9. ENCONTRO INESPERADO

Anne

Saio do hospital e vou ao supermercado comprar algumas coisas que estão faltando em casa. No ponto de ônibus, um sedan cinza passa por mim e buzina. Não faço ideia de quem se trata, então não me importo, pode ser só algum engraçadinho sem noção. O carro estaciona um pouco à frente e fico com medo, mas há algumas pessoas no ponto, qualquer coisa peço socorro. Fico de costas para não olhar para o carro, pedindo a Deus que meu ônibus chegue logo.

— Anne.

         Assusto-me ao ouvir meu nome, e fico surpresa quando me viro.

— João? João Carlos?

— Vai dizer que eu estou tão diferente assim?

— Nossa, você mudou muito.

— Será que isso foi um elogio? — Ele sorri e o abraço.

João estudou comigo no ensino médio, e, meu Deus, ele está lindo. É exatamente meu número, o perfil dos meus melhores sonhos, negro, alto, bonito e sensual, uma verdadeira delícia.

— Você está... Vamos dizer que bem melhor do que quando te conheci — digo e ele ri alto.

— Você não mudou nada, Anne. Continua bonita e divertida.

— Como você me reconheceu?

— Uma negra linda como você não se esquece fácil — diz, deixando-me sem graça. — Eu estava parado no sinal, te vi e buzinei, mas você não deu confiança, então achei melhor estacionar e vir falar contigo. Não podia perder essa oportunidade.

— Adorei te reencontrar.

— Muito bom saber disso. — Ele sorri de um jeito malicioso. — Vamos, vou te levar. Ainda mora no mesmo lugar?

— Sim, mas por pouco tempo.

— Por que, vai se mudar?

— No caminho te conto.

João pega minhas bolsas e coloca na mala do seu carro, convidando-me para pararmos em um barzinho para colocar o papo em dia, e eu aceito. No bar, ele me diz que se formou em Direito e trabalha no escritório do seu pai, no Recreio, e que reside em um condomínio na Barra. Conto-o que em breve também irei morar no mesmo bairro. Nossa conversa flui e, quando percebo, passa de meia-noite. A conversa que preciso ter com minha mãe terá que ficar para outro dia.

João me deixa na entrada da comunidade; acho melhor ele não entrar devido aos dias de guerra que temos enfrentado. Gentilmente, ele sai comigo do carro e pega minhas sacolas e, quando vou dar um beijo de despedida em seu rosto, me puxa e me beija na boca. Separo os lábios, dando passagem para sua língua.

— Anne, você não faz ideia há quanto tempo desejo sentir o gosto da sua boca. Quando estudávamos juntos, eu sonhava com você nos meus braços, mas eu era um adolescente tímido e nunca tive coragem de me declarar. Você sempre foi tão focada nos estudos, não dava abertura para ninguém.

Essa declaração do João me pega de surpresa.

— Te confesso que por essa eu não esperava.

— Você tem alguém?

— Que eu saiba, não — respondo e ele ri.

— Quer sair comigo?

— Deixa-me pensar.

Ele me olha com ansiedade enquanto bato meu dedo na testa, olhando para o céu, fingindo pensar.

— Levando em consideração que você me beijou, acho uma boa ideia.

João sorri e me beija de novo. E que beijo. Trocamos telefone e vou embora. Faço meu caminho para casa sorrindo à toa e, quando chego na entrada do prédio onde moro, vejo uns cinco homens mal-encarados que eu não conheço, provavelmente da nova safra de bandidos que chegou ao local.

— Com licença.

— A gatinha vai aonde, posso saber? — um deles fala, pegando em meu braço.

— Para minha casa, você pode me dar licença?

— E aí, J.J., a princesa é marrenta.

Quando vou responder, alguém atrás de mim fala antes.

— Qual é? Deixa a doutora passar. Não quero ninguém aqui mexendo com ela. Aquele que desobedecer, vai se ver comigo. Vai lá, Aninha.

Quando eu olho, vejo o Babi, um rapaz que foi criado comigo e que, infelizmente, entrou para a vida do crime. Ele é uns dos meus amigos com quem nunca deixei de falar, mesmo dando passos errados

— Obrigada, Babi.

— Que nada, Aninha. Sabe que se precisar, é só falar comigo.

Assinto em silêncio e continuo meu trajeto com o coração na mão. Se não fosse ele, não sei o que aqueles homens poderiam ter feito comigo. No caminho, ainda ouço-o dizer novamente aos caras que não é para mexer comigo, que eu sou uma mulher direita. O que me deixa triste é ouvir da boca dele que minha irmã não vale nada.

