Anne
No domingo, quando chego em casa, encontro um cenário de festa. O som alto e a casa cheia, os colegas da Bruna rindo e bebendo na sala enquanto minha mãe frita salgadinhos na cozinha.
— Boa tarde, doutora — Bruna fala assim que entro. Cumprimento todos, dou um beijo na minha mãe e vou para o meu quarto.
Fico no quarto tentando revisar as anotações que fiz sobre alguns procedimentos necessários para uma cirurgia no coração, mas está difícil de me concentrar por causa do barulho. Minha mãe entra no quarto e diz que, se eu quiser salgadinho, é para ir lá na sala pegar porque ela não vai ficar servindo ninguém. Agradeço sua “gentileza” e digo que não quero. Assim que ela sai, meu telefone toca e é Amanda.
— Já está com saudade, namorada?
— Nem brinca, Anne. Como pode aqueles dois alemães gostosos para cacete acharem que nós duas, duas gostosas, somos namoradas? Se soubesse o quanto eu gosto de uma rola, ainda mais se for a de um certo alemão, ele não teria dito isso, nem pensado nessa possibilidade.
— Você não presta, Amanda.
— Você que é boba, não sabe o que está perdendo. Se eu fosse você, estrearia a minha boceta em grande estilo, daria feliz da vida para um alemão com cara de ator de Hollywood, gostoso para caralho.
— Quantas vezes que vou ter que te dizer que Klaus e eu somos apenas amigos e que ele não faz meu tipo?
— Não me leva a mal, Anne, mas aquele ali faz o tipo de qualquer um, seja do sexo feminino ou masculino.
Tenho que rir, essa menina é demais.
— Amanda, esquece este assunto. Não estou com pressa de ter a minha primeira vez e você sabe muito bem o motivo.
— Ok, não está mais aqui quem falou. Que barulho é esse na sua casa, está fazendo festa e nem me convidou?
— Bruna e sua turma. Estou tentando estudar um pouco, mas está difícil.
— Estou te ligando para ver se você não quer ir no nosso apartamento, separar o que a gente quer e o que vamos vender ou doar.
— Vou sim, Amanda. Só assim eu me afasto dessa bagunça. Ainda não conversei com a minha mãe sobre isso, amanhã quando eu chegar do hospital falo com ela. Vou levar algumas coisas e passar a noite no apartamento, porque pelo visto a bagunça aqui em casa vai render até tarde.
Fico tão magoada com a forma que minha mãe me trata, parece que está me fazendo um favor avisando que tem salgadinho. Trabalho desde os meus dezesseis anos para que tenhamos um mínimo de dignidade, sempre ajudei, financeiramente e nas tarefas de casa. Como adolescente, queria uma mochila nova ou uma roupa da moda, mas me privava de ter as coisas para colaborar com as contas de casa. Enquanto minhas amigas recebiam seus tickets e iam para o shopping lanchar, eu usava o meu no supermercado para comprar a cesta básica do mês.
Enquanto isso, minha mãe tirava do pouco que recebia para fazer as vontades da minha irmã. Nunca se preocupou em saber o que eu gostava ou queria, nunca me elogiou, nunca me agradeceu por minha dedicação e, mesmo assim, não estou me sentindo confortável em sair de casa. Sei que Amanda tem razão quando diz que tenho que pensar em mim.
Minha amiga me dá amor, carinho e a atenção que não recebo dentro de casa. Seus pais sempre me incentivaram nos estudos e sempre queriam saber como eu estava e se precisava de alguma coisa. Palavras e gestos que queria que viessem da minha família e que nunca vieram. No dia seguinte sem falta conversarei com a minha mãe, ela terá que entender que a situação vai mudar porque não será possível manter duas casas. Bruna vai ter que se movimentar para ajudar nas despesas e, minha mãe, parar de fazer suas vontades.
O que minha mãe recebe como empregada doméstica e o dinheiro que ganha fazendo unha seria o suficiente para manter a casa se não fossem as dívidas desnecessárias que minha irmã faz, deixando-a sempre sem dinheiro. Mas agora a Bruna terá que entender que, para gastar, primeiro é preciso ter o dinheiro, e, para ter dinheiro, tem que trabalhar.
Amanda e eu temos a mesma idade. Ela é filha única e, dede que a conheci, meus dias se tornaram bem melhores. Nunca me tratou diferente por eu morar em uma comunidade, ser negra e não usar roupas de marca como as dela. Algumas de suas amigas se afastaram por ela sempre estar comigo, outras sempre me trataram bem. Ela e o Márcio sempre foram amigos leais e que me amam do jeito que sou.
Sei que Márcio já foi a fim de mim e não me quis por eu ser negra, mas isso é passado. Não o culpo por pensar desse jeito porque ele foi criado por pais racistas. A vida toda foi implantada nele a diferença entre brancos e negros, colocando os brancos em superioridade, mas, mesmo assim, ele se tornou meu melhor amigo, contrariando seus pais que não o queriam em minha companhia.
