Berlim, Alemanha
Acordo sentindo um braço magro sobre meu peito, olho para o lado e vejo uma loira nua. Não consigo enxergar o seu rosto, coberto por seus fios dourados. Minha cabeça está pesada e dói. Estou arruinado, meu corpo inteiro está dolorido. Olho ao redor e percebo que estou em um quarto que com certeza não é de hotel, porque tem um pôster do ator Chris Hemsworth colado na parede. A maioria das minhas colegas de trabalho e algumas amigas dizem que me pareço com esse ator. O pôster que tem mais de um metro de comprimento e em cima da cômoda rosa. Rosa? Mas que porra, será que eu transei com uma criança?
Aos poucos as lembranças vão surgindo. Fui jantar com meu pai e meu irmão, e quando disse que amanhã irei para o Brasil, acabamos nos desentendendo. Meu pai como sempre foi contra, dizendo que eu adoro ficar no meio de gentinha, de país pobre, e que ele não sabe como ainda não peguei uma grave doença com essa mania de viajar por esses lugares. Se ele soubesse qual a minha verdadeira intenção em terras brasileiras, iria surtar. Esse convite do Adam para fazer parte de sua equipe para orientar os novos médicos veio em boa hora, não aguento mais ficar convivendo com a arrogância do meu pai, Anton.
Ele nunca entendeu por que eu sou fascinado por medicina. Diferente do meu pai, não vejo como uma profissão rentável, mesmo que eu ganhe muito bem, principalmente por realizar cirurgias reparadoras. Ganhei muito dinheiro com celebridades que me procuram para reparar cirurgias plásticas malsucedidas. Tenho orgulho de ser reconhecido profissionalmente, com apenas trinta anos cheguei a um nível profissional que muitos com mais anos de carreira do que eu, ainda não chegaram. Vivo dentro do hospital desde minha adolescência, estudei e me dediquei para não ser apenas mais um, e sim o melhor.
Adam e eu formávamos uma boa dupla, ele era meu companheiro nos trabalhos voluntários. Depois que voltamos do Haiti, ele foi para o Brasil, se encantou e não voltou mais. Minha vontade foi de ir com ele, mas eu tinha uma agenda de mais de um ano para cumprir. Amanhã pegarei o primeiro voo para o Brasil e nada vai me impedir.
Meu pai, mais uma vez, ameaçou me deserdar, o que deixa Joseph feliz. Meu irmão só pensa em dinheiro, já fez até planos para quando nosso pai morrer. O senhor Anton não deixa fazer mudanças no hospital, tentei várias vezes implantar coisas para o melhor funcionamento do lugar, bem como projetos sociais, mas Anton vetou todas as sugestões. Ele faz o mesmo com Joseph, sendo que meu irmão quer mudanças que visam uma forma dele ganhar mais dinheiro.
Apesar de amar o dia-a-dia no hospital, o que gosto mesmo é do trabalho em campo. Gosto de ajudar pessoas, foi por isso que quis ser médico, para ver a alegria no rosto de quem precisa. Depois de uma calorosa discussão com meu pai, fui para meu antigo quarto em sua casa. Sobre o criado-mudo, encontrei um porta-retratos com uma foto minha e da minha mãe. Peguei-o em minhas mãos, fiquei observando e, quando me dei conta, as lágrimas molhavam meu rosto. Sinto muito a sua falta e algo dentro de mim se quebra quando as lembranças incertas do dia da sua morte vagueiam em meus pensamentos. Ela era doce, uma mulher capaz de tirar a roupa do próprio corpo para ajudar o próximo. Sempre senti muito orgulho de ser filho de uma ginecologista que, com amor, trouxe muitas crianças ao mundo.
Seu corpo no chão da sala, inerte e com sinais de agressão, se mistura com outras lembranças que me fazem mal. Apesar de não saber ao certo do que se trata, aquele fatídico dia em que sua vida foi tirada, de mim e de todos que a amavam, traz coisas ruins que tenho guardadas dentro de mim. É como se uma porta fosse aberta, e, quando olho para dentro dela, só vejo escuridão. Algo me incomoda nesta neblina que oculta o verdadeiro motivo desse sentimento ruim dentro de mim.
Saí atormentado da casa do meu pai e fui afogar as mágoas em um bar. Não costumo beber, mas eu precisava tirar aquela angústia do peito. Meu pai mais uma vez me humilhou com suas duras palavras, e minha mãe não está aqui para ser meu refúgio. Levanto da cama e começo a catar minhas roupas espalhadas pelo quarto. Mas que merda? Essa loira me abordou no balcão do bar! A lembrança vem como um flash.
