Anne
Estou muito ansiosa. Hoje será meu primeiro dia como doutora Martins, nunca meu sobrenome soou tão bem. Cheguei bem cedo no hospital com medo de me atrasar e até agora não chegou mais ninguém, então estou aproveitando para tomar um café na cantina. Amanda e Márcio devem estar chegando. Nós três tivemos muita sorte de conseguirmos vaga nesse hospital, que tem uma rede em todo o Rio, além de uma excelente estrutura.
— Bom dia, Anne. Ansiosa?
— Muito, Amanda. Não via a hora de vocês chegarem. Bom dia, Márcio — cumprimento e ele me dá um beijo estalado na bochecha.
— Tenho uma notícia fresquinha para vocês sobre os nossos chefes.
— Amanda, você acabou de chegar e já tem novidade?
Ela sorri, fazendo cara de sapeca.
— Ontem me ligaram dizendo que ficou faltando um documento e que eu teria que entregar ou não conseguiria começar hoje. Fiquei desesperada e vim ontem mesmo depois do almoço aqui no hospital resolver isso. Antes de ir embora, aproveitei para saber sobre nossos chefes. Perguntei a uma enfermeira, que me disse que quem comanda é o doutor Adam Hoff, e que virá um médico da Alemanha para trabalhar com ele. Esse médico é o bam bam bam em cirurgias reparadoras.
— Tomara que eles não sejam insuportáveis como o doutor Gabriel, aquele era um pé no saco.
— Que assim seja, Márcio. — Junto minhas mãos como fizesse uma oração.
— Sabe o que é perfeito? — Amanda não espera a resposta e emenda. — Segundo a enfermeira, o doutor Hoff é uma delícia.
— Amanda, pelo amor de Deus. Não vai dar em cima do doutor.
Ela começa a rir e Márcio a acompanha.
— Eu? Imagina. Mas se por acaso ele não resistir os meus encantos, posso fazer uma caridade.
— Você não presta
— Agora que você viu isso, Márcio? Os lugares ocultos da faculdade sabem o quanto Amanda não vale nada.
— Eu não tenho culpa nenhuma se algumas salas não eram usadas, apenas dei um propósito para elas.
Márcio e eu rimos com a cara de pau dela.
— E o outro doutor, o tal alemão?
— O que tem ele, Márcio?
— Será que ele é um coroa rabugento? Para ele ser um cara com fama em cirurgias, deve ter mais de cinquenta anos.
— Provavelmente, mas se o doutor Adam for mesmo um gato, irá compensar.
Depois de jogar conversa fora, vamos para o local combinado para nos reunimos com os nossos colegas de trabalho, dando início ao nosso primeiro dia. Ainda falta meia hora para o horário combinado e aos poucos os nossos colegas vão chegando. No total, somos vinte residentes, e todos conversam ao mesmo tempo. É notável a expectativa no rosto de cada um.
— Bom dia. — Dois doutores entram na sala, fazendo com que todos fiquem em silêncio
— Meu Deus, Anne! — Amanda me cutuca e sussurra. — Anne do céu, meu coração não vai aguentar. Não tem como aprender alguma coisa com esses dois deuses na nossa frente.
— Amanda, pelo amor de Deus, sossega — falo de forma quase inaudível.
— Eu acho que estou precisando de um cardiologista.
— Você é uma cardiologista.
— Você se deu conta que o Jason Lewis e o Chris Hemsworth estão na nossa frente? — Fico calada porque se dou trela a ela, vão acabar chamando nossa atenção pelo falatório.
Os doutores realmente são muito bonitos, não sei se parecem mesmo com os atores que ela falou, pois de nome não sei de quem se trata. As outras meninas estão como a Amanda, babando em cima deles. Ouço uma dizer que gostou mais do Thor e só aí que eu associo o doutor Hensel ao ator que Amanda falou. De fato, parece muito com ele. Eles conversaram entre si antes de distribuírem um formulário para que possamos fazer anotações. Ambos se apresentam e eu fico surpresa do médico alemão recém-chegado ter apenas trinta anos e ser conhecido mundialmente por fazer cirurgias reparadoras.
Os dois são novos e bem-sucedidos em suas áreas, duas pessoas em quem com certeza irei me espelhar. Percebo alguns olhares do doutor Hensel em minha direção, mas deve ser coisa da minha cabeça porque o nosso grupo tem oito mulheres e cada uma é mais bonita que a outra. Não que eu seja feia, mas elas não têm um cabelo rebelde como o meu, que eu fiz questão de prender em um coque para não assustar os pacientes.