Uma vez, em umas das festas de aniversário da Amanda, ouvi a mãe do Márcio conversando com a tia Irene, mãe da minha amiga, dizendo que era um absurdo ela confiar de me ter dentro da sua casa, que ela já havia alertado ao Márcio várias vezes para tomar cuidado comigo, porque, por causa de onde eu vim, eu não era confiável. A tia Irene saiu em minha defesa, dizendo que confiava mais em mim do que em muita gente engravatada e metida besta, que minha condição de vida não definia meu caráter, e elogiou Márcio, dizendo que ele era um bom rapaz e que felizmente não era como os pais.
Depois de ouvir essa conversa, fiquei em um misto de felicidade e tristeza ao mesmo tempo. Tristeza por haver pessoas que nos julgam por nossa aparência e condições de vida; felicidade por existirem outras como a tia Irene. Ela poderia ter ficado na dela para não se indispor com sua amiga metida à besta, mas, ao invés disso, saiu em minha defesa, agindo como uma mãe agiria para defender seu filho.
Passo a noite no apartamento e chego mais descansada no trabalho. O condomínio fica a quinze minutos do hospital, o que facilita bastante, já que normalmente levo uma hora para chegar no trabalho. Encontrar o Klaus é meio estranho, mas trato-o normalmente porque, apesar de termos saído juntos, ele ainda é meu chefe e aqui, meu local de trabalho. As doutoras, enfermeiras e todo corpo feminino do hospital deliram com os alemães e eu nunca me importei, achava até engraçado. Mas hoje em especial esse frenesi todo que Hensel causa nas mulheres está me incomodando, o que me assusta porque não sei o motivo por estar me sentindo assim.
Amanda e eu vamos almoçar no shopping e Márcio não vai conosco porque precisa ir ao banco.
— Estou muito puta com a doutora Lilian.
— O que ela fez para te deixar assim, Amanda?
— Ela estava falando um monte de merda.
— Desenvolve o assunto, Amanda.
— Na hora da nossa pausa, ela disse que não vê a hora de ir para a cama com o doutor Hoff e que tem certeza de que ele está a fim dela. — Eu começo a rir. — Posso saber o motivo da graça, Anne?
— Desculpa, amiga. É que eu nunca te vi com ciúmes.
— Quer saber? Estou mesmo. Desde que coloquei os olhos nele, eu o desejo. Se fosse outro cara eu já teria partido para cima. Você sabe muito bem que, quando eu quero, parto para o ataque. Mas com ele não consigo ser assim, por mais que o deseje, não quero apenas uma noite. Quero muito mais.
— Amanda, você está apaixonada pelo doutor. Não sei te dizer se isso é bom ou ruim.
— Eu também não, Anne. Sempre fui porra louca, nunca fui de me apegar a ninguém, e agora me vejo com os quatro pneus arriados pelo meu chefe. — Ela esconde seu rosto na mesa.
— Amanda, posso te confessar uma coisa?
— Fala logo, Anne.
— Hoje o assédio da mulherada em cima do doutor Klaus me incomodou. — Amanda levanta o rosto e me olha com um sorriso safado de quem está pensando besteira.
— Pelo visto não só eu estou de quatro por um alemão.
— Não confunda as coisas, apenas fiquei incomodada, só isso. Não sinto nada por ele.
— Tá bom, Anne. Vou fingir que eu acredito.
Terminamos nossa refeição e voltamos para o hospital. No final do expediente, temos uma reunião, depois da qual todos vão embora, ficando na sala apenas os doutores, Amanda, eu e o Márcio. Estamos distraídos conversando até o doutor Hensel praticamente nos expulsar da sala. Ele foi tão grosseiro, não entendi nada.
