Anne
Tudo de errado que um pai poderia fazer, o meu fez. Fui uma criança que, por ser criada no meio de adultos, enxergava as coisas de uma forma diferente de das outras que tinham a minha idade. Meu mundo não era cheio de fantasias como o dos meus amiguinhos e da minha irmã, a realidade na minha frente fazia com que eu visse a vida como ela realmente era.
Sou de uma família humilde que reside em um conjunto habitacional na cidade do Rio de Janeiro. O conjunto de prédios onde moro e fui criada é um daqueles que foram construídos para desocupar alguma moradia imprópria, como lugares invadidos ou favelas que surgiram em locais que afetam o poder público ou os olhos de quem tem algum poder aquisitivo. A minha comunidade se chama Faísca e muitas vezes faz jus ao seu nome, porque basta apenas uma faísca para que tudo voe pelos ares. Aqui, a violência e bailes funk regados a drogas e tiros são o carro chefe.
No final do conjunto tem uma favela que recebeu o mesmo nome; os foras da lei que comandam este lugar fazem com que as pessoas de bem sofram com a imposição da presença deles e com o fato de acharem que têm o direito de m****r em nossas vidas. Infelizmente, nada podemos fazer, porque nessa selva vencem os mais fortes. As famílias que, em um ato de coragem, negaram algo aos "donos" da comunidade tiveram suas vidas ceifadas ou foram expulsas sem ter direito de levar nada.
Conheço alguns meninos do tráfico, muitos têm a minha idade e infelizmente optaram por essa vida. Quando esbarro com algum deles, os, cumprimento sem muita intimidade. Nunca deixei de falar com nenhum deles porque, mesmo que tenham uma vida que não seja correta, são pessoas que foram criadas comigo. Fora que a gente nunca sabe o dia de amanhã.
Meu nome é Anne, sou filha de Lúcia e Francisco Martins e tenho uma irmã chamada Bruna, que é completamente diferente de mim. Aliás, muitas vezes eu acho que nasci na família errada. O meu refúgio sempre foi a casa da minha avó paterna. Ela era uma mulher que me amava e me dava muito carinho, algo que eu não encontrava na minha casa. Quando ela partiu, aos meus treze anos, me senti perdida e sozinha. Nunca cheguei a conhecer meu avô paterno e não tinha contato com meus avós maternos, porque eles residiam na Bahia e a minha mãe nunca foi aquela filha de ligar para os pais para saber como eles estavam, nunca teve interesse de aproximar seus filhos dos avós. Ela saiu de casa aos dezoito anos para vir morar no Rio e nunca mais voltou nem para visitá-los.
Meu pai, o que falar dele? Era um homem que cativava as pessoas. Sabe aquele cara, gente boa que todos gostam? Então, esse era o Francisco, conhecido como Chico. Era bem quisto na comunidade, mas as pessoas não sabiam o péssimo pai que era, sendo pior ainda como esposo. Minha mãe sempre foi uma mulher seca, nunca foi carinhosa comigo, mas eu entendia. Ela teve uma criação dura por causa do meu avô, que era militar e tratava os filhos como soldados, e pela péssima vida que ela levava.
Todos os dias, ela saía para fazer faxina e unha das pessoas para colocar comida dentro de casa, porque, apesar do seu marido ter um ótimo emprego, o dinheiro nunca chegava em casa, ficava pelos bares e com as mulheres com quem ele saía.
Sempre fui uma menina muito estudiosa e sempre gostei muito de escrever. Todos os meus sentimentos eram colocados na ponta do lápis, uma forma de desabafar e de ser ouvida por meio daquelas folhas. Enquanto minha irmã adorava ficar na rua, sempre fui caseira. Para mim, não tinha companhia melhor do que o caderno e as páginas de um livro, mas meu pai não gostava que eu ficasse em casa, me chamava de retardada por não gostar de passar o dia na rua. Muitas vezes, ele me suspendia pelo braço, me jogava no corredor, como eu fosse um saco de lixo, e fechava a porta, deixando-me do lado de fora. Aquela atitude me feria profundamente.
Conforme fui crescendo, acabei observando e entendendo algumas coisas. Uma delas era que ele ficava na cozinha, olhando secretamente pelo basculante as mulheres do prédio de frente tomando banho. Uma vez, acordei de madrugada e o flagrei nu em cima do tanque, masturbando-se. Como o basculante era alto, ele precisava subir em algo, e provavelmente não pegou a cadeira para não chamar a atenção da minha mãe. Deduzi que era esse tipo de coisa que ele fazia quando ficava em casa sozinho.
Como disse anteriormente, mesmo sendo criança, enxergava tudo ao meu redor e, por isso, não me relacionava bem com meu pai. Não admitia passar privações enquanto ele curtia a vida, e essa distância aumentou mais ainda quando eu completei treze anos, um pouco depois da minha vó falecer.
