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Tempestade Perfeita
Tempestade Perfeita
Por: Marco Barbieri
Prólogo: Folie à Deux - I

Abril de 2011

O começo foi o que, mais tarde, eu chamaria de “princípio do fim”. Inícios são despretensiosos, como filmes de animação infantil que nos fazem chorar no final. Não avisam o que são. Se os notarmos, é porque talvez já tenhamos alcançado o meio da narrativa. Eles geralmente pertencem ao passado; e nós, ocupados com outras coisas, temos sorte quando conseguimos capturá-los pouco depois de terem chegado para modificar tudo.

Era dia de semana. A voz do professor de filosofia lá na frente soava hipnótica:

— Podemos concluir que, segundo Marx, mesmo o pior dos tecelões supera a melhor das aranhas, uma vez que a teia tecida por ela é feita sempre da mesma maneira, sem o recurso da reflexão, enquanto o homem tem a capacidade autônoma de ponderar sobre a realização do seu trabalho. Dessa forma… — falava lentamente, fazendo com que seu discurso parecesse um cântico. Eu lutava para manter os olhos abertos — o ser humano é capaz de fazer sua realidade tal como ela existe a partir de si próprio e não de reações meramente estabelecidas pela natureza…

Sentada na carteira, eu me perguntava quantas aulas como essa ainda precisaria assistir como requisito para aprender o que realmente me interessava. Era o primeiro período da minha graduação. Embora há três meses — ao realizar minha matrícula — eu tivesse me comprometido a me dedicar igualmente a todas as disciplinas, começava a imaginar que algumas exceções acabariam sendo admitidas.

Giúlia, algumas fileiras mais à frente, levantou a caneta no ar. Após um aceno de cabeça do professor, ela jogou um de seus dreadlocks louros para trás do ombro e fez uma pergunta:

— Então é correto dizer que nossas escolhas são o que nos tornam únicos perante outras espécies animais? — Ela soava inteligente e dedicada agora, mas eu sabia que estaria cochilando na próxima aula de produção textual. — Mas e se o que chamamos de poder de escolha for também uma dessas “reações sem reflexão”?

Apoiei o queixo sobre uma mão e virei o rosto. Por me sentar no canto, eu tinha a visão da janela; queria poder abri-la e respirar um pouco de ar fresco. Meu olhar viajou pela área externa do prédio de Comunicação Social, pelo gramado aparado do jardim; a grama tinha uma cor viva sob o sol da manhã.

Minha atenção, no entanto, não se demorou muito no panorama. Antes que eu pudesse me dar conta, já estava admirando algo muito mais interessante do que a grama: sentado sob a sombra de uma das árvores, ouvindo alguma coisa nos fones de ouvido, permanecia um rapaz de pele clara e compleição concentrada. Um fluxo de motivação me despertou do tédio.

Ele tinha um cavanhaque; seus cabelos longos e negros estavam amarrados num rabo de cavalo. Durante meus primeiros meses na universidade, eu o havia avistado apenas duas ou três vezes nas palestras de conhecimentos gerais. Não sabia seu nome nem o curso que fazia.

Eu bem acreditava em “atração à primeira vista” — e era isso o que estava acontecendo —, contudo não costumava experimentá-la com qualquer intensidade ou frequência. Talvez essa quebra no padrão fosse uma influência do ambiente juvenil da faculdade. Não parecia errado, de todo modo, observar o garoto de longe.

O professor continuava a explicar sobre “autonomia” e “reações”, sua voz foi ficando cada vez mais distante para mim.

Reações…

Bem, nesse sentido, eu não era tão superior a qualquer animal não humano. Ainda era regida pela mesma necessidade de envolvimento afetivo, interação lasciva… o instinto primordial que me impelia a continuar contemplando através da janela em vez de prestar atenção nas teorias que um filósofo havia anotado há cerca de um século e meio.

Encarava o rapaz sem acanho, uma vez que as janelas do primeiro andar eram feitas de vidro fosco. Ele fitava o nada, com um olhar distante e fixo, provavelmente concentrado na música dos fones; dessa perspectiva, parecia até que me olhava de volta. Protegida pelo vidro escuro, aproveitei o momento para imaginar como seria agradável caso ele realmente estivesse me observando com reciprocidade.

O rapaz não era particularmente robusto, mas tinha braços e ombros largos, o que fazia sua blusa de manga curta ficar justa à altura do peito. Tinha olhos inteligentes que me estimulavam a querer conhecê-lo.

Minha amiga Eva, uma repetente de cabelos curtos tingidos de cor-de-rosa, inclinou-se para a frente e aproximou a boca ao meu ouvido.

— Vocês dois me assustam assim.

Virei-me um pouco e vi a expressão de repreensão em seu rosto; ela alternava o olhar entre mim e o jardim lá fora, onde o rapaz estava. Sorri, ligeiramente envergonhada.

— Ele não pode me ver, o vidro é escuro — sussurrei.

Eva estalou a língua.

