Ao chegar em casa, tentei subir as escadas fazendo o mínimo de barulho possível, não queria ter que encarar minha família agora, pois pretendia esconder os últimos acontecimentos por algum tempo. Para meu azar, Ariel surgiu no topo da rampa, olhando-me com estranhamento.
— O que está fazendo em casa a esta hora?
Parei imediatamente. Pega no flagra, soltei uma expressão de susto.
Eu havia pensado muito durante o trajeto de ônibus; pensara no que diria, se eu deveria passar algumas horas pelo centro de Santa Alice a fim de chegar em casa no horário de costume. No fim, escolhera me recolher no meu quarto, ponderar sobre o que estava por vir.
Era tarde demais, de todo modo, para passar despercebida. Minha mãe veio da cozinha para a sala, secando as mãos num pano de prato.
— Natasha?
Seu olhar inquisitivo reproduzia o questionamento de Ariel. Eu poderia dizer
Eu já havia estado nesse sonho. De volta ao carro, exceto que esse era o Fiat Doblò. A estrada longa e iluminada numa noite ordinária, as árvores ladeando ambos os cantos. Através do para-brisa, a van de portas abertas esperava, e eu sabia o que ocorreria à medida que desacelerava. Olhei para o lado outra vez, mas o que estava lá era apenas uma sombra, uma silhueta sem rosto de alguém que eu costumava conhecer. Encarando o vidro retrovisor, vi as outras três sombras no banco de trás.Tudo estava acontecendo de novo.De dentro da van, saíram mais alguns espectros inidentificáveis. Em vez de armas, tinham garras enormes, braços e pernas desproporcionais. Espreitaram, cercaram o carro.Ouvi uma exclamação, mas abafada, como se quem estava gritando proferisse as palavras sob um travesseiro grosso. Eu previa o que faria a seguir, cometeria o mesmo engano outra vez:
Dizer que eu estava completamente alheia seria mentira. Antes mesmo de olhar ao redor, sentia uma dor no peito — era contínua, eu já devia vir sentindo-a há algum tempo —, e uma tosse insistente escapava pela minha garganta. Dei-me conta de que respirava por meio de uma máscara. Cortinas brancas cercavam as laterais do leito, abertas perto dos meus pés. O silêncio era quase tântrico, competia apenas com alguns bipes e passos leves pelo chão.A noção do que havia acontecido vinha aos poucos. A estupidez que eu havia feito — pulando por cima da balaustrada e permanecendo de pé sobre a viga externa da ponte — voltava à minha memória. De repente, tudo ficava mais claro, como se, longe da tempestade, as nuvens deixassem de abrumar minha mente assim como faziam com o céu.O frio e o pavor ao cair, depois o choque; as braçadas em vão nas &aacut
Aquela carteira de identidade era… era minha! Eu me lembrava de ter tirado aquela fotografia, cerca de oito anos antes. Lembrava-me inclusive da camiseta preta que eu estivera usando no dia, que hoje já havia virado pano de chão, mas que na época era uma das minhas favoritas. Estava de cabelos presos, de rosto livre de maquiagem. Sempre achara que, naquela fotografia, meu nariz e minha boca pareciam maiores do que eram. Como alguém poderia tê-la?O silêncio dentro do carro começou a se tornar muito assustador. Quem quer que fosse o dono do veículo tinha uma cópia de um documento pessoal meu, talvez até me conhecesse. Talvez…Olhei outra vez para trás. Ninguém. Olhei para fora. Ninguém espreitava.E se eu estivesse sendo perseguida? E se quem quer que estivesse por trás daquela bolsa e do anel tivesse algum interesse mórbido em mim? E se i