Por falar nisso, o velório dela foi deprimente. Meu tio saiu no tapa com meu pai porque ele levou sua amante, e depois, quando chegaram no apartamento dela, quebraram tudo porque todos se achavam no direito sobre seus pertences. O resultado foi que ninguém ficou com nada, nessa confusão até eu saí perdendo porque minhas fotos de infância foram todas rasgadas.
Eu tinha amizade com algumas pessoas da escola, dentre elas com um menino apelidado de Maninho, que um tempo depois entrou para o tráfico. Esse menino foi me procurar na minha casa e meu “maravilhoso e adorado” pai, bateu a porta na cara dele e, assim que entrou, pegou um pedaço de madeira e me bateu com ele. Coloquei meu braço na frente para me defender, e a cada investida, eu segurava o choro. Não derramei uma lágrima, e isso o irritou. Nessa madeira tinha um prego que rasgou meu braço, a dor era gigantesca, mas não desmoronei na frente daquele monstro. Se fosse nos dias de hoje, com certeza eu teria dado parte dele, mas naquela época espancar um filho era dar educação. Essa dor ficou guardada por muitos anos em meu peito.
Minha mãe não fez nada para impedir que ele me agredisse. Quando cansou de me bater, tomou um banho e foi para seu quarto se deitar com ela. Minha irmã me olhou com pena, porém nada podia fazer. Todos foram dormir como se nada tivesse acontecido. Meia hora depois, minha tia, irmã da minha mãe, chegou do trabalho. Ela estava passando uns dias na nossa casa porque havia se desentendido com o marido e, ao ver meu braço torto e ensanguentado, ficou horrorizada. Contei o que aconteceu a ela, que fez um curativo, mas não amenizou a dor e passei a noite toda gemendo. Ainda de madrugada, ouvi minha mãe dizendo que eu estava com dor, e ele não se importou, e ela como mãe, também não.
Pela manhã bem cedo, minha tia me acordou e me levou ao hospital público próximo a nossa casa. Chegando lá, ficamos em uma fila para fazer uma ficha de atendimento. Enquanto esperávamos, passou um grupo de enfermeiras e uma delas, quando viu meu braço, perguntou à minha tia o que eu estava fazendo ali, dizendo que, no meu caso, deveria ter ido direto para emergência. A enfermeira nos acompanhou e depois de todo os procedimentos e medicamentos, fui liberada. Por causa dos ferimentos, teria que voltar depois para engessar e, devido a essa agressão, meu braço só voltou a esticar novamente quando eu completei dezesseis anos.
Todas as vezes que o olhava, ódio crescia dentro de mim, e, a partir desse dia, nunca mais lhe dirigi a palavra. Alguns anos depois, ele e minha mãe se separaram.
Eu trabalhava e estudava e estava prestes a entrar na faculdade. Consegui passar para medicina com muito esforço. Uma menina humilde e a única da família a cursar uma faculdade, eu era um orgulho para mim mesma, porque não recebi parabéns de ninguém. A única coisa que eu ouvia era que médica ganha bem e eu poderia ajudar a família.
Anne— Bruna, por favor, vê se não vai chegar tarde porque amanhã você tem entrevista de emprego. Amanda está fazendo este favor pela consideração que ela tem por mim, se você falhar comigo mais uma vez, não vou pedir mais nada a ninguém.— Relaxa, Anne. Vou dar uma volta com a Priscila, daqui a pouco estarei de volta.