— Não é, não. As janelas do primeiro andar foram trocadas no início do mês passado.

Suas palavras me atingiram com o impacto de um trem de carga. Olhei para as bordas da janela, tentando encontrar qualquer evidência que desmentisse Eva. De fato, o trinco era diferente do que eu me lembrava. Isso significava que a garota tinha razão e que talvez o vidro não fosse mais escuro.

Meu sangue gelou bem no momento em que o rapaz sob a árvore soltou uma risada e tapou o rosto, em sinal de vergonha alheia. Ele tinha me deixado observá-lo por uns dez minutos corridos, enquanto eu, feito uma imbecil, acreditara que ele não conseguia me ver.

Afundei a cabeça na carteira para me esconder; no ímpeto, bati o rosto tão forte na apostila aberta que o estrondo interrompeu a explicação do professor.

— Algum problema, Natasha? — perguntou ele, com uma carranca.

Sentindo o nariz doer, virei um pouco o pescoço para responder, sem ousar levantar a cabeça à altura da janela outra vez.

— De forma alguma — respondi, a voz aguda num gemido.

— Então por que está beijando a carteira? — questionou Rafael Gaspar, um colega ao fundo da sala.

Agora todos olhavam para mim, esperando que eu me endireitasse na cadeira novamente, o que eu não tinha pretensão alguma de fazer, já que isso me colocaria no campo de visão do rapaz lá fora novamente.

Sem graça, estiquei os olhos para a apostila sob o queixo e argumentei:

— É que essas letrinhas são pequenas e difíceis de enxergar de longe — inventei. A fonte era evidentemente treze, e qualquer pessoa saudável seria capaz de enxergá-la sem problemas; notando isso, menti: — Tenho hipermetropia.

O professor cruzou os braços, descrente.

— Você quer dizer “miopia”?

Eu nunca soube qual era a diferença entre uma coisa e outra. Isso importava, afinal?

Um silêncio se estabeleceu. Precedia risadas.

— Quer saber? Pensando direito — falei, finalmente levantando-me e juntando os cadernos —, acho que realmente não me sinto muito bem.

Sequer relanceei para o jardim. Coloquei a mochila no ombro e saí da sala antes que mais alguém pudesse me questionar. As risadas e olhares me perseguiram até que eu desaparecesse de vista.

No corredor, devolvi tudo para dentro da mochila e permaneci um minuto inteiro observando uma parede lisa, apenas revivendo na mente a sequência de vexames.

“Muito legal, Natasha”, pensei comigo mesma, espezinhando-me com sarcasmo. Agir feito uma esquisita na frente dos outros fazia parte do meu modus operandi.

Escondi-me no banheiro por quarenta minutos antes de partir para a próxima aula. Sair do prédio antes do último tempo estava fora de cogitação.

***

Durante as semanas seguintes, tentei esquecer o descuido. Eva, no entanto, mencionava-o sempre que podia e torcia os lábios pintados de vermelho num sorriso zombeteiro. Sempre que íamos ao bandejão e passávamos pela janela, ela fingia olhar para o outro lado feito uma lunática; acabava tirando meu apetite para o almoço. Era uma das poucas pessoas cuja amizade eu havia conquistado naqueles primeiros meses, e, por conta disso, eu permitia de bom grado que ela me fizesse odiá-la um pouco.

Após um mês inteiro evitando as palestras de conhecimentos gerais, eu achava que não veria outra vez o principal causador da minha humilhação pública.

Para minha infelicidade, todo o meu esforço fracassou de vez numa manhã de sexta-feira, enquanto eu lutava contra uma máquina de refrigerante particularmente desobediente que se recusava a entregar minha bebida. Uma figura conhecida surgiu ao meu lado sem que eu notasse. Eu socava a máquina e murmurava os piores palavrões que conhecia. Quando olhei para a esquerda, vi que era ele, o rapaz de cabelos longos. O que ele estava fazendo ali?

Aquietei-me e observei meu próprio reflexo no vidro por um momento, perguntando-me se, assim como um urso pardo, o rapaz me ignoraria e iria embora caso eu me fingisse de morta no corredor.

Ele, por sua vez, aproximou-se e pressionou o botão da máquina. Ouviu-se o som de metal batendo no interior, e meu refrigerante rolou para que eu o pegasse.

Abri um sorriso breve — ciente de que isso não seria suficiente para disfarçar o quanto eu estava mortificada por dentro —, agradeci educadamente e me esforcei para pegar a bebida com calma em vez de correr feito uma louca, como se fugisse de um enxame de abelhas. “Claro, eu devo ter esquecido de apertar o botão.”

Os olhos negros cruzaram com os meus por meio segundo, e eu já virava as costas para ir andando, quando uma frustração tomou conta de mim. Eu havia feito um bom trabalho tentando evitar aquele sujeito por um mês inteiro — evitando falar do incidente, sentando-me longe da janela e até pegando o ônibus para a faculdade mais cedo nos dias em que haveria palestra —, e agora teria que começar tudo outra vez. Sem pensar muito, e correndo o risco de piorar tudo, voltei-me ao rapaz novamente:

— Você deve me achar bem idiota, não é?