“Droga!”Abaixei-me para pegar a faca e rumei para fora do quarto. Pensei em me esconder no closet, mas isso só funcionaria caso eu não tivesse feito tanto barulho.O medo retumbava com o impacto de um martelo nas minhas costelas. Eu me arrependia agora. Uma série de possibilidades povoaram minha imaginação. E se a pessoa no andar de baixo estivesse armada? E se eu não fosse rápida o bastante para fugir ou lutar? E se, em vez de me matar, meu adversário decidisse me manter refém naquela casa, longe de tudo?Olhei pelo corredor, esperando encontrar alguma coisa, mas não vi ninguém. Espiei através da janela. Se eu saltasse dali, talvez a queda não me machucasse tanto, mas era um risco que eu não queria correr — não conseguiria ir longe com um calcanhar torcido.Os passos se agitaram lá embaixo, e então pararam. Eu
Semicerrei os olhos.— Este mundo? — ecoei. — Você quer dizer… este planeta?Giu estalou um muxoxo.— Não. Não tem nada a ver com planeta. — Encarou o vazio por um instante, pensando em como poderia explicar melhor. — Veja. — Virou o livro na minha direção, para que eu pudesse ver melhor. Pousou o indicador sobre o símbolo da serpente. — Este costumava ser o símbolo de uma tribo nativa da região de Santa Alice. Foi descoberta na época da colonização do país, no século dezesseis.— E o que ele representa?— Uma série de coisas, na verdade. É difícil descrever em poucas palavras, mas… — Mordeu um lábio. — Essa tribo se chamava Pÿnkafã, falante da língua caingangue, hoje em dia muito pouco falada, apenas por estudiosos e al
Quando abri os olhos na manhã seguinte, desejei descobrir que o dia anterior havia sido apenas um sonho ruim. As manchas de umidade no teto já indicavam que não.Eu havia fugido outra vez da casa na serra. Não conseguiria passar a noite lá. Dirigira até qualquer pensão que pudesse encontrar no centro e alugara um quarto barato por uma noite. Fizera com que a proprietária me garantisse que era seguro, certificara-me de trancar a porta antes de me deitar. Claro que, antes disso tudo, eu havia vasculhado mais algumas gavetas e até mesmo o banheiro. Encontrara mais dinheiro em espécie e — para meu alívio — um frasco de indutores de sono, cuja composição eu não conhecia, mas que me fizeram dormir sem que eu ao menos me esforçasse para isso.Ao meu lado, na cama ampla, ainda estava o notebook que eu também trouxera comigo, conectado à tomada e mo
Coloquei-me em pé e me aproximei inconscientemente da porta, embora não pretendesse sair por ela — não ainda.Uma equipe de físicos havia vindo da Bélgica para realizar pesquisas na Universidade de Santa Alice, e talvez isso tivesse feito com que eu fosse parar numa outra dimensão. Talvez um encantamento indígena tivesse cruzado os séculos e me atingido feito um raio algumas noites atrás. Talvez eu tivesse perdido completamente a sanidade. A explicação para o que vinha acontecendo, de um momento para o outro, não me importava mais. O que interessava era o efeito que isso causava. Tal efeito era mostrado no resultado da busca que eu acabara de fazer na internet.Ninguém nunca ouvira falar sobre vítimas alvejadas num fatídico 21 de junho. Isso nunca havia acontecido. Aquela Natasha que sempre se martirizava no chuveiro, perguntando-se por que havia escolhido pis
Em silêncio, chamei seu nome. Leon se virou, por um instante lançando o olhar na direção em que eu estava, mas não se atentou a mim. Deu meia-volta e começou a andar na direção do balcão. Contive o desejo de gritar por ele enquanto começava a caminhar. Antes que eu pudesse me aproximar, a mulher de verde me segurou levemente pelo braço, obrigando-me a desviar os olhos do meu alvo.— Sua comanda, senhora — falou.Peguei o pequeno papel, apenas para tirar a mulher do caminho. Quando voltei a cabeça para a frente, vi a porta que dava à cozinha se fechar às costas de Leon. Um vislumbre era tudo o que eu conseguira ter.Marchei até o balcão, mas fui impedida de prosseguir quando outro funcionário levantou a palma no ar.— O bufê é por ali — disse, apontando para a direção oposta.—