Berlim, AlemanhaAcordo sentindo um braço magro sobre meu peito, olho para o lado e vejo uma loira nua. Não consigo enxergar o seu rosto, coberto por seus fios dourados. Minha cabeça está pesada e dói. Estou arruinado, meu corpo inteiro está dolorido. Olho ao redor e percebo que estou em um quarto que com certeza não é de hotel, porque tem um pôster do ator Chris Hemsworth colado na parede. A maioria das minhas colegas de trabalho e algumas amigas dizem que me pareço com esse ator. O pôster que tem mais de um metro de comprimento e em cima da cômoda rosa. Rosa? Mas que porra, será que eu transei com uma criança?Aos poucos as lembranças vão surgindo. Fui jantar com meu pai e meu irmão, e quando disse que amanhã irei para o Brasil, acabamos nos desentendendo. Meu pai como sempre foi contra, dizendo que eu adoro ficar no meio de gentinh
AnneEstou muito ansiosa. Hoje será meu primeiro dia como doutora Martins, nunca meu sobrenome soou tão bem. Cheguei bem cedo no hospital com medo de me atrasar e até agora não chegou mais ninguém, então estou aproveitando para tomar um café na cantina. Amanda e Márcio devem estar chegando. Nós três tivemos muita sorte de conseguirmos vaga nesse hospital, que tem uma rede em todo o Rio, além de uma excelente estrutura.— Bom dia, Anne. Ansiosa?— Muito, Amanda. Não via a hora de vocês chegarem. Bom dia, Márcio — cumprimento e ele me dá um beijo estalado na bochecha.— Tenho uma notícia fresquinha para vocês sobre os nossos chefes.— Amanda, você acabou de chegar e já tem novidade?Ela sorri, fazendo cara de sapeca.— Ontem me ligaram dizendo que ficou faltando um documento
Anne— Fi...quem a vontade — Amanda gagueja.É a primeira vez que a vejo sem graça na presença de algum homem. Eu não estou diferente dela. Doutor Hoff senta ao meu lado e o doutor Hensel, com seu semblante sério, ao lado da Amanda. Não sei se é melhor ou pior, pois Hensel não tira os olhos de mim, deixando-me sem saber como agir.— E aí, meninas. Posso saber o motivo de tanta felicidade? O que você me diz, Anne, ou é segredo?— Não é nada demais, doutor Hoff.— Não estamos no hospital, doutora. Pode me chamar de Adam.— Como eu estava dizendo, Adam — sorrio para ele —, estou feliz porque eu e Amanda vamos morar juntas. Eu amo essa garota, ela é mais do que uma amiga para mim.Adam conversa comigo, mas sua atenção está na Amanda e eu nunca tinha visto
KlausHoje acordei com a missão de procurar um lugar para morar. Se dependesse do Adam, ficaria com ele em seu apartamento, onde estou hospedado, mas não quero tirar a privacidade do meu amigo, além de querer a minha. Marquei com o corretor às dez horas para ver umas coberturas, aqui mesmo na Barra para facilitar minha ida ao hospital.Desde o primeiro dia que comecei a auxiliar os novos doutores, estou fascinado pela doutora Martins. Aquela negra mexeu comigo de uma forma que me assusta. Não consigo parar de olhar para ela, sua beleza e seu jeito simples de ser me fascinam. Existe algo em seu olhar que me traz familiaridade, como se já o tivesse visto antes. O meu amigo não está muito diferente de mim, completamente fascinado pela Amanda. Nós dois fomos pegos de jeito por essas mulheres, tivemos até que deixar de trabalhar diretamente com elas. Adam ficou com Anne em sua equipe e eu, c
KlausAmanda propõe que vamos até a sua casa para que elas troquem de roupa e, no curto caminho, tenho o prazer de ter a companhia de Anne, que vai no meu carro. No início, ficamos em silêncio e a cada sinal fechado aproveito para olhar para ela, até que Anne quebra o silêncio, perguntando sobre meu trabalho voluntário. Fico à vontade, pois falar da minha profissão sempre foi muito prazeroso para mim. Adam e eu ficamos esperando as meninas na sala enquanto elas se arrumam.— E aí, cara. Como foi com a Anne?— Nós conversamos um pouco sobre trabalho voluntário. E você, como foi com a Amanda?— Perguntei a ela as coisas que ela gosta de fazer e foi basicamente sobre isso que conversamos.— Cara, a Amanda está na sua, percebo pelo jeito que ela te olha. Mas a Anne não mostra nenhum interesse por mim.&mdash
AnneNo domingo, quando chego em casa, encontro um cenário de festa. O som alto e a casa cheia, os colegas da Bruna rindo e bebendo na sala enquanto minha mãe frita salgadinhos na cozinha.— Boa tarde, doutora — Bruna fala assim que entro. Cumprimento todos, dou um beijo na minha mãe e vou para o meu quarto.Fico no quarto tentando revisar as anotações que fiz sobre alguns procedimentos necessários para uma cirurgia no coração, mas está difícil de me concentrar por causa do barulho. Minha mãe entra no quarto e diz que, se eu quiser salgadinho, é para ir lá na sala pegar porque ela não vai ficar servindo ninguém. Agradeço sua “gentileza” e digo que não quero. Assim que ela sai, meu telefone toca e é Amanda.— Já está com saudade, namorada?— Nem brinca, Ann
AnneSaio do hospital e vou ao supermercado comprar algumas coisas que estão faltando em casa. No ponto de ônibus, um sedan cinza passa por mim e buzina. Não faço ideia de quem se trata, então não me importo, pode ser só algum engraçadinho sem noção. O carro estaciona um pouco à frente e fico com medo, mas há algumas pessoas no ponto, qualquer coisa peço socorro. Fico de costas para não olhar para o carro, pedindo a Deus que meu ônibus chegue logo.— Anne. Assusto-me ao ouvir meu nome, e fico surpresa quando me viro.— João? João Carlos?— Vai dizer que eu estou tão diferente assim?— Nossa, você mudou muito.— Será que isso foi um elogio? — Ele sorri e o abraço.João estudou comigo