Ele levantou a sobrancelha inquisitivamente.

— Devo?

— Tenho quase certeza de que apertei essa droga de botão, está bem? — estabeleci, tentando não dar ênfase ao “quase”. — Não é como se eu fosse doida ou algo assim.

Ele deu de ombros, utilizando-se da máquina de refrigerante.

— Eu sei — falou. — O botão está com defeito, às vezes é preciso apertar mais de uma vez.

Hesitei. Nesse caso, eu realmente havia acabado de piorar tudo.

— Ah… — Senti minha determinação se exaurir. — Bem, então… obrigada de novo.

Virei-me uma segunda vez e dei o primeiro passo. Agora foi o rapaz quem me interrompeu:

— Mas, se me perguntar, você parece meio estranha quando fica encarando os outros.

Congelei onde eu estava e fechei os olhos com força. É claro que ele se lembrava disso! A essa altura, não adiantaria mesmo me fingir de morta, e era só por isso que eu literalmente não tentava. Girei nos calcanhares de novo, bem devagar.

— Olha… A respeito disso…

— Não se preocupe — assegurou, pegando seu refrigerante. — Eu gosto de coisas estranhas.

Sorri outra vez, mas agora havia um divertimento genuíno nisso.

Ao estourar a tampa do refrigerante, o garoto se apresentou: seu nome era Leonardo — ou Leon, como costumavam chamá-lo. Eu retribuí o cumprimento, dizendo meu nome. Ele tentava parecer simpático, e eu não sabia como reagir. As palavras saíram de mim como um espirro que eu não consegui conter:

— Já que estamos os dois aqui, obviamente tentando agir de maneira natural, mesmo que este seja um dos momentos mais vergonhosos da minha vida e eu queira que o chão se abra para me engolir inteira… — entabulei — o que acha de nos sentarmos para tomar esses refrigerantes? Assim podemos continuar fingindo que eu não pareço ridícula e, juntos, ignorar o fato de que você claramente acha toda esta situação muito engraçada.

Ele assentiu e levantou a latinha à frente, como se brindasse. Apontei na direção de um dos pátios, para onde o segui.

Conhecer alguém dificilmente é uma experiência tão única quanto se acredita. Na verdade, para mim, era mais como reconhecer pessoas já conhecidas numa pessoa nova. Eu trazia no subconsciente a concepção de diferentes arquétipos desde a infância e, pelas horas subsequentes, tentei encaixar Leon em alguns deles. No fim das contas, de uma maneira geral, eu o via como uma amalgama de traços de personalidade relacionáveis.

Ele estudava Relações Internacionais; frequentava o prédio de Comunicação Social quase exclusivamente para assistir às palestras abertas à universidade; nesse dia estava lá para encontrar seu irmão, que participava de um seminário. Tive a chance de falar também do meu irmão, embora não houvesse nada muito interessante que eu pudesse mencionar sobre Ariel.

Leon tinha o rosto redondo, bochechas almofadadas e uma barba espessa de fios negros no queixo. Geralmente sorria com os lábios pressionados, mas o fazia com um brilho nos olhos. Tinha um jeito atraente de juntar os cabelos com as mãos atrás da nuca e prendê-los para tirá-los do rosto. Eu apostava que ele tinha ascendência lusitana, talvez pelos lábios e queixo cinzelados.

Sentados diante um do outro, deixamos o tempo passar. Menti que eu tinha a tarde livre, forjando a oportunidade perfeita para aproveitar algumas horas com o rapaz. Discorremos sobre as semelhanças e as diferenças da nossa vida, tal comumente se faz ao encontrar alguém pela primeira vez.

Leon faria vinte e um anos no próximo mês, em junho; eu havia acabado de completar dezenove. Tínhamos hobbies parecidos: séries de tv; livros de suspense; filmes de terror, daqueles com sangue e vísceras.

Ele admitiu que ultimamente vinha fazendo muito uso de uma máquina de Pump It Up que havia no shopping perto de sua casa, embora ainda fosse cedo demais para considerar essa atividade um de seus passatempos favoritos; eu, por minha vez, não tinha nenhum apreço por jogos de videogame, apesar de concordar que os arcades da década de 90 tinham certo charme.

Ele gostava do verão de início de dezembro, do clima abafado que precedia as festas familiares. Eu preferia noites chuvosas de inverno. Nenhum de nós se considerava apto para esportes, mesmo que ele tivesse feito uma cesta perfeita ao lançar a lata de refrigerante vazia para dentro de uma lixeira a quase três metros de onde estávamos.

O ponto alto foi quando reconhecemos um no outro o mesmo entusiasmo que nutríamos pela prática da escrita.

— Você também? Não acredito! — exclamei.