Somos divididos em dois grupos, Amanda e Márcio seguem com o doutor Hensel e eu, com o doutor Hoff. Achei bom não ir no grupo do doutor Hensel porque seus olhos a todo momento pairam sobre mim e isso está me incomodando. O doutor Hoff nos leva em um tour pelo hospital e diz que depois do almoço nos encaminhará a alguns pacientes cardíacos para que possamos avaliá-los. O tour pelo hospital é cansativo, o lugar é muito grande e tem cinco andares com corredores bem extensos.
Durante o tour, ele nos conta o porquê de ter escolhido medicina. Fala sobre sua faculdade, sobre como veio parar no Brasil e conta que ele e o doutor Hensel estudaram juntos e são amigos há muitos anos. Faço amizade com Lucas e Julia, que são os únicos do meu grupo que me tratam como igual. Pausamos para o almoço e eu vou encontrar Amanda e Márcio, levando comigo os meus mais novos colegas e, quem sabe, futuros amigos. Apresentações são feitas e temos um almoço agradável. A cantina do hospital está cheia e apenas os novatos fazem sua refeição ali, provavelmente os doutores vão almoçar fora.
Durante toda semana, a minha equipe é a mesma, a do doutor Hoff. Ele é um excelente profissional, tenho aprendido muito com ele e sinto a cada dia que estou na profissão certa, pois amo o que faço. Todas as vezes que encontro o doutor Hensel, me sinto desconfortável com a forma que ele me olha. Seus olhos parecem enxergar através de mim, como se vissem mais do que minha aparência. Seu olhar é intenso, deixando-me muitas vezes desconcertada. Ele é um homem muito atraente e sexy, mas não faz o meu tipo, nunca me sentia atraída por branquelo. Não é preconceito, e sim questão de gosto. Mas tenho que admitir que ele é gostoso para cacete.
Sábado amanheço com o corpo todo moído. Passei quase a noite toda em claro preocupada com a Bruna, houve um intenso tiroteio e para variar ela não estava em casa. Minha mãe ficou desesperada. Quando conseguimos contato com ela, já era três e meia da manhã. Bruna estava saindo de um baile em outra comunidade e pedi a ela que arrumasse algum lugar para ficar até amanhecer, já que seria muito perigoso se arriscar em meio a tantos tiros. Estamos vivendo uma verdadeira guerra. O fato de minha irmã estar frequentando baile em outra comunidade me deixa ainda mais preocupada, não com as pessoas de bem que vão a esses lugares para se divertirem, e sim com as pessoas que comandam esses locais. Eles vivem em uma disputa constante e podem cismar com pessoas que não sejam daquele local, pode ser perigoso. Por mais que eu tente não me preocupar com ela, não consigo.
À tarde, vou ao cinema do Barra Shopping com a Amanda, damos uma volta no shopping e ela o tempo todo só fala nos doutores gostosões. Amanda conta que a doutora Andrea se insinuou para o doutor Hensel e ele deu um fora bem discreto nela. Gosto de saber disso. Ela diz que está caidinha pelo doutor Hoff e que se fizesse parte da equipe dele não iria prestar atenção em nada. Depois do filme, vamos fazer um lanche na praça de alimentação.
— Anne, eu quero te fazer uma proposta.
— Você não querendo transar comigo, aceito qualquer coisa.
Ela sorri e joga o guardanapo em mim.
— Você sabe muito bem que gosto de rola.
Amanda fala tão alto que as três mulheres que estão na mesa ao lado começam a rir.
— Você é tão sem filtro, Amanda. Fala baixo!
— Ah, para de bobeira, Anne. Se elas não forem lésbicas, devem adorar um pau como eu.
— Pelo amor de Deus, Amanda. Fala logo sua proposta.
Ela não para de rir da minha cara, sua diversão favorita é me deixar constrangida.
— Brincadeiras à parte, vou alugar um apartamento e queria saber se você quer dividir comigo.
— Você está falando sério? Hoje mesmo estava pensando em procurar alguma coisa para mim, não aguento mais passar noites em claro preocupada com a Bruna. Outro dia sugeri minha mãe para que vendêssemos nosso apartamento para dar de entrada em uma casa, e eu pagaria o financiamento, mas ela não aceitou. Disse que nunca venderia o canto dela para viver às minhas custas.
— Sua mãe fala como se não dependesse de você, mas deixa elas para lá. Já que elas não querem melhorar de vida, faça isso por você.
— Você está certa.
