8. CIÚMES

Anne

No domingo, quando chego em casa, encontro um cenário de festa. O som alto e a casa cheia, os colegas da Bruna rindo e bebendo na sala enquanto minha mãe frita salgadinhos na cozinha.

— Boa tarde, doutora — Bruna fala assim que entro. Cumprimento todos, dou um beijo na minha mãe e vou para o meu quarto.

Fico no quarto tentando revisar as anotações que fiz sobre alguns procedimentos necessários para uma cirurgia no coração, mas está difícil de me concentrar por causa do barulho. Minha mãe entra no quarto e diz que, se eu quiser salgadinho, é para ir lá na sala pegar porque ela não vai ficar servindo ninguém. Agradeço sua “gentileza” e digo que não quero. Assim que ela sai, meu telefone toca e é Amanda.

— Já está com saudade, namorada? 

— Nem brinca, Anne. Como pode aqueles dois alemães gostosos para cacete acharem que nós duas, duas gostosas, somos namoradas? Se soubesse o quanto eu gosto de uma rola, ainda mais se for a de um certo alemão, ele não teria dito isso, nem pensado nessa possibilidade.

— Você não presta, Amanda.

— Você que é boba, não sabe o que está perdendo. Se eu fosse você, estrearia a minha boceta em grande estilo, daria feliz da vida para um alemão com cara de ator de Hollywood, gostoso para caralho.

— Quantas vezes que vou ter que te dizer que Klaus e eu somos apenas amigos e que ele não faz meu tipo?

— Não me leva a mal, Anne, mas aquele ali faz o tipo de qualquer um, seja do sexo feminino ou masculino.

Tenho que rir, essa menina é demais.

— Amanda, esquece este assunto. Não estou com pressa de ter a minha primeira vez e você sabe muito bem o motivo.

— Ok, não está mais aqui quem falou. Que barulho é esse na sua casa, está fazendo festa e nem me convidou?

— Bruna e sua turma. Estou tentando estudar um pouco, mas está difícil.

— Estou te ligando para ver se você não quer ir no nosso apartamento, separar o que a gente quer e o que vamos vender ou doar.

— Vou sim, Amanda. Só assim eu me afasto dessa bagunça. Ainda não conversei com a minha mãe sobre isso, amanhã quando eu chegar do hospital falo com ela. Vou levar algumas coisas e passar a noite no apartamento, porque pelo visto a bagunça aqui em casa vai render até tarde.

Fico tão magoada com a forma que minha mãe me trata, parece que está me fazendo um favor avisando que tem salgadinho. Trabalho desde os meus dezesseis anos para que tenhamos um mínimo de dignidade, sempre ajudei, financeiramente e nas tarefas de casa. Como adolescente, queria uma mochila nova ou uma roupa da moda, mas me privava de ter as coisas para colaborar com as contas de casa. Enquanto minhas amigas recebiam seus tickets e iam para o shopping lanchar, eu usava o meu no supermercado para comprar a cesta básica do mês.

Enquanto isso, minha mãe tirava do pouco que recebia para fazer as vontades da minha irmã. Nunca se preocupou em saber o que eu gostava ou queria, nunca me elogiou, nunca me agradeceu por minha dedicação e, mesmo assim, não estou me sentindo confortável em sair de casa. Sei que Amanda tem razão quando diz que tenho que pensar em mim.

Minha amiga me dá amor, carinho e a atenção que não recebo dentro de casa. Seus pais sempre me incentivaram nos estudos e sempre queriam saber como eu estava e se precisava de alguma coisa. Palavras e gestos que queria que viessem da minha família e que nunca vieram. No dia seguinte sem falta conversarei com a minha mãe, ela terá que entender que a situação vai mudar porque não será possível manter duas casas. Bruna vai ter que se movimentar para ajudar nas despesas e, minha mãe, parar de fazer suas vontades.

O que minha mãe recebe como empregada doméstica e o dinheiro que ganha fazendo unha seria o suficiente para manter a casa se não fossem as dívidas desnecessárias que minha irmã faz, deixando-a sempre sem dinheiro. Mas agora a Bruna terá que entender que, para gastar, primeiro é preciso ter o dinheiro, e, para ter dinheiro, tem que trabalhar.

