— Você não é mais vegetariano? — perguntei.
Leon parou, virou-se e abriu um sorriso ao me ver.
Já era quinta-feira à noite, dois dias desde o incêndio. Eu havia deixado a rua cheia de curiosos, paramédicos, bombeiros, policiais e — antes que a notícia se espalhasse por outros meios — repórteres do Diário Catedral. Após isso, minha visita ao Hospital Memorial de Santa Alice não havia sido um passeio; eu passara a noite apoiando Leon enquanto não recebíamos novidade sobre Dário. Finalmente fôramos informados de que o homem estava bem, que seria mantido sedado por alguns dias, talvez semanas, e que depois poderia ir para a casa de algum parente. Eu não tivera a chance de conversar sobre nada relevante com Leon.
Por isso eu estava ali hoje, no estacionamento atrás do Delícias Fluminenses, que já estava fecha
— Você mentiu para mim — sufoquei. Era como se estivessem comprimindo meu peito.Ele correu até mim e puxou violentamente o frasco.— Mexeu nas minhas coisas?— Você mentiu para mim…Leon tapou o frasco e se aproximou, levando as mãos ao meu rosto.— Natasha, escute…Dei um salto para trás.— Você disse que Natasha parecia feliz com Murilo. Disse que isso incentivou você a superá-la!Agora estava gritando, com os dentes trincados. Não sabia se sentia ira, medo, desapontamento. Talvez raiva de mim mesma. Os últimos minutos de felicidade e prazer se derretiam numa névoa tóxica. Se ele vinha me enganando desde o início, tudo o que dissera ou fizera desde então também podia ser mentira.— É verdade. Eu e Natasha não tínhamos nada — defend
Já era meio da tarde quando acordei de um pesadelo. Não, não havia sido um pesadelo. Eu havia visto outra vez a casa em chamas, mas, dessa vez, Dário não saía dela vivo. Era uma lembrança de outra ramificação. A mesma dor martelava minha cabeça.“Um paradoxo”, concluí, “provoquei mais um paradoxo”.Isso não importava agora. Em breve, estaria acabado. Precisava agir rapidamente.Servi canja para Dário mais uma vez e dei continuidade ao meu plano. Sobre a cama, o notebook mostrava o comprovante de passagem de ônibus. A viagem começaria às 21:00; quando eu chegasse à capital, partiria para o aeroporto e compraria passagem para qualquer lugar: Uruguai, Canadá, Suécia ou sei lá.Glinda me seguia pela casa, sentia minha agitação. Juntei uma quantidade significativa de sucos de caixinha,
Voltei o celular ao ouvido.— Henrique, chame a polícia! — gritei.O homem partiu para cima de mim, puxou o telefone e o lançou para longe.Soltei um berro, saltando para trás e chocando as costas contra a parede.Estudei-o. O cabelo estava muito curto, a barba ainda crescia; tinha a faixa em torno do braço. Era idêntico a Dário. Mas não era ele.Lembrei-me de que, mais cedo, ele se recusara a tomar a canja. Produto animal; o tipo de alimento que Dário normalmente comia, mas não o Dário daquela tarde.— Você não é ele — acusei, juntando as informações. — Ela trouxe você para cá, não trouxe?Leon ainda sorria. Também não era o Leon que me seguira pelo corredor de seu prédio apenas de toalha. Era outro. Da mesma maneira que vinha existindo, esse tempo todo, duas Nat
— Fique longe de mim — murmurei. Comecei a andar.Leon me segurou com força pelo braço.— Espere. Vamos conversar — pediu. — Juro que não escondi mais nada de você. Juro que não vou esconder nada de agora para a frente.Pensei em pegar minha bolsa e sair pela porta. Dizer que ele desse meia-volta toda vez que me visse na rua. Mas seu toque me segurava no lugar; depois de eu ter feito tanto para tê-lo ali comigo, vivo, afastar-me dele seria como perder meu propósito na vida.Olhei em seus olhos.— Não sei…— Natasha, eu amo você. Nunca faria nada para machucá-la. — Eu percebia um tom de sinceridade em suas palavras. E se eu estivesse exagerando? — O que passou, já passou. Só temos o agora.Ele se aproximou ainda mais. Seu toque foi ficando cada vez mais delicado. Senti o cheiro de banho
Era como não conseguir despertar de um sono inquieto.Eu sabia onde estava, mas estava em muitos lugares. O tempo era como uma criança, tentando encaixar a peça quadrada no buraco circular — no triangular, no retangular… várias outras formas geométricas, até, finalmente, encontrar o encaixe correto.A discussão na cozinha do apartamento. Giu me olhando com estranhamento no quarto da pensão, após eu sair do banheiro com a blusa molhada e suja de café. O corpo de Eva, suspenso no ar. O gosto podre da corda. O cheiro característico do hospital. Os quadros post mortem no museu. As mãos que apertavam minha garganta. O beijo. As plantas do pomar. A chuva…De novo, mas diferente. De novo e igual.Algo estava finalmente mudando. As peças voltavam a se organizar. Senti meus braços, minhas pernas… mas não meu peso. Estava flut
… do carro.Um estampido agudo torturava meus ouvidos. Algo viscoso e quente escorria do meu nariz.Saiam do carro!— Você está bem? — Leon perguntou ao meu lado. Levantei a cabeça, tonta. Tudo doía. Meu rosto, meus braços, minhas pernas. Olhei pelo para-brisa despedaçado e vi a árvore bem perto de nós. Fumaça cinza-escura saía do motor. Havíamos parado. — Natasha, me responda!— Estou — falei.O estampido ia diminuindo. Eu ouvia choro… o choro de Eva:— Não. Não, não, não, não, não…Saiam agora!Passei a mão pelos cabelos e senti dezenas de fragmentos de vidro presos neles. Olhei pelo retrovisor e vi que os passageiros haviam conseguido se segurar bem. Ninguém parecia machucado; ninguém além de mim.
Outubro de 2013Está chovendo. Eu costumava observar as gotas escorrendo pelo vidro da janela, deixando rastro. Você me ensinou a não apenas admirar coisas bonitas, mas a me integrar a elas. É por isso que escrevo sob um guarda-chuva. As extremidades desta carta devem estar um pouco retorcidas — o papel está molhado neste momento. Até chegar a você, estará seco, e a chuva já terá passado; mas isso não faz diferença. Não sei se o lugar em que você está tem janela; não sei se pode olhar o céu. Escreverei, então, apenas sobre o que sei de fato.Minha família decidiu se mudar de Santa Alice. Não acham mais esta cidade “segura o suficiente”. Acho que vão para algum lugar ao sul, pelo menos até Ariel finalmente conseguir passar na prova de admissão para ingre
Tempestade Perfeita é tanto uma ode àquilo com que eu mais me importo quanto um completo desrespeito comigo mesmo. Eu poderia, honestamente, tê-lo escrito às escondidas, com um sorriso maníaco no rosto, engendrando maneiras de evitar uma merecida palmatória. Esse é o motivo pelo qual, em primeiro lugar, incluo esta nota. Desde o início, tive o ímpeto de dizer a mim mesmo “você não deveria fazer isso”.Uns anos atrás, sujeitei-me a não escrever nada. Precisava investir meu tempo e canalizar minhas energias à realização de outras tarefas — mais importantes e imediatas. Tentando encontrar uma brecha nas regras, comecei a escrever um diário. De certo modo, eu me desobedeci.Algum tempo depois, recebi um conselho precioso: “bons escritores não escrevem apenas sobre aquilo no que têm especialidade; caso contrário, ac