Outubro de 2013
Está chovendo. Eu costumava observar as gotas escorrendo pelo vidro da janela, deixando rastro. Você me ensinou a não apenas admirar coisas bonitas, mas a me integrar a elas. É por isso que escrevo sob um guarda-chuva. As extremidades desta carta devem estar um pouco retorcidas — o papel está molhado neste momento. Até chegar a você, estará seco, e a chuva já terá passado; mas isso não faz diferença. Não sei se o lugar em que você está tem janela; não sei se pode olhar o céu. Escreverei, então, apenas sobre o que sei de fato.
Minha família decidiu se mudar de Santa Alice. Não acham mais esta cidade “segura o suficiente”. Acho que vão para algum lugar ao sul, pelo menos até Ariel finalmente conseguir passar na prova de admissão para ingre
Tempestade Perfeita é tanto uma ode àquilo com que eu mais me importo quanto um completo desrespeito comigo mesmo. Eu poderia, honestamente, tê-lo escrito às escondidas, com um sorriso maníaco no rosto, engendrando maneiras de evitar uma merecida palmatória. Esse é o motivo pelo qual, em primeiro lugar, incluo esta nota. Desde o início, tive o ímpeto de dizer a mim mesmo “você não deveria fazer isso”.Uns anos atrás, sujeitei-me a não escrever nada. Precisava investir meu tempo e canalizar minhas energias à realização de outras tarefas — mais importantes e imediatas. Tentando encontrar uma brecha nas regras, comecei a escrever um diário. De certo modo, eu me desobedeci.Algum tempo depois, recebi um conselho precioso: “bons escritores não escrevem apenas sobre aquilo no que têm especialidade; caso contrário, ac
Abril de 2011O começo foi o que, mais tarde, eu chamaria de “princípio do fim”. Inícios são despretensiosos, como filmes de animação infantil que nos fazem chorar no final. Não avisam o que são. Se os notarmos, é porque talvez já tenhamos alcançado o meio da narrativa. Eles geralmente pertencem ao passado; e nós, ocupados com outras coisas, temos sorte quando conseguimos capturá-los pouco depois de terem chegado para modificar tudo.Era dia de semana. A voz do professor de filosofia lá na frente soava hipnótica:— Podemos concluir que, segundo Marx, mesmo o pior dos tecelões supera a melhor das aranhas, uma vez que a teia tecida por ela é feita sempre da mesma maneira, sem o recurso da reflexão, enquanto o homem tem a capacidade autônoma de ponderar sobre a realização d
Naquela noite, Leon foi embora com o caderno carregado de anotações e a cabeça cheia de idealizações. Tínhamos razões para nos vermos outras vezes, e, sem que ao menos pensássemos nelas, assim fizemos.Em sua terceira visita à minha casa, no final de maio, trouxe com ele uma porção de materiais: cartolina, caixas de papelão, canetas hidrográficas, blocos de post-it, fita adesiva e alfinetes. Enquanto ia tirando tudo das duas mochilas que carregava, eu questionava se aquilo já não era exagero.— Ideias são só ideias até que eu possa tocar nelas — explicou.E, durante horas, criamos um trabalhoso outline. No início, tudo era uma bagunça, e eu só conseguia pensar no tempo que me custaria limpar os restos picotados de papelão que voavam para baixo dos móveis. Depois, comecei a v
Alguns fatos: eu precisava de um banho; Ariel não convenceria ninguém de que não havia bebido. Não poderíamos voltar para casa nessas circunstâncias.A princípio, a ideia era nos enfiarmos cada um em seu respectivo quarto enquanto minha mãe ainda dormia, mas após esperar o ônibus por mais de uma hora, demo-nos conta de que talvez já fosse muito tarde para que esse plano desse certo. Minha mãe costumava se levantar cedo, mesmo nos fins de semana.Quando Leon sugeriu que fôssemos para a casa dele, de verdade dessa vez, não me pareceu má ideia — aliás, seria um alívio não ter que me despedir dele ainda, por mais cansada que eu estivesse.Eva, satisfeita com sua missão cumprida, tomou seu próprio rumo. Ariel e eu acompanhamos Leon no ônibus para o outro lado da cidade. Encostada na janela, eu podia ver o arvoredo passan