— Você é muito gostoso. O que eu preciso fazer para transar de novo com você, Chris?
Ela me chamou de Chris? Essa maluca está pensando que sou o tal do ator do seu pôster? Que porra que eu fiz? Nunca gostei de mulher atirada, mas, também, pelo o que eu lembro não conseguia nem ficar de pé direito noite passada. Será que eu usei camisinha?
— Puta que pariu.
Começo a procurar pelo quarto e a encontro jogada no chão, ao lado da cama, na direção em que a loira está deitada. Menos mal, mesmo bêbado fui responsável. Lembro que a loira safada pegou no meu pau, que ficou animado, e me trouxe a esse lugar que parece ser sua casa. Visto minha roupa e espero um pouco para ver se ela acorda, não vou ser indelicado de ir embora sem falar com a mulher. Meu irmão diz que isso é coisa de mulherzinha, eu chamo de respeito.
Essa mulher deve ser maluca, trouxe um desconhecido para sua casa. Se eu fosse um bandido, psicopata ou estuprador? Essa porra pensou só com a boceta ou ela realmente achou que eu fosse a porra desse ator?
— Bom dia, gato.
— Bom dia. Estou de saída, estava esperando você acordar.
— Além de gato, é gentil — diz, sorrindo um pouco sem jeito.
— Sabe me dizer como viemos parar aqui? Eu quero saber do meu carro.
— Está estacionado em frente à minha porta. Estamos na minha casa, você não tinha condições de dirigir. Eu também não, mas estava melhor do que você. — Ela sorri. — Então eu vim dirigindo. A chave está na mesinha perto da porta.
— Obrigado.
— Obrigada você, pelos orgasmos. Você é muito quente, queria repetir. Se bêbado me fez gozar duas vezes, fico imaginando sóbrio.
— Sinto muito, mas eu não costumo agir assim, beber além da conta e transar com uma mulher que eu nem sei o nome. De qualquer forma, amanhã estarei viajando e não sei se volto. — Agradeço novamente e dou um beijo na testa dela antes de sair.
Alguma coisa me diz que minha vida nunca mais será a mesma depois que eu colocar meus pés em solo brasileiro.
AnneEstou muito ansiosa. Hoje será meu primeiro dia como doutora Martins, nunca meu sobrenome soou tão bem. Cheguei bem cedo no hospital com medo de me atrasar e até agora não chegou mais ninguém, então estou aproveitando para tomar um café na cantina. Amanda e Márcio devem estar chegando. Nós três tivemos muita sorte de conseguirmos vaga nesse hospital, que tem uma rede em todo o Rio, além de uma excelente estrutura.— Bom dia, Anne. Ansiosa?— Muito, Amanda. Não via a hora de vocês chegarem. Bom dia, Márcio — cumprimento e ele me dá um beijo estalado na bochecha.— Tenho uma notícia fresquinha para vocês sobre os nossos chefes.— Amanda, você acabou de chegar e já tem novidade?Ela sorri, fazendo cara de sapeca.— Ontem me ligaram dizendo que ficou faltando um documento
Anne— Fi...quem a vontade — Amanda gagueja.É a primeira vez que a vejo sem graça na presença de algum homem. Eu não estou diferente dela. Doutor Hoff senta ao meu lado e o doutor Hensel, com seu semblante sério, ao lado da Amanda. Não sei se é melhor ou pior, pois Hensel não tira os olhos de mim, deixando-me sem saber como agir.— E aí, meninas. Posso saber o motivo de tanta felicidade? O que você me diz, Anne, ou é segredo?— Não é nada demais, doutor Hoff.— Não estamos no hospital, doutora. Pode me chamar de Adam.— Como eu estava dizendo, Adam — sorrio para ele —, estou feliz porque eu e Amanda vamos morar juntas. Eu amo essa garota, ela é mais do que uma amiga para mim.Adam conversa comigo, mas sua atenção está na Amanda e eu nunca tinha visto
KlausHoje acordei com a missão de procurar um lugar para morar. Se dependesse do Adam, ficaria com ele em seu apartamento, onde estou hospedado, mas não quero tirar a privacidade do meu amigo, além de querer a minha. Marquei com o corretor às dez horas para ver umas coberturas, aqui mesmo na Barra para facilitar minha ida ao hospital.Desde o primeiro dia que comecei a auxiliar os novos doutores, estou fascinado pela doutora Martins. Aquela negra mexeu comigo de uma forma que me assusta. Não consigo parar de olhar para ela, sua beleza e seu jeito simples de ser me fascinam. Existe algo em seu olhar que me traz familiaridade, como se já o tivesse visto antes. O meu amigo não está muito diferente de mim, completamente fascinado pela Amanda. Nós dois fomos pegos de jeito por essas mulheres, tivemos até que deixar de trabalhar diretamente com elas. Adam ficou com Anne em sua equipe e eu, c
