2. ACOMODADA

Anne

— Bruna, por favor, vê se não vai chegar tarde porque amanhã você tem entrevista de emprego. Amanda está fazendo este favor pela consideração que ela tem por mim, se você falhar comigo mais uma vez, não vou pedir mais nada a ninguém.

— Relaxa, Anne. Vou dar uma volta com a Priscila, daqui a pouco estarei de volta.

— Não gosto de você com essa menina. Eu já te disse que ela não é boa companhia.

— Não começa, Anne. Eu não sou mais criança e não preciso de ninguém pegando no meu pé. Você não é minha mãe.

— Eu quero seu bem, Bruna. Você tem dezoito anos, não terminou os estudos, não trabalha e só vive dentro da favela fazendo sei lá o quê. Você é tão bonita, com um pouco de esforço consegue melhorar de vida.

— Pode parando com o papo. Não tem nada a ver comigo esse negócio de ficar igual você com a cara no livro. Eu sou nova e tenho que aproveitar a vida.

— Até quando você acha que vai ficar nova, Bruna? Até quando acha que minha mãe vai aguentar ficar fazendo faxina para te sustentar?

— Que droga, Anne, essa ladainha toda é por causa da entrevista amanhã? Eu já te disse que vou, qual é o estresse?

— Tudo bem, Bruna. Faz o que você quiser, como você disse, não sou sua mãe. Mas depois não diga que não avisei.

Minha mãe entra no quarto reclamando que minha irmã saiu de novo, em plena quarta-feira e quase dez horas da noite. Não falo nada, a Bruna faz essas coisas porque ela dá dinheiro para isso. Trabalha o dia todo limpando a sujeira dos outros, aos finais de semana faz unha para aumentar a renda, e é só a Bruna pedir dinheiro para passear ou comprar roupa que ela cede aos seus caprichos, mesmo tendo outras prioridades.

Faz tempo que não compro nada além de livros, meu dinheiro é gasto com as contas de casa e com meus estudos. Apesar da minha faculdade ser gratuita, gasto muito com xérox, livros, trabalhos e passagem. Trabalho como operadora de telemarketing e ganho salário mínimo, que não dá para muita coisa. Consigo aumentar um pouco minha renda fazendo trufas e vendendo na faculdade; no final de semana faço uma boa quantidade para vender durante a semana, pois eu não tenho tempo nos outros dias devido ao trabalho e a faculdade. O pior de tudo é que tenho que guardar as trufas na casa da Amanda. Isso porque a Bruna, além de não me ajudar a fazer e nem a vender já que ela fica em casa, poderia vender para os vizinhos —, ainda come uma atrás da outra, e quando vou ver, as trufas não estão me dando lucro. Reclamei com minha mãe e ela disse que pagaria, para evitar aborrecimento. Amanda se ofereceu para guardar em sua casa e eu aceitei.

Essa semana sairei do trabalho porque no início do mês que vem vai começar a minha residência. Estou muito ansiosa, não vejo a hora de vivenciar o dia-a-dia dentro de um hospital, além disso minha renda irá aumentar e vou poder respirar um pouco mais aliviada.

Como eu havia imaginado, Bruna chega por volta das três da manhã, bêbada, e não conseguiu acordar para a entrevista. Amo a minha irmã, mas eu não posso querer por ela, essa é a última vez que tento ajudar. Por mais que minha mãe reclame, ela sempre faz as vontades da Bruna, sempre foi assim.

Quando éramos mais novas, toda vez que minha mãe tinha algum problema ou ficava sabendo de alguma coisa que meu "pai" aprontava na rua, ela descontava em mim. Às vezes, do nada, chegava em casa furiosa e me batia. Em uma dessas ocasiões, abriu a porta da geladeira, encheu o copo de água gelada e jogou em mim. Não satisfeita, pegou a tampa da panela e jogou com toda força em na minha direção. Se eu não me abaixasse, teria acertado na minha cabeça, o arremesso foi tão forte que quebrou o vidro da janela e foi parar lá embaixo. Eu devia ter uns oito anos quando isso aconteceu.

Minha irmã sempre passou ilesa dessas agressões, concluo que eu era o alvo por ser parecida com ele. Sou negra como ele enquanto minha irmã tem a pele clara como minha mãe, e não tem um cabelo rebelde como o meu.

Meus dias se resumem em ir para a faculdade e trabalho, além de passar uma boa parte da noite estudando. Eu quero ser a melhor na minha profissão e para isso tenho que me dedicar nas poucas horas que tenho disponíveis.

— Amanda, me desculpe pela Bruna. Ela não tem jeito.

— Anne, eu só falei com minha tia para conseguir uma vaga para ela por sua causa. Eu sei, e no fundo você também sabe, que a Bruna não quer trabalhar nem estudar. O negócio dela é ficar de rolê dentro da favela e se esfregando com aqueles caras que não querem nada como ela.

— Você está certa, Amanda. Por mais que eu a ame, não posso viver a vida dela. Há anos que tento colocar algum juízo naquela cabecinha de vento e não consigo. Só peço a Deus que ela não fique grávida e não se envolva com o tráfico, a nossa vida já é bastante difícil e não precisamos de mais problemas.

— Anne, você tem que viver a sua vida. Se preocupa demais com sua irmã e sua mãe, que nem se importam contigo. Mudando de assunto, estou ansiosa para começar a nossa residência.

— Eu também Amandinha, é o início do meu sonho sendo realizado. Não vejo a hora de colocar a mão na massa, aprender ali com a realidade do dia-a-dia, poder ajudar as pessoas.

