Voltei o celular ao ouvido.
— Henrique, chame a polícia! — gritei.
O homem partiu para cima de mim, puxou o telefone e o lançou para longe.
Soltei um berro, saltando para trás e chocando as costas contra a parede.
Estudei-o. O cabelo estava muito curto, a barba ainda crescia; tinha a faixa em torno do braço. Era idêntico a Dário. Mas não era ele.
Lembrei-me de que, mais cedo, ele se recusara a tomar a canja. Produto animal; o tipo de alimento que Dário normalmente comia, mas não o Dário daquela tarde.
— Você não é ele — acusei, juntando as informações. — Ela trouxe você para cá, não trouxe?
Leon ainda sorria. Também não era o Leon que me seguira pelo corredor de seu prédio apenas de toalha. Era outro. Da mesma maneira que vinha existindo, esse tempo todo, duas Nat
— Fique longe de mim — murmurei. Comecei a andar.Leon me segurou com força pelo braço.— Espere. Vamos conversar — pediu. — Juro que não escondi mais nada de você. Juro que não vou esconder nada de agora para a frente.Pensei em pegar minha bolsa e sair pela porta. Dizer que ele desse meia-volta toda vez que me visse na rua. Mas seu toque me segurava no lugar; depois de eu ter feito tanto para tê-lo ali comigo, vivo, afastar-me dele seria como perder meu propósito na vida.Olhei em seus olhos.— Não sei…— Natasha, eu amo você. Nunca faria nada para machucá-la. — Eu percebia um tom de sinceridade em suas palavras. E se eu estivesse exagerando? — O que passou, já passou. Só temos o agora.Ele se aproximou ainda mais. Seu toque foi ficando cada vez mais delicado. Senti o cheiro de banho
Era como não conseguir despertar de um sono inquieto.Eu sabia onde estava, mas estava em muitos lugares. O tempo era como uma criança, tentando encaixar a peça quadrada no buraco circular — no triangular, no retangular… várias outras formas geométricas, até, finalmente, encontrar o encaixe correto.A discussão na cozinha do apartamento. Giu me olhando com estranhamento no quarto da pensão, após eu sair do banheiro com a blusa molhada e suja de café. O corpo de Eva, suspenso no ar. O gosto podre da corda. O cheiro característico do hospital. Os quadros post mortem no museu. As mãos que apertavam minha garganta. O beijo. As plantas do pomar. A chuva…De novo, mas diferente. De novo e igual.Algo estava finalmente mudando. As peças voltavam a se organizar. Senti meus braços, minhas pernas… mas não meu peso. Estava flut
… do carro.Um estampido agudo torturava meus ouvidos. Algo viscoso e quente escorria do meu nariz.Saiam do carro!— Você está bem? — Leon perguntou ao meu lado. Levantei a cabeça, tonta. Tudo doía. Meu rosto, meus braços, minhas pernas. Olhei pelo para-brisa despedaçado e vi a árvore bem perto de nós. Fumaça cinza-escura saía do motor. Havíamos parado. — Natasha, me responda!— Estou — falei.O estampido ia diminuindo. Eu ouvia choro… o choro de Eva:— Não. Não, não, não, não, não…Saiam agora!Passei a mão pelos cabelos e senti dezenas de fragmentos de vidro presos neles. Olhei pelo retrovisor e vi que os passageiros haviam conseguido se segurar bem. Ninguém parecia machucado; ninguém além de mim.
Outubro de 2013Está chovendo. Eu costumava observar as gotas escorrendo pelo vidro da janela, deixando rastro. Você me ensinou a não apenas admirar coisas bonitas, mas a me integrar a elas. É por isso que escrevo sob um guarda-chuva. As extremidades desta carta devem estar um pouco retorcidas — o papel está molhado neste momento. Até chegar a você, estará seco, e a chuva já terá passado; mas isso não faz diferença. Não sei se o lugar em que você está tem janela; não sei se pode olhar o céu. Escreverei, então, apenas sobre o que sei de fato.Minha família decidiu se mudar de Santa Alice. Não acham mais esta cidade “segura o suficiente”. Acho que vão para algum lugar ao sul, pelo menos até Ariel finalmente conseguir passar na prova de admissão para ingre
Tempestade Perfeita é tanto uma ode àquilo com que eu mais me importo quanto um completo desrespeito comigo mesmo. Eu poderia, honestamente, tê-lo escrito às escondidas, com um sorriso maníaco no rosto, engendrando maneiras de evitar uma merecida palmatória. Esse é o motivo pelo qual, em primeiro lugar, incluo esta nota. Desde o início, tive o ímpeto de dizer a mim mesmo “você não deveria fazer isso”.Uns anos atrás, sujeitei-me a não escrever nada. Precisava investir meu tempo e canalizar minhas energias à realização de outras tarefas — mais importantes e imediatas. Tentando encontrar uma brecha nas regras, comecei a escrever um diário. De certo modo, eu me desobedeci.Algum tempo depois, recebi um conselho precioso: “bons escritores não escrevem apenas sobre aquilo no que têm especialidade; caso contrário, ac
Abril de 2011O começo foi o que, mais tarde, eu chamaria de “princípio do fim”. Inícios são despretensiosos, como filmes de animação infantil que nos fazem chorar no final. Não avisam o que são. Se os notarmos, é porque talvez já tenhamos alcançado o meio da narrativa. Eles geralmente pertencem ao passado; e nós, ocupados com outras coisas, temos sorte quando conseguimos capturá-los pouco depois de terem chegado para modificar tudo.Era dia de semana. A voz do professor de filosofia lá na frente soava hipnótica:— Podemos concluir que, segundo Marx, mesmo o pior dos tecelões supera a melhor das aranhas, uma vez que a teia tecida por ela é feita sempre da mesma maneira, sem o recurso da reflexão, enquanto o homem tem a capacidade autônoma de ponderar sobre a realização d
Naquela noite, Leon foi embora com o caderno carregado de anotações e a cabeça cheia de idealizações. Tínhamos razões para nos vermos outras vezes, e, sem que ao menos pensássemos nelas, assim fizemos.Em sua terceira visita à minha casa, no final de maio, trouxe com ele uma porção de materiais: cartolina, caixas de papelão, canetas hidrográficas, blocos de post-it, fita adesiva e alfinetes. Enquanto ia tirando tudo das duas mochilas que carregava, eu questionava se aquilo já não era exagero.— Ideias são só ideias até que eu possa tocar nelas — explicou.E, durante horas, criamos um trabalhoso outline. No início, tudo era uma bagunça, e eu só conseguia pensar no tempo que me custaria limpar os restos picotados de papelão que voavam para baixo dos móveis. Depois, comecei a v
Alguns fatos: eu precisava de um banho; Ariel não convenceria ninguém de que não havia bebido. Não poderíamos voltar para casa nessas circunstâncias.A princípio, a ideia era nos enfiarmos cada um em seu respectivo quarto enquanto minha mãe ainda dormia, mas após esperar o ônibus por mais de uma hora, demo-nos conta de que talvez já fosse muito tarde para que esse plano desse certo. Minha mãe costumava se levantar cedo, mesmo nos fins de semana.Quando Leon sugeriu que fôssemos para a casa dele, de verdade dessa vez, não me pareceu má ideia — aliás, seria um alívio não ter que me despedir dele ainda, por mais cansada que eu estivesse.Eva, satisfeita com sua missão cumprida, tomou seu próprio rumo. Ariel e eu acompanhamos Leon no ônibus para o outro lado da cidade. Encostada na janela, eu podia ver o arvoredo passan