— Não me considero nenhum Edgard Allan Poe da era contemporânea… — respondeu, fingindo modéstia. — Mas se um dia você for comparar minha escrita à dele, saiba que me sentirei muito lisonjeado.

Nota mental: compará-lo a Poe no futuro.

— Literatura norte-americana, hein? Você tem cara de ser um ferrenho nacionalista. Acho que tive a primeira impressão errada.

— Me julgue, se quiser. — Deu de ombros.

— Seu ídolo foi um cara inteligente. Isso, por si só, já faz de você mais interessante que metade das pessoas que encontrei por aqui nos últimos meses.

Ele levantou as sobrancelhas sugestivamente.

— Então… quer dizer que sou interessante para você?

Bem… tecnicamente, eu acabara de admitir que sim. Mas não deixaria que isso alimentasse seu ego ou me fizesse parecer uma libidinosa — não ainda, pelo menos —, portanto fingi não perceber a conotação ambígua de sua pergunta e apenas assenti de modo despretensioso.

Esse era só o início do processo de conexão. Nossa despedida mais tarde foi com um aceno de cabeça e a promessa de que nos veríamos outra vez numa das palestras de conhecimentos gerais.

Nossa palavra foi devidamente cumprida.

Na semana seguinte, sentamo-nos juntos no auditório do prédio de Comunicação Social e assistimos a uma enfadonha explicação, durante uma hora e meia, sobre o terceiro setor na sociedade civil.

A parte bacana do dia foi dividirmos uma refeição na lanchonete mais tarde e comentarmos, rindo, sobre como o palestrante parecia ter mais cabelo de um lado do que do outro na cabeça.

— Eu sinceramente não sei por que me obriguei a assistir até o final — admiti.

— Gosto de aprender um pouco sobre tudo, sobre qualquer coisa — falou Leon, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha. — Nunca se sabe de onde tiraremos inspiração ao criarmos enredo para uma ficção.

Ponderei.

— Acho que tem razão. Conhecimento de mundo nunca é demais. — E me pus a dissertar sobre as referências que eu puxara da memória a fim de escrever meu conto dramático mais recente: uma vez na infância, eu havia me perdido dos meus pais no meio de uma festa junina pública e quase acabara dentro da fogueira de São João. Apenas uma experiência ruim que, muitos anos depois, tornara-se tema para uma obra autoral.

— Eu gostaria de ouvir essa história — riu ele, enchendo seu hambúrguer de ketchup. — Ou melhor, lê-la.

Perante essa possibilidade, escondi parte do rosto numa mão. A ideia de lhe mostrar um dos meus contos soava terrível para mim. Eu geralmente não compartilhava o que criava com ninguém.

O que Leon poderia pensar da minha escrita? E se não fosse boa o suficiente para os padrões de quem lia literatura norte-americana clássica?

— Não acho que seja uma boa ideia — falei. — Você não iria gostar, de qualquer forma.

Ele sorriu de um jeito diabólico.

— Certo. Também não costumo mostrar o que escrevo a ninguém. Meu irmão acha que tudo o que sai da minha cabeça é pura merda, e eu reprovei em gramática quando estava no Ensino Fundamental. — Deu uma mordida no seu lanche e, enquanto mastigava, ruminava também uma ideia na cabeça. Finalmente propôs: — O que acha de você ser… a guardiã dos meus segredos em forma de prosa?

Franzi o cenho.

— Como assim?

Ele lambeu os lábios. Não olhava diretamente para mim, encarava as possibilidades invisíveis que, a partir daquele momento, surgiam diante dele.

— Bem, se meu irmão tiver razão e sua autocrítica também, somos ambos péssimos escritores. E, nesse caso, somos os únicos que não podem julgar um ao outro — respondeu.

Dei um gole no meu suco e retribuí o sorriso.

— E se minha autocrítica estiver errada, mas seu irmão, não?

— Aí você usa sua melhor cara de pôquer e mente para mim. — Deu de ombros. — Ou seja sincera e machuque meus sentimentos. Tanto faz.

— Qual das duas coisas você pretende fazer comigo caso ache minha escrita ruim?

— Não vou contar agora. Você vai ter que arriscar para descobrir — respondeu sem nem ao menos pensar. Então, lançou-me um olhar provocador. — Me mostre seu pior que eu lhe mostrarei o meu.

Joguei as costas contra o encosto da cadeira e cruzei os braços. A expressão em seu rosto era desafiadora, e, apesar da minha timidez, eu não recusaria um desafio de Leon, principalmente após a última hora de profundo enfado que havíamos sofrido juntos.

Eu entendia a razão por que ele sugeria aquilo: por meio da escrita, um artista veste máscaras diferentes das que utiliza socialmente; e, por mais que viéssemos sendo honestos um com o outro, toda espécie de interação interpessoal é sempre filtrada por um intrínseco senso de boas maneiras e traquejo social. Ele queria conhecer meus pensamentos íntimos além das barreiras do aqui e do agora, do certo e do errado.