Hoje acordo um pouco mais tarde, só vou ao hospital depois do almoço. Essa escala que os doutores fizeram veio em boa hora. Por coincidência ou não, a Amanda está escalada junto comigo e o Márcio não ficou em nenhum turno com a gente. Amanda acha que eles fizeram isso de propósito, por ciúmes do Márcio e a princípio pensei que ela estava viajando, mas depois de observar bem a escala, acabei concordando. Eu e Klaus somos apenas amigos, o ciúme deve ser do doutor Adam que está a fim da Amanda.

Aproveito que estou em casa e minha mãe também para ter uma conversa com ela e com a Bruna. Não vai ser nada fácil, mas não vou voltar atrás. Está mais do que na hora de cuidar de mim.

— Eu chamei vocês duas para que a gente possa conversar. Tenho algo para comunicá-las.

— Que merda, Anne. Você me acordou para ficar enchendo meu saco — Bruna fala, irritada.

— Sua irmã está cansada, Anne. Ela precisa dormir mais um pouco. — Como sempre, minha mãe sai em defesa da minha irmã.

— São onze da manhã, a Bruna já dormiu o suficiente. E se tem alguém cansado aqui, mãe, essa sou eu, que tive um plantão de doze horas no hospital, fiquei em pé praticamente o dia todo e, depois do trabalho, ainda fui ao supermercado. O que a Bruna fez para que a senhora diga que ela está cansada? Eu é que estou cansada de a senhora ficar passando a mão na cabeça dela. Sua filha tem dezoito anos, não trabalha, não estuda e leva a vida como fosse filhinha de papai. Baladas, roupa da moda, tudo sustentado pela senhora que rala o dia todo para limpar a sujeira dos outros. Era para a senhora, na sua idade, diminuir a carga de trabalho e sua filha estar empregada para ajudar em casa e sustentar as mordomias dela.

— Foi para isso que você me acordou? — Bruna pergunta com a expressão de entediada.

— Não, Bruna, foi para dizer que as coisas irão mudar. Várias vezes pedi à nossa mãe para vender este apartamento e a gente ir morar em outro lugar.

— Se o assunto for esse, esquece, Anne. Não vou vender minha casa só porque você quer.

— Eu não quero mais, mãe. Sabe por quê? Eu desisti de vocês. Desisti de colocar juízo na cabeça da sua filha, desisti de fazer a senhora enxergar que só quero uma vida melhor para nós três. Também desisti de continuar vivendo nesse lugar onde residem pessoas de bem, mas também pessoas que não se importam que tem crianças na rua antes de começar um tiroteio.

— E como a gente fica? Você vai continuar ajudando nas despesas, não vai?

— Não, mãe, não vou. Não tenho como manter duas casas. O que a senhora ganha é o suficiente para as despesas, é só a sua filha parar de ficar fazendo conta. E se vocês quiserem ter uma vida mais folgada, é só sua filha trabalhar e usar o dinheiro dela para seus luxos.

— Você está de sacanagem, Anne! Mãe, você não vai falar nada?

— Falar o que, Bruna?

— Que agora que ela virou doutora se acha melhor do que a gente.

— Eu sou melhor que você, Bruna. Sabe por quê? Porque enquanto eu passava a madrugada estudando, você passava a noite na rua fazendo sabe-se lá o quê. Enquanto eu fazia meus brownies para ajudar na renda, você nunca se ofereceu para me ajudar, muito pelo contrário, os comia e ainda dava para suas amigas. Tive que chegar ao ponto de pedir a Amanda para guardar em sua casa. Enquanto você dormia tarde da noite e passava o dia todo na cama recuperando energia para a noite seguinte, os meus dias se resumiam em trabalhar e estudar, e se hoje eu sou uma doutora, como você diz, é fruto do meu esforço, das noites mal dormidas e de muita determinação. Mesmo sem apoio de vocês, venci e tenho muito orgulho disso.

— Anne, eu...

— Não fala nada, mãe. Deixa a doutora. Com certeza a nossa vida vai ser bem melhor sem ela aqui enchendo o nosso saco.

— Desejo do fundo do meu coração que vocês sejam felizes. Se quiserem me visitar, fiquem à vontade. Mas se para vocês serem felizes é melhor minha ausência, não venho mais aqui e não precisam me procurar. Eu as amo e sinto muito que não sintam o mesmo por mim. Amanhã vou pedir folga e levar minhas coisas.

— Você não vai tirar nada daqui, Anne.

Respiro fundo e fico um minuto em silêncio, com os olhos fechados.

— Graças a Deus não preciso de nada, mãe. Vou levar só as minhas roupas, que comprei com meu dinheiro, ao contrário da sua filha que nunca comprou uma calcinha.

Pego minha bolsa e saio. Não quero chorar na frente delas.

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