Amanda e eu temos a mesma idade. Ela é filha única e, dede que a conheci, meus dias se tornaram bem melhores. Nunca me tratou diferente por eu morar em uma comunidade, ser negra e não usar roupas de marca como as dela. Algumas de suas amigas se afastaram por ela sempre estar comigo, outras sempre me trataram bem. Ela e o Márcio sempre foram amigos leais e que me amam do jeito que sou.

Sei que Márcio já foi a fim de mim e não me quis por eu ser negra, mas isso é passado. Não o culpo por pensar desse jeito porque ele foi criado por pais racistas. A vida toda foi implantada nele a diferença entre brancos e negros, colocando os brancos em superioridade, mas, mesmo assim, ele se tornou meu melhor amigo, contrariando seus pais que não o queriam em minha companhia.

Uma vez, em umas das festas de aniversário da Amanda, ouvi a mãe do Márcio conversando com a tia Irene, mãe da minha amiga, dizendo que era um absurdo ela confiar de me ter dentro da sua casa, que ela já havia alertado ao Márcio várias vezes para tomar cuidado comigo, porque, por causa de onde eu vim, eu não era confiável. A tia Irene saiu em minha defesa, dizendo que confiava mais em mim do que em muita gente engravatada e metida besta, que minha condição de vida não definia meu caráter, e elogiou Márcio, dizendo que ele era um bom rapaz e que felizmente não era como os pais.

Depois de ouvir essa conversa, fiquei em um misto de felicidade e tristeza ao mesmo tempo. Tristeza por haver pessoas que nos julgam por nossa aparência e condições de vida; felicidade por existirem outras como a tia Irene. Ela poderia ter ficado na dela para não se indispor com sua amiga metida à besta, mas, ao invés disso, saiu em minha defesa, agindo como uma mãe agiria para defender seu filho.

Passo a noite no apartamento e chego mais descansada no trabalho. O condomínio fica a quinze minutos do hospital, o que facilita bastante, já que normalmente levo uma hora para chegar no trabalho. Encontrar o Klaus é meio estranho, mas trato-o normalmente porque, apesar de termos saído juntos, ele ainda é meu chefe e aqui, meu local de trabalho. As doutoras, enfermeiras e todo corpo feminino do hospital deliram com os alemães e eu nunca me importei, achava até engraçado. Mas hoje em especial esse frenesi todo que Hensel causa nas mulheres está me incomodando, o que me assusta porque não sei o motivo por estar me sentindo assim.

Amanda e eu vamos almoçar no shopping e Márcio não vai conosco porque precisa ir ao banco.

— Estou muito puta com a doutora Lilian.

— O que ela fez para te deixar assim, Amanda?

— Ela estava falando um monte de merda.

— Desenvolve o assunto, Amanda.

— Na hora da nossa pausa, ela disse que não vê a hora de ir para a cama com o doutor Hoff e que tem certeza de que ele está a fim dela. — Eu começo a rir. — Posso saber o motivo da graça, Anne?

— Desculpa, amiga. É que eu nunca te vi com ciúmes.

— Quer saber? Estou mesmo. Desde que coloquei os olhos nele, eu o desejo. Se fosse outro cara eu já teria partido para cima. Você sabe muito bem que, quando eu quero, parto para o ataque. Mas com ele não consigo ser assim, por mais que o deseje, não quero apenas uma noite. Quero muito mais.

— Amanda, você está apaixonada pelo doutor. Não sei te dizer se isso é bom ou ruim.

— Eu também não, Anne. Sempre fui porra louca, nunca fui de me apegar a ninguém, e agora me vejo com os quatro pneus arriados pelo meu chefe. — Ela esconde seu rosto na mesa.

— Amanda, posso te confessar uma coisa?

— Fala logo, Anne.

— Hoje o assédio da mulherada em cima do doutor Klaus me incomodou. — Amanda levanta o rosto e me olha com um sorriso safado de quem está pensando besteira.

— Pelo visto não só eu estou de quatro por um alemão.

— Não confunda as coisas, apenas fiquei incomodada, só isso. Não sinto nada por ele.

— Tá bom, Anne. Vou fingir que eu acredito.

Terminamos nossa refeição e voltamos para o hospital. No final do expediente, temos uma reunião, depois da qual todos vão embora, ficando na sala apenas os doutores, Amanda, eu e o Márcio. Estamos distraídos conversando até o doutor Hensel praticamente nos expulsar da sala. Ele foi tão grosseiro, não entendi nada. 

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo