Anne
— Bruna, por favor, vê se não vai chegar tarde porque amanhã você tem entrevista de emprego. Amanda está fazendo este favor pela consideração que ela tem por mim, se você falhar comigo mais uma vez, não vou pedir mais nada a ninguém.
— Relaxa, Anne. Vou dar uma volta com a Priscila, daqui a pouco estarei de volta.
— Não gosto de você com essa menina. Eu já te disse que ela não é boa companhia.
— Não começa, Anne. Eu não sou mais criança e não preciso de ninguém pegando no meu pé. Você não é minha mãe.
— Eu quero seu bem, Bruna. Você tem dezoito anos, não terminou os estudos, não trabalha e só vive dentro da favela fazendo sei lá o quê. Você é tão bonita, com um pouco de esforço consegue melhorar de vida.
— Pode parando com o papo. Não tem nada a ver comigo esse negócio de ficar igual você com a cara no livro. Eu sou nova e tenho que aproveitar a vida.
— Até quando você acha que vai ficar nova, Bruna? Até quando acha que minha mãe vai aguentar ficar fazendo faxina para te sustentar?
— Que droga, Anne, essa ladainha toda é por causa da entrevista amanhã? Eu já te disse que vou, qual é o estresse?
— Tudo bem, Bruna. Faz o que você quiser, como você disse, não sou sua mãe. Mas depois não diga que não avisei.
Minha mãe entra no quarto reclamando que minha irmã saiu de novo, em plena quarta-feira e quase dez horas da noite. Não falo nada, a Bruna faz essas coisas porque ela dá dinheiro para isso. Trabalha o dia todo limpando a sujeira dos outros, aos finais de semana faz unha para aumentar a renda, e é só a Bruna pedir dinheiro para passear ou comprar roupa que ela cede aos seus caprichos, mesmo tendo outras prioridades.
Faz tempo que não compro nada além de livros, meu dinheiro é gasto com as contas de casa e com meus estudos. Apesar da minha faculdade ser gratuita, gasto muito com xérox, livros, trabalhos e passagem. Trabalho como operadora de telemarketing e ganho salário mínimo, que não dá para muita coisa. Consigo aumentar um pouco minha renda fazendo trufas e vendendo na faculdade; no final de semana faço uma boa quantidade para vender durante a semana, pois eu não tenho tempo nos outros dias devido ao trabalho e a faculdade. O pior de tudo é que tenho que guardar as trufas na casa da Amanda. Isso porque a Bruna, além de não me ajudar a fazer e nem a vender — já que ela fica em casa, poderia vender para os vizinhos —, ainda come uma atrás da outra, e quando vou ver, as trufas não estão me dando lucro. Reclamei com minha mãe e ela disse que pagaria, para evitar aborrecimento. Amanda se ofereceu para guardar em sua casa e eu aceitei.
Essa semana sairei do trabalho porque no início do mês que vem vai começar a minha residência. Estou muito ansiosa, não vejo a hora de vivenciar o dia-a-dia dentro de um hospital, além disso minha renda irá aumentar e vou poder respirar um pouco mais aliviada.
Como eu havia imaginado, Bruna chega por volta das três da manhã, bêbada, e não conseguiu acordar para a entrevista. Amo a minha irmã, mas eu não posso querer por ela, essa é a última vez que tento ajudar. Por mais que minha mãe reclame, ela sempre faz as vontades da Bruna, sempre foi assim.
Quando éramos mais novas, toda vez que minha mãe tinha algum problema ou ficava sabendo de alguma coisa que meu "pai" aprontava na rua, ela descontava em mim. Às vezes, do nada, chegava em casa furiosa e me batia. Em uma dessas ocasiões, abriu a porta da geladeira, encheu o copo de água gelada e jogou em mim. Não satisfeita, pegou a tampa da panela e jogou com toda força em na minha direção. Se eu não me abaixasse, teria acertado na minha cabeça, o arremesso foi tão forte que quebrou o vidro da janela e foi parar lá embaixo. Eu devia ter uns oito anos quando isso aconteceu.
Minha irmã sempre passou ilesa dessas agressões, concluo que eu era o alvo por ser parecida com ele. Sou negra como ele enquanto minha irmã tem a pele clara como minha mãe, e não tem um cabelo rebelde como o meu.
Meus dias se resumem em ir para a faculdade e trabalho, além de passar uma boa parte da noite estudando. Eu quero ser a melhor na minha profissão e para isso tenho que me dedicar nas poucas horas que tenho disponíveis.