— Estou avisando. Espere lá fora — ordenou a enfermeira pela segunda vez desde que Leon e eu havíamos entrado na enfermaria da universidade. Ela não soava autoritária, apenas seguia o protocolo. Cruzei os braços, resistindo ao comando.Após os socos trocados, eu acompanhara um dos seguranças carregar Leon pelo braço até aquela ala da enfermaria. Agora o homem esperava do lado de fora, para garantir que a próxima parada de Leon fosse a sala da coordenadoria de ensino, para onde seria levado assim que a enfermeira terminasse de cuidar de seus ferimentos. Quanto a Gaspar, eu não sabia onde estava.A mulher havia estudado meu rosto esbofeteado, mas pedi que se focasse em Leon. Eu estava bem.A enfermaria era toda de um branco doentio. Tinha bem mais macas do que necessário e apenas uma funcionária, provavelmente estagiária do curso de Enfermagem, para recebe
A semana seguinte veio sem que eu trocasse palavra com Eva, e assim ocorreu até início de junho. Eu me sentia uma idiota pensando que éramos tão próximas. Costumávamos fazer planos de terminar a faculdade e tentar emprego no jornal de Santa Alice, o Diário Catedral; seríamos companheiras de profissão e amigas de longa data. Pelo visto, se ela continuasse com aquela atitude, o futuro teria que ser diferente.Infelizmente, eu também não vinha passando muito tempo com Leon. Quando ele foi passar sua folga na minha casa, acabou dormindo pesadamente sem que tivéssemos a chance de conversar ou aproveitar um tempo juntos. Não tinha denunciado Gaspar, nem ao menos mencionava o ocorrido no banheiro; era como se nunca tivesse acontecido. Tudo o que fiquei sabendo era que a universidade tinha anotado o nome dos dois para que, caso houvesse outra ocorrência como aquela, ambos tivessem a matr&
A hora seguinte veio feito um tufão. Eu agia, não sabia como ou se fazia certo. Só agia.Quando parei o carro na frente do Hospital Memorial de Santa Alice, funcionários vieram com aparatos e macas. Não desci do carro, não abri a porta, não ousei olhar para o lado outra vez. Talvez tivéssemos tempo de salvá-lo, mas eu não queria checar. Se olhasse, poderia descobrir que era tarde demais.O auxílio chegou. Abriram as demais portas. O vidro danificado despencava, enquanto muitos pares de pés pisavam sobre ele. Eva chorava muito alto. Fechei os olhos e me agarrei ainda com mais força ao volante. Enquanto precisara dirigir até ali, sentira que havia algo que pudesse ser feito, mas, agora que tinha parado, tudo o que queria era negar a realidade. Pensei em voltar a acelerar, mas já não dava para continuar fugindo.Quando finalmente olhei para fora, vi dois
Agosto de 2018Olhei mais uma vez o relógio sobre a estante. Mais um minuto havia se passado. Um minuto desde que eu verificara as horas da última vez, e isso parecia ter acontecido cinco minutos atrás.— … mas, tirando isso, estou bem — falei, concluindo meu raciocínio.As séries de televisão por muito tempo me convenceram de que haveria um divã quando eu finalmente me consultasse com um profissional, mas não havia. Em vez disso, eu me sentava todas as quartas-feiras numa cadeira de alumínio fria, diante de uma mesa de escritório comum, e esperava os quarenta e cinco minutos passarem.A senhora do outro lado sorriu, e eu a imitei.— Posso ver pelo seu semblante que está mesmo.O consultório deveria ser acolhedor. Por vezes eu desejava que não entrasse tanta luz por entre as corti