Após o lanche, fomos à biblioteca. Acessei minha conta de e-mail num dos computadores, na qual eu havia guardado meu conto via anexo como um tipo de backup. Leon se sentou na cadeira do computador ao lado e, após receber meu arquivo de texto, puxou de dentro da mochila algumas folhas de papel.

— Gosto de escrever à moda antiga — explicou, entregando-me seu manuscrito e cumprindo sua parte do acordo.

Olhei o título, as primeiras linhas… Caramba! Ele tinha uma letra bonita demais, como a de quem escreve convites de casamento a próprio punho.

— Talvez eu também fosse de la vieille école caso minha letra fosse assim. — Deixei escapar. Ele fez cara de quem não tinha entendido. — Bonita, quero dizer. Caso minha letra fosse bonita em vez de garranchos tortos — completei.

— Gosto do contato com o papel.

Fiz que sim, pois entendia. Mesmo assim, contrapus:

— Também há uma certa magia no pressionar de teclas.

Ele abriu mais um sorriso de lábios comprimidos. Depois, virou-se para a tela do computador, pousou a mão sobre o mouse e encerrou o assunto:

— Então, que a mágica comece! — Abriu o arquivo e começou a ler.

A essa altura, eu já não me sentia tão retraída. Tinha seu manuscrito em mãos e o usaria de refém se fosse necessário — era melhor que Leon gostasse do meu conto, pelo seu próprio bem.

Quinze minutos depois, estávamos um encarando o outro, mal conseguindo manter nossas vozes em tom de sussurro. Definitivamente não conseguia acreditar que ele tivesse sido reprovado em gramática e, embora não o comparasse de forma alguma com Poe, eu o admirava por seu próprio estilo.

Leon demonstrava o mesmo interesse pelo meu texto. Passamos cerca de meia hora discutindo sobre nossas impressões; seus elogios me encheram de orgulho.

Empolgamo-nos a ponto de sermos praticamente expulsos da biblioteca por uma funcionária de semblante enfuriado e indicador constantemente pressionado contra os lábios num pedido insistente por silêncio.

Uma vez fora do prédio, no jardim em que mais ou menos um mês atrás Leon havia se sentado com seus fones de ouvido, notei que já escurecia e que, portanto, eu precisava voltar para casa.

Dissemos algumas últimas palavras a respeito de literatura e do nosso hobby favorito. O Leon que estava diante de mim agora não era o mesmo que eu contemplara à distância sob a árvore, nem aquele que pressionara o botão da máquina de refrigerante. Eu reconhecia nele uma parte do que havia dentro de mim; um dos arquétipos em que eu o encaixava era o meu próprio.

Seu olhar negro e inteligente, suas feições ligeiramente lusitanas, sua blusa justa à altura do peito… tudo isso ganhava um novo significado, chegando ao ponto de parecer desimportante. Agora eu o admirava pelas melhores razões.

Terminamos a conversa com um abraço e uma troca de números de celular. Eu o veria de novo, e não seria quem-sabe-numa-próxima-palestra.

***

No dia seguinte, logo ao me levantar da cama, recebi uma mensagem dele.

“Tive um sonho essa noite.”

“Que tipo de sonho?”, digitei.

“O tipo que pode ser escrito.”

Uma resposta críptica. Não precisei esperar muito para que ele desenvolvesse melhor o assunto, já que, mais tarde, Leon esperava por mim na saída do prédio de Comunicação Social. Tomou-me pelas costas e me conduziu até um banquinho de madeira.

— Escute só. Eu estava pensando sobre uma conversa que tivemos ontem, sobre o que você vem estudando nas suas aulas de filosofia — começou ele.

Eu havia comentado brevemente, em algum momento, sobre a aula que eu interrompera batendo o nariz contra a carteira.

— Acho que você deve ter tido uma baita noite de insônia para ter ficado pensando sobre disciplina do curso dos outros — brinquei.

Ele fez uma pausa.

— Na verdade, foi exatamente o que aconteceu — falou, sério. — E depois tive um sonho sobre isso.

Ajeitei-me no assento.

— Está bem, então me conte.

Ele respirou fundo.

— As ideias ainda estão um pouco misturadas na minha cabeça, mas… nesse meu sonho, eu havia viajado para uma outra realidade, uma dimensão fantástica que parecia muito com a que eu vivo agora, exceto que algumas coisas estavam muito diferentes. Foi bizarro.

Pensei a respeito.

— Parece um ótimo tema para filme de ficção científica.

Ele sorriu.

— Isso mesmo. — Olhou profundamente nos meus olhos. — Agora, já que a proposta maluca que eu lhe fiz ontem teve resultados surpreendentes…

Levantei a palma.

— Não diga, deixe que eu complete seu raciocínio. — A mesma ideia passava pela minha cabeça. Não podíamos roteirizar um filme e gravá-lo, mas… — Podemos escrever algo a partir dessa ideia.