— Amanda, me desculpe pela Bruna. Ela não tem jeito.
— Anne, eu só falei com minha tia para conseguir uma vaga para ela por sua causa. Eu sei, e no fundo você também sabe, que a Bruna não quer trabalhar nem estudar. O negócio dela é ficar de rolê dentro da favela e se esfregando com aqueles caras que não querem nada como ela.
— Você está certa, Amanda. Por mais que eu a ame, não posso viver a vida dela. Há anos que tento colocar algum juízo naquela cabecinha de vento e não consigo. Só peço a Deus que ela não fique grávida e não se envolva com o tráfico, a nossa vida já é bastante difícil e não precisamos de mais problemas.
— Anne, você tem que viver a sua vida. Se preocupa demais com sua irmã e sua mãe, que nem se importam contigo. Mudando de assunto, estou ansiosa para começar a nossa residência.
— Eu também Amandinha, é o início do meu sonho sendo realizado. Não vejo a hora de colocar a mão na massa, aprender ali com a realidade do dia-a-dia, poder ajudar as pessoas.
— Será que vai ter um monte de médico gato por lá?
— Eu falando de trabalho e você pensando nos caras.
— Amiga, estou precisando dar uns beijinhos na boca. Se puder juntar o útil ao agradável, vai ser melhor ainda.
— Você não presta, Amanda.
— Vai dizer que também não pensou nisso?
— Sinceramente, não. A maioria desses caras são filhinhos de papai, poucos são como eu, que tive que superar um obstáculo todos os dias para conseguir chegar até aqui. E, não sei se você se deu conta, só dois negros farão a residência.
— Você tem que parar de se menosprezar por ser negra, Anne. Você é muito mais do que a cor da sua pele. É uma menina bonita, inteligente e esforçada.
— Eu não me menosprezo por isso, apenas sou realista. Sei que as coisas sempre foram mais complicadas para mim por causa da minha cor, ou você acha que eu não percebia quando alguns dos nossos colegas de turma que nem olhavam na minha cara, ficavam irritados quando minha nota era mais alta do que a deles, ou quando recebia elogio por algum trabalho? Você não se lembra o que o Márcio me disse?
— O Márcio é um babaca.
— Ele pode ser um babaca, mas ele foi sincero comigo e disse o que pensava, me mostrando a realidade. Muitos pensam como ele.
Márcio é um amigo nosso, nos conhecemos há muitos anos. Assim como Amanda, tem uma família estruturada e ambos moram em um bairro de classe média. Conheci-os quando ganhei uma bolsa para um curso de inglês na escola em que eles estudavam, desde então nos tornamos amigos e a nossa amizade fortaleceu quando nos três fomos aprovados na UERJ. Mesmo tendo estudado a minha vida toda em escola pública, consegui passar em décimo segundo lugar e é um motivo de orgulho para mim.
Voltando ao assunto do Márcio, ele me disse que gostava muito de mim, e que se eu tivesse o corpo e o cabelo da Amanda, namoraria comigo. Que eu sou uma mulher especial, inteligente e bem-humorada. O que ele quis dizer, ainda que sem usar essas palavras, foi que eu era negra e tinha um cabelo crespo e, por isso, não namoraria comigo. Márcio é um rapaz gente boa, não fiquei com raiva dele, só um pouco triste.
Fui humilhada durante minha infância toda por minha mãe por causa da minha cor da pele. Minha irmã quando ficou adolescente fazia questão de nos comparar dizendo ser branca e não ter cabelo crespo como o meu.
Algumas pessoas têm o péssimo hábito de chamar cabelo crespo de ruim. Ruim por que, ele fez algum mal? E outra coisa, minha irmã diz que é branca e não passa de uma sarará. Para mim só existem duas cores de pele, branca ou negra. Em um país como o nosso, é triste ver que ainda existem pessoas que são racistas, um país onde a maioria da sua população é negra. Para mim, muitas vezes o preconceito e a discriminação se tornam um. Por exemplo, um cabelo pintado de azul, uma calça rasgada, um piercing no nariz são motivos para que os "juízes" darem o seu veredito baseado no que veem, dizendo que para ter essa aparência é viciado em droga ou uma pessoa à toa. Quer dizer que se eu pintar meu cabelo de uma cor que não seja "normal", não presto como pessoa? Quem mora na favela é bandido, quem é pobre não tem educação. Esses tipos de absurdos, infelizmente, fazem parte do nosso dia a dia.
