poder e provocando suspiro nas mulheres do local. Reviro os olhos por um momento e dou as costas para o homem, retornando para atender as mesas sem demora e incomodada por sentir que alguém me observava. Mandy entrou correndo e me derrubou no chão, fazendo com que o suco de manga que eu estava levando para uma senhora idosa virasse sobre mim. – Mas que... – Ignorando as risadinhas e vaias, olhei a jovem. – Que droga, Mandy! – Desculpinha, Juh. – Ela sorriu para mim e me ajudou a levantar. – Precisei me atrasar um pouco. – E deu de ombros, como se não fosse nada. 'Que maravilha', pensei olhando com tristeza a minha roupa de trabalho machada de suco. O pior disso tudo foi lembrar que não tenho tempo para ir a minha casa e trocar de roupa. Os murmúrios continuavam e eu fiquei impaciente ao notar como a Mandy babava pelo Sr. Engomadinho. Mandy era o tipo de pessoa que eu jamais seria: popular, carismática e namoradeira. Seus cabelos ruivos brilhavam quando passava pela rua e atraia a atenção dos homens. Com o corpo perfeito digno de uma top model, sempre conseguia tudo o que queria. Se você é gordinha e busca sair com um cara legal, não é recomendado levar Mandy Oliveira junto. Hoje, ela vestia um top rosa e um short minúsculo com o cabelo preso em um rabo de cavalo, com brincos chamativos e um quilo de maquiagem na cara. E o momento não podia ser mais propício, pois o homem vinha em nossa direção a passos lentos. Mandy apressou-se a ir até ele e eu voltei para dentro da cozinha para tentar diminuir o estrago que ela causara. As chances de perder o emprego por causa desse acidente se alarmaram em minha cabeça e resmungando, retirei a blusa branca e mergulhei dentro da pia. Esfreguei-a varias vezes e quando me dei por satisfeita, tirei o excesso da água. Vestindo-a molhada, fiz uma careta por ela colar-se ao meu corpo como uma segunda pele. - É isso ou nada. - digo, determinada a não me irritar. Odeio ser o centro das atenções e quando sai da cozinha, senti o peso dos olhares que caiam sobre mim enquanto eu percorria a lanchonete à procura do meu blazer. De relance, observei Mandy jogar seu charme para o estranho, mas falhando miseravelmente. Ignorei-os e continuei minha busca. Tinha certeza que o havia deixado em algum lugar por aqui. Estava tão focada que não percebi alguém atrás de mim.– Com licença.Uma voz firme chamou minha atenção antes mesmo de sentir a sua presença. Fechei os olhos, resmungando a minha má sorte e olhei para trás. O “deus grego” me olhava com curiosidade.– O que deseja, senhor?– Gostaria de saber a razão pela qual não fui atendido pela senhorita.Arqueei a sobrancelha, considerando-o louco.– Eu não trabalho aqui, estava ajudando uma amiga. – Respondo com educação olhando-o nos olhos por um instante. Vejo meu blazer no chão com uma marca de sapato no mesmo. Peguei-o do chão e tento esconder minha frustração ao olhar para ele. – Que já o estava atendendo há poucos minutos.– Ela não era a mais qualificada para me atender.– E por acaso eu sou?Seu olhar percorreu o meu corpo, que responde com um tremor involuntário.– Talvez.O terno preto impecável cobria perfeitamente seus ombros largos e sua pele cor de caramelo arrancava suspiros das mulheres. Levantei a cabeça para olhar-lhe nos olhos âmbar, que me sondaram com curiosidade. Sua boca era
As pessoas à minha volta ofegaram e alguém tentou me puxar pela blusa. Empurrei-o firmemente, mas sem machucar. E daí que se machucasse? Ninguém me queria aqui.Cruzei os braços em frente ao corpo e não falei mais nada. Um silêncio mortal caiu sobre nós me deixando ainda mais nervosa. Um brilho bem humorado surgiu nos olhos dele, mas sua voz soava fria e profissional:– Não sei do que está falando Srtª, mas sugiro que pare com esses argumentos estúpidos. – Levantou e deu um passo em minha direção.- Acho que tenho um ponto, já que você está aqui. Qualquer pessoa em seu juízo perfeito reagiria da mesma forma.Era uma desculpa fraca e o estranho sabia disso. Ele inclinou em minha direção e eu pude sentir sua respiração em meu pescoço. Ficando próximo a mim, sentenciou: – Você não vai gostar dos resultados se agir assim. Senti-me pequena e indefesa como nunca me senti antes. Não chegava nem aos ombros dele e precisei fazer um esforço para esconder meu espanto. Nossos olhares se cruzara
No dia seguinte, cheguei ao trabalho um pouco mais cedo, não sei se fora por impulso ou porque não queria ver ninguém. O fato foi que, às sete da manhã, eu já estava em frente ao casarão. O pessoal só começaria a chegar às oito, o que me daria tempo de me recompor e enfrentar olhares indesejados. Como de costume, joguei a bolsa sobre a escrivaninha e andei de um lado para o outro, tentando imaginar o que o destino me aguardava naquele dia.Quem era aquele cara, afinal? Relembrando o dia anterior, vi alguns rostos em pânico pelo modo que agi com o estranho. Será que era alguém importante ou imaginei tudo em minha cabeça? Tentando não pensar a respeito, optei por me sentar um pouco e comecei a trabalhar.***O resto da semana passou normalmente, mas eu estava apreensiva. Sempre era a primeira a chegar e a última a sair, o que para eles não era um problema. Mas como punição pelo que acontecera na segunda-feira, todos os projetos que eu havia recusado foram parar em minha mesa. Não tinh