AnneSaio do hospital e vou ao supermercado comprar algumas coisas que estão faltando em casa. No ponto de ônibus, um sedan cinza passa por mim e buzina. Não faço ideia de quem se trata, então não me importo, pode ser só algum engraçadinho sem noção. O carro estaciona um pouco à frente e fico com medo, mas há algumas pessoas no ponto, qualquer coisa peço socorro. Fico de costas para não olhar para o carro, pedindo a Deus que meu ônibus chegue logo.— Anne. Assusto-me ao ouvir meu nome, e fico surpresa quando me viro.— João? João Carlos?— Vai dizer que eu estou tão diferente assim?— Nossa, você mudou muito.— Será que isso foi um elogio? — Ele sorri e o abraço.João estudou comigo
AnneNo caminho para o hospital, recebo uma mensagem do João dizendo que ele quer me ver, mas vou sair tarde e não sou boa companhia para ninguém hoje. Meu coração está ferido, a única família que tenho virou as costas para mim. Minha mãe, com sua atitude, deixou mais uma vez bem claro que não se importa comigo. Teve a capacidade de dizer que eu não poderia levar nada de dentro de casa, que, mesmo se o apartamento que vou morar não fosse mobiliado, eu não levaria.Minha vontade neste momento é de gritar com todo pulmão e colocar para fora tudo o que está ferindo o meu peito. Sonhei tanto em um dia me formar, melhorar de vida para dar uma condição melhor a minha família, e hoje me vejo assim, sozinha, sem o amor daquelas que têm o meu sangue.Quando entro no hospital, vou direto para a cantina. Preciso tomar um c
KlausQuando chego na rua, Anne está encostada em meu carro com a cabeça baixa. Coloco suas coisas na mala e me aproximo dela, pegando em seu rosto e levantando-o para mim. Ela está chorando e vê-la tão frágil parte meu coração. Abraço-a até que ela se acalme, seco suas lágrimas e abro a porta do carro. — Vamos, schön. Vamos sair daqui.Ela entra no carro e passa o caminho todo em silêncio. Assim que entramos em seu apartamento, coloco seus livros em cima do sofá e encosto a mala na parede.— Klaus.— Oi, schön, como você está?— Estou com vergonha de você ter presenciado tudo aquilo, me desculpe.— Shh, schön. Você não tem que se desculpar. Quis te acompanhar. E problemas a
AnneAo entrar no meu apartamento, respirei fundo e falei comigo mesma:vida nova, Anne. Chega de ficar mendigando amor da minha mãe e da minha irmã, elas me descartaram como eu fosse uma pessoa estranha e é assim que vou agir com elas daqui para frente. Sempre me virei sozinha, superando a cada dia um obstáculo. Chorei, sofri, mas não esmoreci, segui a diante mesmo quando tudo dizia não. Minhas orações eram meu combustível para seguir em frente, diante de Deus abria meu coração, e Ele sempre esteve comigo.Nas adversidades, mantinha fé na Sua palavra, que diz "o choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã". Em diversos momentos em nossa vida, parece que estamos em uma escuridão constante, que o sol não irá mais brilhar, como se não houvesse solução para os nossos problemas. A sensaçã
KlausHoje Anne trabalhou na parte da manhã e amanhã ela estará de folga. Sei que ela marcou encontro com aquele cara amanhã, então preciso me antecipar a ele. Hoje Anne vai entender que eu a quero, faço questão de deixar isso bem claro para ela. Com o celular em mãos, disco seu número.— Anne, é o Klaus, tudo bem?— Sim, chefe. Em que eu posso te ajudar? Aconteceu algum problema no hospital, estão precisando de mim?— Não, schön, está tudo bem. Estou te ligando para te avisar que estou saindo do hospital e indo para casa me arrumar. Às nove, passo para te pegar.Desligo o celular antes que ela invente alguma desculpa. Vou levá-la para jantar e serei direto com ela. Anne só tem uma opção, que é ser minha. Estou cansado de ficar em torno dessa mulher como um simples especta
KlausSaio da casa da Anne muito puto e com uma grande ereção.— PORRA!Soco o volante do carro repetidas vezes. Hoje vai ser impossível dormir depois de quase ter tomado a Anne por completo. Sua entrega a mim foi total, permitiu que eu desfrutasse dela com minha boca e minhas mãos que percorriam seu corpo. No exato momento que eu comecei a subir seu vestido e estava com a boca próxima ao seu seio, Amanda chegou.— Merda!Eu vou matar o filho da puta do Adam, que pelo jeito deixou Amanda escapar e empatar minha noite com a Anne. Amanda literalmente empatou minha foda. Por mais que meu pau esteja desesperado para estar dentro dela, não é apenas sexo, é muito mais. Eu a quero e a desejo de corpo e alma. Meu coração bate descompassado quando estou ao seu lado. Sinto coisas que, se relatar a alguém, vão me fazer ser visto como sens&
AnneAssim que entro no hospital e vou em direção à cantina, encontro Klaus. Olho-o um pouco envergonhada por causa de ontem e ele me dá um bom dia extremamente seco. Sinto raiva por me tratar tão friamente depois de tudo o que aconteceu entre nós. O que esse alemão está pensando?— Falou alguma coisa, doutora? — a enfermeira Carmem me pergunta assim que me sento na cadeira em frente à minha mesa. Ela está organizando meus pacientes.— Não é nada, Carmem, desculpe. Eu estava distraída. Bom dia, tudo bem?— Sim, doutora. Hoje sua agenda está cheia.— Que bom, Carmem. Estou realmente precisando ocupar minha mente, nada melhor do que trabalho para isso.Entre um intervalo e outro, lembro de como me entreguei ao Klaus, o jeito que ele me beijou e a forma como nossas línguas se movimentaram em perfei
JoãoTrabalho no escritório do meu pai e não tenho tido bons frutos. Formei-me em Direito não por gostar da profissão, mas por causa do dinheiro já que, como filho único, serei o sucessor no escritório da família. Minha intenção inicial era trabalhar para o tráfico, pois é o meio mais rápido de conseguir muito dinheiro, mas infelizmente o coroa não pega esses tipos de casos em seu grupo.A cada dia que passa fico mais puto. Ele me dá casos que não acrescentam em nada na minha carreira e no meu bolso, enquanto o restante do grupo, principalmente o meu primo Marcelo, ficam com casos rentáveis. A maioria dos clientes são megaempresários que rendem um bom dinheiro para o escritório.Minha chance de ganhar muito dinheiro surgiu quando a senhora Martins veio até nós. Meu pai revisou o caso