Quantos homossexuais, pessoas que tem nanismo, travestis, transgêneros, enfim, basta ser "diferente" para ser menosprezado, humilhado e atacado. O preconceito nada mais é do que um conceito formado antes de se constatar os fatos. Tudo que é não familiar, que é desconhecido, estranho ou diferente. A discriminação decorre do preconceito, transgrede nossos direitos, nos segrega. Digamos que o preconceito fica na parte interna, já a discriminação parte para a ação. De qualquer forma, os dois são injustos e são capazes de destruir uma pessoa.
— Anne, o Márcio foi indelicado e um idiota, ele não conta. Eu bem vi na nossa formatura o Luiz se engraçando para seu lado.
— O Luiz, Amanda? Quer mesmo falar nele?
— Por quê? Qual é o problema Anne? Aliás, até hoje não entendi por que você não ficou com ele, o cara é um gato.
— Porque não sou resto, Amanda. O Luiz passou a noite toda dando em cima da Dandara.
— Sério? Logo a patricinha antipática da Dandara.
— Ele sempre foi a fim dela.
— Pensei que tinha desistido, a garota é um nojo e sempre deixou bem claro que nunca ficaria com pobre.
— Mesmo assim, ele insistiu até ela dar um chute em sua bunda e se agarrar com o Henrique.
— Desculpe, eu não sabia. Aquele dia eu queria que uns beijinhos compensasse a ausência da sua família.
— Realmente, eu fiquei muito triste porque minha mãe não quis estar comigo no dia mais importante da minha vida. E a Bruna inventou que não tinha roupa, foi uma desculpa esfarrapada.
— Sinto muito.
— Depois eu refleti bem sobre isso e me dei conta que, durante todos os anos que estudei e todo o sacrifício que fiz para conseguir concluir o curso, sempre estive só. Nunca recebi apoio da minha família, elas nunca me ajudaram, nem com palavras de incentivo. Muitas vezes eu dormia com os livros abertos em cima de mim e amanhecia com eles no mesmo lugar. A única coisa que minha mãe fazia era apagar a luz para não atrapalhar o sono da Bruna, isso quando ela chegava ainda à noite.
Berlim, AlemanhaAcordo sentindo um braço magro sobre meu peito, olho para o lado e vejo uma loira nua. Não consigo enxergar o seu rosto, coberto por seus fios dourados. Minha cabeça está pesada e dói. Estou arruinado, meu corpo inteiro está dolorido. Olho ao redor e percebo que estou em um quarto que com certeza não é de hotel, porque tem um pôster do ator Chris Hemsworth colado na parede. A maioria das minhas colegas de trabalho e algumas amigas dizem que me pareço com esse ator. O pôster que tem mais de um metro de comprimento e em cima da cômoda rosa. Rosa? Mas que porra, será que eu transei com uma criança?Aos poucos as lembranças vão surgindo. Fui jantar com meu pai e meu irmão, e quando disse que amanhã irei para o Brasil, acabamos nos desentendendo. Meu pai como sempre foi contra, dizendo que eu adoro ficar no meio de gentinh
AnneEstou muito ansiosa. Hoje será meu primeiro dia como doutora Martins, nunca meu sobrenome soou tão bem. Cheguei bem cedo no hospital com medo de me atrasar e até agora não chegou mais ninguém, então estou aproveitando para tomar um café na cantina. Amanda e Márcio devem estar chegando. Nós três tivemos muita sorte de conseguirmos vaga nesse hospital, que tem uma rede em todo o Rio, além de uma excelente estrutura.— Bom dia, Anne. Ansiosa?— Muito, Amanda. Não via a hora de vocês chegarem. Bom dia, Márcio — cumprimento e ele me dá um beijo estalado na bochecha.— Tenho uma notícia fresquinha para vocês sobre os nossos chefes.— Amanda, você acabou de chegar e já tem novidade?Ela sorri, fazendo cara de sapeca.— Ontem me ligaram dizendo que ficou faltando um documento
Anne— Fi...quem a vontade — Amanda gagueja.É a primeira vez que a vejo sem graça na presença de algum homem. Eu não estou diferente dela. Doutor Hoff senta ao meu lado e o doutor Hensel, com seu semblante sério, ao lado da Amanda. Não sei se é melhor ou pior, pois Hensel não tira os olhos de mim, deixando-me sem saber como agir.— E aí, meninas. Posso saber o motivo de tanta felicidade? O que você me diz, Anne, ou é segredo?— Não é nada demais, doutor Hoff.— Não estamos no hospital, doutora. Pode me chamar de Adam.— Como eu estava dizendo, Adam — sorrio para ele —, estou feliz porque eu e Amanda vamos morar juntas. Eu amo essa garota, ela é mais do que uma amiga para mim.Adam conversa comigo, mas sua atenção está na Amanda e eu nunca tinha visto