Eu aceitaria colaborar com a criação de uma obra de ficção. Leon tinha uma veia peculiar para descrições poéticas que não existiam na minha escrita; e eu poderia contribuir com ideias e planejamento de enredo, o que considerava meu ponto forte.

Concordamos em nos encontrarmos novamente após nossas aulas da tarde, para então partirmos à minha casa, onde poderíamos discutir um pouco mais sobre nosso novo projeto.

Avisei meu irmão por mensagem de celular que estaríamos recebendo visita e pedi que ele desse um jeito de fazer meu quarto parecer arrumado antes que eu chegasse com Leon. Ele se recusou, dizendo que estava ocupado. Mas então eu lhe ofereci um vale para qualquer favor que ele me pedisse no futuro como compensação, o que magicamente fez com que Ariel abrisse tempo em sua agenda para me ajudar.

Eu morava num condomínio fechado e elegante de Santa Alice, uma cidade a cerca de trezentos quilômetros da capital do Rio de Janeiro. A cidade era muito grande, mas minha casa ficava a apenas quarenta minutos da universidade.

Ao entrarmos pela porta da frente, surpreendi-me ao ser recebida com um lanche que minha mãe preparara para nós; Ariel tinha sido tão rápido em montar um ambiente acolhedor durante pouco mais de meia hora que havia envolvido até minha mãe.

Para quem chegava à minha casa pela primeira vez, a impressão geralmente era boa. Se tinha algo que poderia ser considerado um talento nato da minha mãe era sua capacidade de fazer as coisas parecerem melhores do que eram de fato. Era o tipo que passava aspirador de pó nos cantos das paredes e tirava dos armários da cozinha os copos de vidro mais bonitos quando recebia visita; ela também era muito preocupada com a autoimagem, alisava os cabelos no salão todo mês, besuntava-se de creme anti-idade antes de dormir e vestia roupas apenas de cores específicas — as que supostamente combinavam bem com sua pele; hoje estava de roxo.

— Prazer em conhecê-lo, me chamo Sandra. — Apresentou-se a Leon com um aperto de mão, embora em seguida o puxasse para lhe dar um abraço e estalar um beijo em sua bochecha.

Parecia satisfeita com a visita inesperada, e devia mesmo estar. Desde que havíamos nos mudado para Santa Alice, há oito anos, não era do meu feitio lhe apresentar amigos ou sair muito do quarto. Notei que minha mãe usava brincos, o que nunca fazia quando estava em casa, principalmente após chegar do trabalho e tomar um banho.

Leon se obrigou a mostrar um pouco mais os dentes dessa vez. Também apertou a mão de Ariel antes de pegar um pedaço de sanduíche de queijo com presunto da bandeja sobre a mesinha da sala.

Meu irmão e eu éramos muito semelhantes em vários aspectos, exceto que ele era um baita de um aproveitador. Tínhamos a mesma pele negra e lábios grossos, e quase a mesma altura; por outro lado, ele era mais magro e tinha os cabelos bem curtos, enquanto os meus eram longos e encaracolados.

A sala da minha casa era pintada e mobiliada de acordo com as revistas periódicas que minha mãe gostava de comprar. “Tons claros e suaves para o cômodo de entrada”, ela tinha dito repetidamente durante um mês inteiro na última reforma, pois era o que um tal de feng shui dizia para as leitoras “donas de casa que também trabalham fora e que se dedicam a causar boas impressões”.

Não demorou muito, de todo modo, para que Leon e eu subíssemos as escadas e fôssemos para o meu quarto, onde a noção de decoração limitada e narcisista de dona Sandra não tocava há pelo menos três anos.

Fiquei satisfeita ao descobrir que todas as peças de roupa que eu tinha abandonado sobre a cadeira do computador aquela manhã haviam sido enfiadas dentro do guarda-roupa. Ariel inclusive fizera minha cama. Ele devia estar realmente planejando me pedir algo que eu jamais aceitaria em outras circunstâncias.

— Sejais bem-vindo ao meu reino, ó nobre cavaleiro! — brinquei.

Leon se curvou dramaticamente para a frente.

— Tendes um reino deveras asseado, Vossa Majestade — respondeu.

Ouvi Ariel rir debochadamente no corredor a caminho de seu próprio quarto antes de bater sua porta. Apenas meu irmão e eu sabíamos o quão não asseado aquele quarto costumava ser em ocasiões ordinárias.

Sentamo-nos na cama. Leon tirou a mochila das costas e, de dentro dela, pegou seu caderno. Com caneta na mão, pôs-se a anotar todas as ideias que vinha tendo até aquele momento. Iniciava-se o processo de brainstorm.

Eu nunca havia escrito nada com a ajuda de outra pessoa, portanto não sabia se o nosso projeto daria certo.

Nunca fui do tipo que sonhava em ser publicada por uma editora de renome e conquistar reconhecimento mundial. Por diversão, algumas pessoas chutavam uma bola para dentro de uma rede nos fins de semana, outras praticavam caminhada ao redor do rio. Minha mãe gostava de ir à igreja orar, e meu irmão curtia assassinar terroristas fictícios usando o teclado do computador. Eu, por minha vez, só escrevia.