— E aí, aceita ou não?
— Lógico que aceito. Você é mais do que minha amiga, eu a amo como fosse minha irmã.
— Ai, que bonitinho. Vou chorar. — Ela faz beicinho.
— Sua idiota. — Faço careta para ela.
— O Márcio queria morar com a gente, o que você acha?
— Por mais que eu goste dele, não acho uma boa ideia, porque vai tirar a nossa privacidade. E seus pais, estão bem com isso?
— Sim. Disseram que vão nos ajudar, eles têm uma amiga que tem um apartamento de três quartos vazio em um condomínio próximo ao nosso.
— Mas Amanda, o aluguel deve ser caríssimo. Fora o condomínio. O nosso salário vai todo para o imóvel, e ainda tem os móveis.
— Fique tranquila, nega. O casal mora há anos em Portugal, o apartamento era da filha deles. Depois que ela morreu, vítima de um assalto, eles saíram do país e nunca mais colocaram os pés lá.
— Sinto muito, imagino o sofrimento deles.
— Então, minha mãe disse que o apartamento não é grande, mas está todo mobiliado, tem duas suítes e o terceiro quarto é uma biblioteca.
— Nossa, amei. Só nos resta saber o valor do aluguel e se tem condomínio atrasado.
— Minha mãe conversou com a proprietária. O nome dela é Carla, elas são amigas de infância. O condomínio está em dia e que nós podemos morar lá sem pagar aluguel, só o que precisamos fazer é assumir o condomínio.
— Não acredito!
— Verdade. Eles não querem voltar para o Brasil e não querem se desfazer do imóvel. O condomínio passa a ser nossa responsabilidade
— Quando a gente se muda? — pergunto toda eufórica.
— Você nem quer saber aonde fica?
— Você disse que fica perto da sua casa, para mim está ótimo. Morar na Barra, amor. Nem nos meus melhores sonhos. Para quem mora na comunidade da Faísca já é um grande passo.
— O que vai ser ótimo é que tem uma estação de BRT em frente, vai agilizar nosso tempo e dinheiro.
— Não poderia ser melhor! Estou muito feliz, Amanda, obrigada.
— Também podemos compartilhar dessa felicidade com vocês?
Quando olho para cima, meu coração gela. São eles, doutor Hensel e doutor Hoff.
Anne— Fi...quem a vontade — Amanda gagueja.É a primeira vez que a vejo sem graça na presença de algum homem. Eu não estou diferente dela. Doutor Hoff senta ao meu lado e o doutor Hensel, com seu semblante sério, ao lado da Amanda. Não sei se é melhor ou pior, pois Hensel não tira os olhos de mim, deixando-me sem saber como agir.— E aí, meninas. Posso saber o motivo de tanta felicidade? O que você me diz, Anne, ou é segredo?— Não é nada demais, doutor Hoff.— Não estamos no hospital, doutora. Pode me chamar de Adam.— Como eu estava dizendo, Adam — sorrio para ele —, estou feliz porque eu e Amanda vamos morar juntas. Eu amo essa garota, ela é mais do que uma amiga para mim.Adam conversa comigo, mas sua atenção está na Amanda e eu nunca tinha visto
KlausHoje acordei com a missão de procurar um lugar para morar. Se dependesse do Adam, ficaria com ele em seu apartamento, onde estou hospedado, mas não quero tirar a privacidade do meu amigo, além de querer a minha. Marquei com o corretor às dez horas para ver umas coberturas, aqui mesmo na Barra para facilitar minha ida ao hospital.Desde o primeiro dia que comecei a auxiliar os novos doutores, estou fascinado pela doutora Martins. Aquela negra mexeu comigo de uma forma que me assusta. Não consigo parar de olhar para ela, sua beleza e seu jeito simples de ser me fascinam. Existe algo em seu olhar que me traz familiaridade, como se já o tivesse visto antes. O meu amigo não está muito diferente de mim, completamente fascinado pela Amanda. Nós dois fomos pegos de jeito por essas mulheres, tivemos até que deixar de trabalhar diretamente com elas. Adam ficou com Anne em sua equipe e eu, c
KlausAmanda propõe que vamos até a sua casa para que elas troquem de roupa e, no curto caminho, tenho o prazer de ter a companhia de Anne, que vai no meu carro. No início, ficamos em silêncio e a cada sinal fechado aproveito para olhar para ela, até que Anne quebra o silêncio, perguntando sobre meu trabalho voluntário. Fico à vontade, pois falar da minha profissão sempre foi muito prazeroso para mim. Adam e eu ficamos esperando as meninas na sala enquanto elas se arrumam.— E aí, cara. Como foi com a Anne?— Nós conversamos um pouco sobre trabalho voluntário. E você, como foi com a Amanda?— Perguntei a ela as coisas que ela gosta de fazer e foi basicamente sobre isso que conversamos.— Cara, a Amanda está na sua, percebo pelo jeito que ela te olha. Mas a Anne não mostra nenhum interesse por mim.&mdash