— Será que vai ter um monte de médico gato por lá?

— Eu falando de trabalho e você pensando nos caras.

— Amiga, estou precisando dar uns beijinhos na boca. Se puder juntar o útil ao agradável, vai ser melhor ainda.

— Você não presta, Amanda.

— Vai dizer que também não pensou nisso?

— Sinceramente, não. A maioria desses caras são filhinhos de papai, poucos são como eu, que tive que superar um obstáculo todos os dias para conseguir chegar até aqui. E, não sei se você se deu conta, só dois negros farão a residência.

— Você tem que parar de se menosprezar por ser negra, Anne. Você é muito mais do que a cor da sua pele. É uma menina bonita, inteligente e esforçada.

— Eu não me menosprezo por isso, apenas sou realista. Sei que as coisas sempre foram mais complicadas para mim por causa da minha cor, ou você acha que eu não percebia quando alguns dos nossos colegas de turma que nem olhavam na minha cara, ficavam irritados quando minha nota era mais alta do que a deles, ou quando recebia elogio por algum trabalho? Você não se lembra o que o Márcio me disse?

— O Márcio é um babaca.

— Ele pode ser um babaca, mas ele foi sincero comigo e disse o que pensava, me mostrando a realidade. Muitos pensam como ele.

Márcio é um amigo nosso, nos conhecemos há muitos anos. Assim como Amanda, tem uma família estruturada e ambos moram em um bairro de classe média. Conheci-os quando ganhei uma bolsa para um curso de inglês na escola em que eles estudavam, desde então nos tornamos amigos e a nossa amizade fortaleceu quando nos três fomos aprovados na UERJ. Mesmo tendo estudado a minha vida toda em escola pública, consegui passar em décimo segundo lugar e é um motivo de orgulho para mim.

Voltando ao assunto do Márcio, ele me disse que gostava muito de mim, e que se eu tivesse o corpo e o cabelo da Amanda, namoraria comigo. Que eu sou uma mulher especial, inteligente e bem-humorada. O que ele quis dizer, ainda que sem usar essas palavras, foi que eu era negra e tinha um cabelo crespo e, por isso, não namoraria comigo. Márcio é um rapaz gente boa, não fiquei com raiva dele, só um pouco triste.

Fui humilhada durante minha infância toda por minha mãe por causa da minha cor da pele. Minha irmã quando ficou adolescente fazia questão de nos comparar dizendo ser branca e não ter cabelo crespo como o meu.

Algumas pessoas têm o péssimo hábito de chamar cabelo crespo de ruim. Ruim por que, ele fez algum mal? E outra coisa, minha irmã diz que é branca e não passa de uma sarará. Para mim só existem duas cores de pele, branca ou negra. Em um país como o nosso, é triste ver que ainda existem pessoas que são racistas, um país onde a maioria da sua população é negra. Para mim, muitas vezes o preconceito e a discriminação se tornam um. Por exemplo, um cabelo pintado de azul, uma calça rasgada, um piercing no nariz são motivos para que os "juízes" darem o seu veredito baseado no que veem, dizendo que para ter essa aparência é viciado em droga ou uma pessoa à toa. Quer dizer que se eu pintar meu cabelo de uma cor que não seja "normal", não presto como pessoa? Quem mora na favela é bandido, quem é pobre não tem educação. Esses tipos de absurdos, infelizmente, fazem parte do nosso dia a dia.

Quantos homossexuais, pessoas que tem nanismo, travestis, transgêneros, enfim, basta ser "diferente" para ser menosprezado, humilhado e atacado. O preconceito nada mais é do que um conceito formado antes de se constatar os fatos. Tudo que é não familiar, que é desconhecido, estranho ou diferente. A discriminação decorre do preconceito, transgrede nossos direitos, nos segrega. Digamos que o preconceito fica na parte interna, já a discriminação parte para a ação. De qualquer forma, os dois são injustos e são capazes de destruir uma pessoa.

— Anne, o Márcio foi indelicado e um idiota, ele não conta. Eu bem vi na nossa formatura o Luiz se engraçando para seu lado.

— O Luiz, Amanda? Quer mesmo falar nele?

— Por quê? Qual é o problema Anne? Aliás, até hoje não entendi por que você não ficou com ele, o cara é um gato.

— Porque não sou resto, Amanda. O Luiz passou a noite toda dando em cima da Dandara.

— Sério? Logo a patricinha antipática da Dandara.

— Ele sempre foi a fim dela.

— Pensei que tinha desistido, a garota é um nojo e sempre deixou bem claro que nunca ficaria com pobre.

— Mesmo assim, ele insistiu até ela dar um chute em sua bunda e se agarrar com o Henrique.

— Desculpe, eu não sabia. Aquele dia eu queria que uns beijinhos compensasse a ausência da sua família.

— Realmente, eu fiquei muito triste porque minha mãe não quis estar comigo no dia mais importante da minha vida. E a Bruna inventou que não tinha roupa, foi uma desculpa esfarrapada.

— Sinto muito.

— Depois eu refleti bem sobre isso e me dei conta que, durante todos os anos que estudei e todo o sacrifício que fiz para conseguir concluir o curso, sempre estive só. Nunca recebi apoio da minha família, elas nunca me ajudaram, nem com palavras de incentivo. Muitas vezes eu dormia com os livros abertos em cima de mim e amanhecia com eles no mesmo lugar. A única coisa que minha mãe fazia era apagar a luz para não atrapalhar o sono da Bruna, isso quando ela chegava ainda à noite.

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