KlausAmanda propõe que vamos até a sua casa para que elas troquem de roupa e, no curto caminho, tenho o prazer de ter a companhia de Anne, que vai no meu carro. No início, ficamos em silêncio e a cada sinal fechado aproveito para olhar para ela, até que Anne quebra o silêncio, perguntando sobre meu trabalho voluntário. Fico à vontade, pois falar da minha profissão sempre foi muito prazeroso para mim. Adam e eu ficamos esperando as meninas na sala enquanto elas se arrumam.— E aí, cara. Como foi com a Anne?— Nós conversamos um pouco sobre trabalho voluntário. E você, como foi com a Amanda?— Perguntei a ela as coisas que ela gosta de fazer e foi basicamente sobre isso que conversamos.— Cara, a Amanda está na sua, percebo pelo jeito que ela te olha. Mas a Anne não mostra nenhum interesse por mim.&mdash
AnneNo domingo, quando chego em casa, encontro um cenário de festa. O som alto e a casa cheia, os colegas da Bruna rindo e bebendo na sala enquanto minha mãe frita salgadinhos na cozinha.— Boa tarde, doutora — Bruna fala assim que entro. Cumprimento todos, dou um beijo na minha mãe e vou para o meu quarto.Fico no quarto tentando revisar as anotações que fiz sobre alguns procedimentos necessários para uma cirurgia no coração, mas está difícil de me concentrar por causa do barulho. Minha mãe entra no quarto e diz que, se eu quiser salgadinho, é para ir lá na sala pegar porque ela não vai ficar servindo ninguém. Agradeço sua “gentileza” e digo que não quero. Assim que ela sai, meu telefone toca e é Amanda.— Já está com saudade, namorada?— Nem brinca, Ann
AnneSaio do hospital e vou ao supermercado comprar algumas coisas que estão faltando em casa. No ponto de ônibus, um sedan cinza passa por mim e buzina. Não faço ideia de quem se trata, então não me importo, pode ser só algum engraçadinho sem noção. O carro estaciona um pouco à frente e fico com medo, mas há algumas pessoas no ponto, qualquer coisa peço socorro. Fico de costas para não olhar para o carro, pedindo a Deus que meu ônibus chegue logo.— Anne. Assusto-me ao ouvir meu nome, e fico surpresa quando me viro.— João? João Carlos?— Vai dizer que eu estou tão diferente assim?— Nossa, você mudou muito.— Será que isso foi um elogio? — Ele sorri e o abraço.João estudou comigo
AnneNo caminho para o hospital, recebo uma mensagem do João dizendo que ele quer me ver, mas vou sair tarde e não sou boa companhia para ninguém hoje. Meu coração está ferido, a única família que tenho virou as costas para mim. Minha mãe, com sua atitude, deixou mais uma vez bem claro que não se importa comigo. Teve a capacidade de dizer que eu não poderia levar nada de dentro de casa, que, mesmo se o apartamento que vou morar não fosse mobiliado, eu não levaria.Minha vontade neste momento é de gritar com todo pulmão e colocar para fora tudo o que está ferindo o meu peito. Sonhei tanto em um dia me formar, melhorar de vida para dar uma condição melhor a minha família, e hoje me vejo assim, sozinha, sem o amor daquelas que têm o meu sangue.Quando entro no hospital, vou direto para a cantina. Preciso tomar um c
KlausQuando chego na rua, Anne está encostada em meu carro com a cabeça baixa. Coloco suas coisas na mala e me aproximo dela, pegando em seu rosto e levantando-o para mim. Ela está chorando e vê-la tão frágil parte meu coração. Abraço-a até que ela se acalme, seco suas lágrimas e abro a porta do carro. — Vamos, schön. Vamos sair daqui.Ela entra no carro e passa o caminho todo em silêncio. Assim que entramos em seu apartamento, coloco seus livros em cima do sofá e encosto a mala na parede.— Klaus.— Oi, schön, como você está?— Estou com vergonha de você ter presenciado tudo aquilo, me desculpe.— Shh, schön. Você não tem que se desculpar. Quis te acompanhar. E problemas a