AnneNo domingo, quando chego em casa, encontro um cenário de festa. O som alto e a casa cheia, os colegas da Bruna rindo e bebendo na sala enquanto minha mãe frita salgadinhos na cozinha.— Boa tarde, doutora — Bruna fala assim que entro. Cumprimento todos, dou um beijo na minha mãe e vou para o meu quarto.Fico no quarto tentando revisar as anotações que fiz sobre alguns procedimentos necessários para uma cirurgia no coração, mas está difícil de me concentrar por causa do barulho. Minha mãe entra no quarto e diz que, se eu quiser salgadinho, é para ir lá na sala pegar porque ela não vai ficar servindo ninguém. Agradeço sua “gentileza” e digo que não quero. Assim que ela sai, meu telefone toca e é Amanda.— Já está com saudade, namorada?— Nem brinca, Ann
AnneSaio do hospital e vou ao supermercado comprar algumas coisas que estão faltando em casa. No ponto de ônibus, um sedan cinza passa por mim e buzina. Não faço ideia de quem se trata, então não me importo, pode ser só algum engraçadinho sem noção. O carro estaciona um pouco à frente e fico com medo, mas há algumas pessoas no ponto, qualquer coisa peço socorro. Fico de costas para não olhar para o carro, pedindo a Deus que meu ônibus chegue logo.— Anne. Assusto-me ao ouvir meu nome, e fico surpresa quando me viro.— João? João Carlos?— Vai dizer que eu estou tão diferente assim?— Nossa, você mudou muito.— Será que isso foi um elogio? — Ele sorri e o abraço.João estudou comigo
AnneNo caminho para o hospital, recebo uma mensagem do João dizendo que ele quer me ver, mas vou sair tarde e não sou boa companhia para ninguém hoje. Meu coração está ferido, a única família que tenho virou as costas para mim. Minha mãe, com sua atitude, deixou mais uma vez bem claro que não se importa comigo. Teve a capacidade de dizer que eu não poderia levar nada de dentro de casa, que, mesmo se o apartamento que vou morar não fosse mobiliado, eu não levaria.Minha vontade neste momento é de gritar com todo pulmão e colocar para fora tudo o que está ferindo o meu peito. Sonhei tanto em um dia me formar, melhorar de vida para dar uma condição melhor a minha família, e hoje me vejo assim, sozinha, sem o amor daquelas que têm o meu sangue.Quando entro no hospital, vou direto para a cantina. Preciso tomar um c
KlausQuando chego na rua, Anne está encostada em meu carro com a cabeça baixa. Coloco suas coisas na mala e me aproximo dela, pegando em seu rosto e levantando-o para mim. Ela está chorando e vê-la tão frágil parte meu coração. Abraço-a até que ela se acalme, seco suas lágrimas e abro a porta do carro. — Vamos, schön. Vamos sair daqui.Ela entra no carro e passa o caminho todo em silêncio. Assim que entramos em seu apartamento, coloco seus livros em cima do sofá e encosto a mala na parede.— Klaus.— Oi, schön, como você está?— Estou com vergonha de você ter presenciado tudo aquilo, me desculpe.— Shh, schön. Você não tem que se desculpar. Quis te acompanhar. E problemas a
AnneAo entrar no meu apartamento, respirei fundo e falei comigo mesma:vida nova, Anne. Chega de ficar mendigando amor da minha mãe e da minha irmã, elas me descartaram como eu fosse uma pessoa estranha e é assim que vou agir com elas daqui para frente. Sempre me virei sozinha, superando a cada dia um obstáculo. Chorei, sofri, mas não esmoreci, segui a diante mesmo quando tudo dizia não. Minhas orações eram meu combustível para seguir em frente, diante de Deus abria meu coração, e Ele sempre esteve comigo.Nas adversidades, mantinha fé na Sua palavra, que diz "o choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã". Em diversos momentos em nossa vida, parece que estamos em uma escuridão constante, que o sol não irá mais brilhar, como se não houvesse solução para os nossos problemas. A sensaçã