KlausHoje acordei com a missão de procurar um lugar para morar. Se dependesse do Adam, ficaria com ele em seu apartamento, onde estou hospedado, mas não quero tirar a privacidade do meu amigo, além de querer a minha. Marquei com o corretor às dez horas para ver umas coberturas, aqui mesmo na Barra para facilitar minha ida ao hospital.Desde o primeiro dia que comecei a auxiliar os novos doutores, estou fascinado pela doutora Martins. Aquela negra mexeu comigo de uma forma que me assusta. Não consigo parar de olhar para ela, sua beleza e seu jeito simples de ser me fascinam. Existe algo em seu olhar que me traz familiaridade, como se já o tivesse visto antes. O meu amigo não está muito diferente de mim, completamente fascinado pela Amanda. Nós dois fomos pegos de jeito por essas mulheres, tivemos até que deixar de trabalhar diretamente com elas. Adam ficou com Anne em sua equipe e eu, c
KlausAmanda propõe que vamos até a sua casa para que elas troquem de roupa e, no curto caminho, tenho o prazer de ter a companhia de Anne, que vai no meu carro. No início, ficamos em silêncio e a cada sinal fechado aproveito para olhar para ela, até que Anne quebra o silêncio, perguntando sobre meu trabalho voluntário. Fico à vontade, pois falar da minha profissão sempre foi muito prazeroso para mim. Adam e eu ficamos esperando as meninas na sala enquanto elas se arrumam.— E aí, cara. Como foi com a Anne?— Nós conversamos um pouco sobre trabalho voluntário. E você, como foi com a Amanda?— Perguntei a ela as coisas que ela gosta de fazer e foi basicamente sobre isso que conversamos.— Cara, a Amanda está na sua, percebo pelo jeito que ela te olha. Mas a Anne não mostra nenhum interesse por mim.&mdash
AnneNo domingo, quando chego em casa, encontro um cenário de festa. O som alto e a casa cheia, os colegas da Bruna rindo e bebendo na sala enquanto minha mãe frita salgadinhos na cozinha.— Boa tarde, doutora — Bruna fala assim que entro. Cumprimento todos, dou um beijo na minha mãe e vou para o meu quarto.Fico no quarto tentando revisar as anotações que fiz sobre alguns procedimentos necessários para uma cirurgia no coração, mas está difícil de me concentrar por causa do barulho. Minha mãe entra no quarto e diz que, se eu quiser salgadinho, é para ir lá na sala pegar porque ela não vai ficar servindo ninguém. Agradeço sua “gentileza” e digo que não quero. Assim que ela sai, meu telefone toca e é Amanda.— Já está com saudade, namorada?— Nem brinca, Ann
AnneSaio do hospital e vou ao supermercado comprar algumas coisas que estão faltando em casa. No ponto de ônibus, um sedan cinza passa por mim e buzina. Não faço ideia de quem se trata, então não me importo, pode ser só algum engraçadinho sem noção. O carro estaciona um pouco à frente e fico com medo, mas há algumas pessoas no ponto, qualquer coisa peço socorro. Fico de costas para não olhar para o carro, pedindo a Deus que meu ônibus chegue logo.— Anne. Assusto-me ao ouvir meu nome, e fico surpresa quando me viro.— João? João Carlos?— Vai dizer que eu estou tão diferente assim?— Nossa, você mudou muito.— Será que isso foi um elogio? — Ele sorri e o abraço.João estudou comigo
AnneNo caminho para o hospital, recebo uma mensagem do João dizendo que ele quer me ver, mas vou sair tarde e não sou boa companhia para ninguém hoje. Meu coração está ferido, a única família que tenho virou as costas para mim. Minha mãe, com sua atitude, deixou mais uma vez bem claro que não se importa comigo. Teve a capacidade de dizer que eu não poderia levar nada de dentro de casa, que, mesmo se o apartamento que vou morar não fosse mobiliado, eu não levaria.Minha vontade neste momento é de gritar com todo pulmão e colocar para fora tudo o que está ferindo o meu peito. Sonhei tanto em um dia me formar, melhorar de vida para dar uma condição melhor a minha família, e hoje me vejo assim, sozinha, sem o amor daquelas que têm o meu sangue.Quando entro no hospital, vou direto para a cantina. Preciso tomar um c