De um jeito ou de outro, eu podia aproveitar o momento para estar na presença de Leon — gostava dela. Ele era um sujeito sensato; tinha uma boa noção de quando falar e quando ficar quieto, ao contrário de pessoas como Eva, por exemplo.

Enquanto ele escrevia suas ideias com aquela caligrafia perfeita, eu podia ver de perto como seus cílios eram longos, observar a maneira como sua pele bem branca reluzia com a oleosidade; não eram características ruins, não nele. De alguma forma, ele fazia tudo se encaixar perfeitamente em seu rosto.

Leon explicou um pouco mais sobre o sonho que havia tido, e eu comecei a imaginar cenários, personagens e conflitos. Como esperado, ele tinha uma visão poética do que pretendia com seu texto; ponderava sobre a moral que seria transmitida por meio do drama particular de cada núcleo de personagens, e eu tentava colocar ordem naquela enxurrada de pensamentos, identificando o início, o meio e o possível fim de cada ato.

Foi um exercício interessante e produtivo, até termos que definir como seria nosso protagonista. Eu imaginava um jovem sisudo, introvertido e muito cético; ele idealizava uma moça espontânea, enérgica e cheia de curiosidade pelo mundo. Isso me surpreendeu. Será que estávamos projetando nossa própria personalidade no personagem principal? Ou talvez tentando criar um modelo baseado nas características que admirávamos em outras pessoas?

Ele abaixou a caneta e ficou calado por um instante, pensativo. Fui eu quem trouxe a solução:

— E se tivéssemos dois protagonistas?

Ele franziu o cenho.

— Com dois núcleos de conflito separados? — perguntou.

— É, exceto que poderiam funcionar como anti-heróis um para o outro — sugeri. — Ambos com o mesmo objetivo, mas maneiras diferentes de pensar suas estratégias. Assim eles terão de lutar um contra o outro em determinados momentos, mas precisarão chegar a um comum acordo a fim de derrotar o antagonista da história.

Ele abriu um sorriso complacente.

— Visões diferentes, mas que chegam a um comum acordo? — repetiu. — Assim como temos que fazer agora para decidir qual será nosso protagonista afinal?

— Isso mesmo.

Ele voltou a pegar a caneta e anotou tudo tão rapidamente que sua resposta só veio depois:

— Eu escreveria uma parte da história, e você, a outra?

— Isso. Mas as duas se conectariam em alguns momentos. Momentos em que você e eu teríamos que trabalhar juntos — expliquei.

— Assim como nossos personagens — completou. “Isso é brilhante”, a expressão em seu rosto deixava claro. Refreei o ímpeto de estufar o peito como um pavão orgulhoso.

Começamos a falar sobre filmes e livros que nos inspiravam. Leon conhecia muitos contos de terror de séculos passados. Admiti que eu não tinha um repertório de leitura tão vasto quanto o dele, mas gostava de alguns autores menos famosos, bem como best-sellers estadunidenses.

Ele se levantou em determinado momento e foi até minha estante de livros, avaliando os títulos impressos na lateral da brochura. Passou os olhos pela minha coleção inteira de Dan Brown, alguns livros de autoajuda que eu havia recebido da minha mãe ao longo dos anos, O Diário de Anne Frank, algumas obras brasileiras… e então, os livros de quando eu era criança: As Crônicas de Nárnia, A Marca de uma Lágrima, a série Goosebumps.

Eu podia imaginar sua mente funcionando, julgando meu gosto pelos gêneros que eu lia. Será que era uma boa ideia deixá-lo fazer isso? E se ele não se identificasse com nada daquilo?

Parou subitamente e puxou um livro da estante.

O Mágico de Oz — leu em voz alta. — Por que este é seu livro favorito?

Surpreendi-me com a pergunta.

— Não é meu favorito.

Ele olhou outra vez para a estante, e então para a velha edição em sua mão.

— Os demais livros dessa prateleira parecem não ter sido tocados durante muito tempo, mas não este aqui — argumentou, abrindo o exemplar numa página qualquer.

Pus-me de pé e me aproximei. De fato, havia uma fina camada de poeira sobre a maior parte dos outros livros (fazia tempo desde a última vez que eu me dera ao trabalho de pegar num espanador), algo que não vinha chamando minha atenção nas últimas semanas. Ariel bem que podia ter dado um jeito naquilo!

Aquele exemplar ancestral de O Mágico de Oz, que eu havia ganhado de presente quando ainda mal sabia ler, tinha parte do pó batido — eu o havia retirado da prateleira mais recentemente. A percepção de Leon era impecável.

Ele estava certo, existia algo de especial naquele livro. Eu o tomei com delicadeza da mão do rapaz e o devolvi ao seu lugar na estante.

— O motivo é bobo — respondi, forçando um tom casual enquanto tentava justificar. — Uma longa história.