Não demorou muito e escutei burburinhos vindos do lado de fora de minha sala. Imaginei o que seria até ouvir a voz irritante de David dando instruções aos funcionários de como deveriam se portar quando as visitas chegassem. Senti um arrepio na espinha ao lembrar o que me aguardava quando saísse da sala, porém balancei a cabeça. Não iria mudar de ideia agora.Peguei o pen drive e apertando-o contra o corpo, sai do escritório justamente no momento que David recebe os recém-chegados. Fico parada em frente a minha sala observando meu chefe agir despreocupadamente e com um sorriso falso. Para aqueles estranhos David vestiu seu terno Armani preto, lustrou os sapatos e até penteou o cabelo ridículo. Coisa que ele não faz em dias normais de trabalho. Observei o casal com atenção. A mulher era mais alta que eu: loira, magra e com cara de poucos amigos. Vestia um terno lilás, cabelo preso em um coque alto, olhava para o lugar com desprezo e batia o salto de sua sandália no chão, impaciente. O
Entrando em minha sala, fui até minha bolsa e a peguei rapidamente. Minhas mãos tremiam e eu não queria que ele visse o quanto fiquei abalada. Senti uma pontada familiar na cabeça e fechei os olhos. Odeio brigas e odeio estar nelas.Agora meu destino era incerto. Estava desempregada e de maneira alguma queria voltar a morar com meus pais. Teria que procurar outro emprego o mais rápido possível ou teria problemas. Abri os olhos de surpresa quando senti um par de mãos segurarem meu rosto, eram quentes e confortáveis. Chegava a ser impróprio, mas a sensação era muito boa. O bonitão me olhava preocupado e senti um nó na barriga. Afastei suas mãos de meu rosto e recuei um passo.- Como conseguiu trabalhar aqui dentro todo esse tempo?Não respondi, pois o olhar que ele deu para cima de minha mesa de trabalho fora o suficiente. Notei que ele tinha visto os remédios sobre a mesa, mas não falou nada. Apenas segurou meu braço e me arrastou até a porta. Puxei meu braço de sua mão e o fitei.- O
Não notei que estava falando alto e suspirei. O que aquele homem falava parecia surreal.- Mas isso é impossível! – sussurrei para ele. – Ninguém daqui te roubaria.- Está falando por todos? Não lembra o que aconteceu ainda há pouco?- Eu lembro, mas... – gaguejei e ele interrompeu com voz dura.- Porque defende quem te humilha? Ficou óbvio para mim que eles não te queriam por perto.- Sim, mas o modo como eles agiram comigo não tem nada a ver com o roubo de sua empresa.- Talvez. – Ele coça o queixo. – Eu vim para cá com um único objetivo e vou cumpri-lo. Vou recuperar o que me foi roubado.- Deixando todas aquelas pessoas desempregadas? – olhei-o incrédula. – Essa é a sua maneira de fazer justiça.- Porque se importa com eles?Quis mata-lo. O sangue corria por minhas veias e me esforcei para controlar a minha fúria. Rafael não era o tipo de homem que fazia escândalos, mas não se importava em provocá-los.Podia não gostar dos meus colegas de trabalho, porém não desejava o mal a eles.
Depois que li aquilo, não me senti a vontade perto de Rafael. Algo naquela frase estava me incomodando e eu não gostava disso. Aquelas duas palavras eram familiares, mas por conta dos acontecimentos, não consegui lembrar onde as tinha visto. Olhei-o discretamente e quase suspirei. Aquela perfeição estava do meu lado, fodendo com meus sentidos. Odiei por me sentir insegura. Odiei o Rafael por me abalar tanto. E a musica não estava ajudando. “Despacito Quiero respirar tu cuello Despacito Deja que te diga cosas al oido Para que te acuerdes si no estás conmigo...” Essa musica provocava minha mente e meus sentidos. Apertei minha bolsa com força para controlar o tremor de meu corpo. Rafael pareceu notar e sorriu para mim e virei o rosto, incomodada. Quase soltei um gemido de alivio quando ele parou na porta do escritório. Não sei se Rafael percebera meu desespero ao sair do carro e daquela atmosfera erótica. Adquiri a frieza profissional e olhei para ele. – Obrigada pelo
Na manhã de sábado despertei com uma bela ressaca e uma gata muito fofa pedindo comida. Não me culpo por ter me divertido ontem à noite, pois eu precisava. O problema foi ter bebido quando eu não podia e sequer lembrar como cheguei em casa.Minha cabeça latejava, a gata miava e algum engraçadinho batia na porta da frente. Foda-se, eu queria dormir um pouco mais, precisava disso, mas a pessoa não parava de bater na maldita porta e desisti de dormir. Levantei da cama e fui até a área de serviço. Lavei o rosto, escovei os dentes, coloquei ração para Mimi e fui atender a porta. Não me preocupei em pentear o cabelo. Não estava me importando com ele.Agora se esse imbecil gritasse comigo ou risse da minha aparência iria sair com o olho roxo.Destranquei e abri a porta com calma, esperando ver alguém. Mas para minha surpresa, não havia ninguém. Uma pequena sacola estava pendurada no portão. Peguei-o com cautela e olhei para fora, na esperança de ver alguém, mas não tinha ninguém próximo.-