Antes que eu deixasse o livro lá, Leon colocou a mão sobre a minha, numa tentativa de impedir meu movimento.

— Não existe esse negócio de história longa e boba. Nenhuma história é boba — falou. Olhei para ele, ainda sentindo nos dedos a textura puída da capa do livro. — Eu gostaria de ouvi-la. — Recolhi o braço e desviei o olhar para a cama, onde as anotações de Leon descansavam. Essa hesitação deve ter durado menos de meio segundo, mas foi o bastante para que o rapaz notasse minha relutância. Ele, em vez de insistir, concedeu-me distância. — Mas podemos deixar para lá, se quiser.

Afastou-se e voltou a se sentar no colchão, pegando de volta o caderno e a caneta. Leon não me obrigaria a falar sobre algo que eu não desejasse; e isso, por si só, compelia-me a revelar tudo o que ele quisesse saber.

— Não é nada de mais, sério — reforcei. A maneira como eu havia tomado o livro fazia parecer que eu tentava esconder um segredo. — Há um trecho que eu gosto muito nesse livro. Às vezes ele me vem à cabeça, mas sou péssima em memorizar as coisas e, por isso, nunca sei as palavras certas. Aí tenho que reler essa parte para relembrar. — Ele demonstrava curiosidade, mas apenas me encarava em silêncio. Para provar que esse não era um tópico delicado, peguei o livro mais uma vez e abri na página já marcada por uso. Pigarreei e comecei a ler o trecho do qual eu havia acabado de falar: — “Por mais que nossas casas sejam tristes e cinzentas, nós, as pessoas de carne e osso, preferimos viver nelas do que em qualquer outro lugar, mesmo o mais lindo do mundo. Não existe lugar igual à casa da gente”.

Sorri para ele como quem dizia “viu? Nada de mais” e devolvi o livro à estante uma segunda vez.

— Por que esse trecho é importante para você? — perguntou.

Finalmente me sentei ao seu lado.

— Bem... — entabulei. Como explicar sem soar melodramática? — Vivi minha infância toda na capital. Minha mãe se mudou para cá comigo e meu irmão quando se divorciou do meu pai. Acho que nunca consegui me adaptar bem ao ambiente de Santa Alice.

Leon mordeu um lábio, pensativo.

— Você teve uma boa infância lá?

Pensei a respeito. Era uma pergunta interessante.

— Pelo tanto que consigo me lembrar, sim. Mas os últimos anos foram terríveis. A relação dos meus pais foi ficando cada vez mais… — Busquei a palavra. Usei a única que me parecia apropriada: — Quebradiça.

Ele olhou para baixo.

— Imagino que você sinta falta da capital.

Balancei a cabeça negativamente.

— Na verdade, não. Nem um pouco — respondi com sinceridade. — Acho que sinto falta de ser criança.

A inocência de quando se é tão jovem. Às vezes, eu queria ter isso de volta, tanto quanto alguém que deseja voltar para casa.

Leon soltou o ar ruidosamente.

— É duro ser de carne e osso…

— Quê?

— Não existe lugar igual à casa da gente para pessoas de carne e osso. Como você acabou de citar.

Sorri.

— Não disse que era bobeira?

— Ainda não acho que seja. — Ele balançou brevemente o caderno diante de mim. — Veja, os sonhos que temos durante a noite também podem ser bobeira, vistos dessa forma. Mas aqui estamos nós, criando um universo com a ponta de uma caneta. — Ele apontou na direção do meu peito. — Isso que você acabou de me contar é um conjunto de lembranças e sentimentos reais. Acho que você deve usá-los como combustível.

Franzi o cenho.

— Pode ser usado de alguma forma no nosso projeto?

Ele fez a caneta tocar o papel. Pude vê-lo escrever com sua letra de convite de casamento: “não existe lugar igual à casa da gente para pessoas de carne e osso”.

Encarou-me mais uma vez, com um sorriso de lábios comprimidos ainda maior, suas bochechas brilhando à luz artificial do meu quarto, ruguinhas simpáticas em torno dos olhos escuros. Levei um breve momento para compreender o que ele queria dizer, mas entendi: por mais bobas que possam parecer nossas emoções antigas e profundas, são elas que alimentam nossa criatividade.

Leon vinha fazendo bem mais do que debater ideias para uma ficção. Ele estava buscando o melhor que havia em mim, trazendo-o à superfície.

De repente, fui acometida por um pensamento… um pensamento que eu naturalmente acharia irrelevante, mas não agora — não na frente de Leon, após ele ter me provado que nenhuma história é de fato boba: eu estava muito satisfeita por ter ficado olhando através da janela não fosca do primeiro andar do prédio de Comunicação Social um mês atrás.

Fitar Leon agora me fazia experimentar sensação de início — sensação de começo… do tipo despretensioso que não avisa o que é; do tipo que, quando notamos que existe, já estamos no meio da narrativa; do tipo que quase sempre pertence ao passado; do tipo que chega para modificar tudo.

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