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Prólogo: Folie à Deux - III

Alguns fatos: eu precisava de um banho; Ariel não convenceria ninguém de que não havia bebido. Não poderíamos voltar para casa nessas circunstâncias.

A princípio, a ideia era nos enfiarmos cada um em seu respectivo quarto enquanto minha mãe ainda dormia, mas após esperar o ônibus por mais de uma hora, demo-nos conta de que talvez já fosse muito tarde para que esse plano desse certo. Minha mãe costumava se levantar cedo, mesmo nos fins de semana.

Quando Leon sugeriu que fôssemos para a casa dele, de verdade dessa vez, não me pareceu má ideia — aliás, seria um alívio não ter que me despedir dele ainda, por mais cansada que eu estivesse.

Eva, satisfeita com sua missão cumprida, tomou seu próprio rumo. Ariel e eu acompanhamos Leon no ônibus para o outro lado da cidade. Encostada na janela, eu podia ver o arvoredo passando lá fora, a vegetação que havia em torno de uma das ramificações do profundo e extenso rio de Santa Alice.

Leon morava numa casa pequena, muito mais humilde que a minha. Tinha um cachorro preto, enorme e gentil, que nos deu boas-vindas assim que entramos no quintal; seu nome era Vizir.

O rapaz pediu que fizéssemos silêncio para não acordarmos seus pais nem seu irmão. Cada um de nós tomou uma ducha e vestiu um pijama de Leon. Ele colocou um colchão em seu quarto e me ajudou a forrá-lo, depois pegou seus próprios travesseiros e partiu para dormir no sofá, deixando o chão preparado para Ariel e sua própria cama para mim.

Desmoronei feito pedra. Dormi o suficiente para compensar todas as horas de sono perdidas. Quando acordei, era meio da tarde. Ariel ainda estava para lá de desmaiado no colchão.

Abri a porta do quarto com cuidado, verificando o corredor. Era possível ouvir a voz de Leon conversando com alguém na cozinha. Trilhei silenciosamente o caminho até o banheiro. Após me fazer apresentável, ainda vestindo o pijama masculino que ficava enorme em mim, segui a voz.

Leon estava sozinho diante da pia da cozinha, de costas para a porta. Resolvi surpreendê-lo com um abraço; ele era do tipo que gostava de abraçar, afinal. Assim que o toquei, ele largou tudo o que vinha fazendo, mas não disse nada, nem ao menos retribuiu o gesto. Ficou parado, com as mãos para cima como quem sofria um assalto relâmpago.

— Boa tarde — falei.

— Natasha? — perguntou Leon. Só que sua voz vinha da direção da outra porta, a que dava para a sala.

Afastei-me do homem na cozinha e me dei conta de que Leon estava, na verdade, parado no umbral. Eu abraçara outra pessoa!

Levei a mão à boca quando o Leon falso se virou para mim. Ele tinha a mesma altura, mesma forma física, rosto redondo, cílios grandes e bochechas oleosas. Mas não era Leon, era uma… outra versão dele.

Vendo a surpresa e a confusão no meu rosto, Leon — o verdadeiro — se aproximou de mim e colocou a mão no meu ombro.

— Esse é meu irmão Dário — explicou.

— E-eu… eu pensei que… — comecei a me justificar, alternando olhares. Por que ele nunca tinha me dito que seu irmão era gêmeo?

— É. Isso acontece bastante — falou o outro Leon.

Senti uma onda de calor, de vergonha, subir pelo meu pescoço.

— Desculpa!

Dário deu de ombros.

— Não é tão ruim ser agarrado por garotas aleatórias. — Pegou a faca que vinha segurando antes e continuou cortando qualquer coisa sobre uma tábua de carne.

A semelhança realmente só ia até aí. Os cabelos de Dário eram curtos como os de Ariel, e ele sorria de um jeito diferente.

Leon me empurrou levemente pelas costas em direção à sala. Quando ficamos sozinhos, ao lado do sofá, senti que eu precisava consertar a situação.

— Juro que não sabia!

Ele sacudiu a cabeça.

— Tudo bem. Eu não havia contado para você. — Tinha um semblante tranquilo. Fez um gesto com a mão, como quem pedia que eu deixasse de me preocupar. — Não é importante. É só meu irmão.

Forcei-me a esconder a vergonha.

Agradeci mais uma vez pelos favores que Leon vinha fazendo por mim e disse que acordaria Ariel para irmos embora. Ele avisou que minha mãe já havia telefonado para saber como estávamos. Era hora de voltar para casa.

Antes que eu deixasse a sala, Leon segurou meu pulso e olhou sério para mim:

— Natasha, ontem à noite… — entabulou. Ele começava a ficar sem jeito. — Eu… quero dizer, aquilo que aconteceu… era para valer?

Dei minha resposta sincera:

— Ainda é para valer, se você quiser.

Ele abriu um sorriso ainda maior. Espiou na direção da cozinha, para verificar se seu irmão ainda estava lá. Então se aproximou de mim, deixando o acanho de lado e repetindo o beijo que havíamos dado ontem. Era como se selássemos um acordo, aqui, agora.

Voltei para casa tão cedo quanto pude. Cálculo final: Ariel havia usado seu “vale-favor”, e agora estávamos quites; minha mãe não desconfiou da nossa aventura pela vida noturna; eu descobrira novos motivos pelos quais confiar em Eva; e, o melhor de tudo, a relação que eu tinha com Leon evoluíra.

A essa altura, no entanto, eu jamais veria nossa história com olhos de leitor de contos de amor. Desde meus primeiros anos de puberdade — mesmo que um dia houvesse sido o tipo de garota que se encantava na frente da tv, com DiCaprio sacrificando-se por sua amada nas águas congelantes do Atlântico Norte —, eu nunca tive grande desejo de me relacionar romanticamente com alguém.

Crescera assistindo o casamento dos meus pais se despedaçar, enquanto minha mãe se esforçava ferrenhamente para fazê-lo funcionar. Aliás, aproveitando a menção, eu compararia minha mãe com os músicos do Titanic, que continuaram tocando seus instrumentos mesmo enquanto a água invadia os níveis inferiores do navio, com o propósito de acalmar os passageiros; permaneceram em sua função por quanto tempo conseguiram, até que acabaram por se afogar.

Essa era Sandra, uma instrumentalista perseverante, por vezes opiniática, que pelejava para manter as aparências, produzindo os acordes certos e mantendo o sorriso no rosto a despeito das tragédias que destruíam tudo ao redor. E, nessa comparação, seu conjúgio seria o transatlântico, belo e suposto a ser preeminente, partindo-se ao meio. Nenhuma melodia morredoura havia impedido que as relações extraconjugais do meu pai levassem aquela embarcação ao fundo do oceano. E, assim, minha mãe se afogara, carregando as malas para fora de casa, mudando-se sozinha com seus dois filhos pequenos para uma cidade bem longe da capital.

Seria injustiça, por outro lado, se eu conferisse ao matrimônio disfuncional dos meus pais a responsabilidade por não ser uma entusiasta pela concepção de amor romântico. Outros elementos me influenciaram ao longo da vida: novelas clichês, meus ex-namorados da adolescência e, acima de tudo, o fato científico de que o ser humano não foi feito para amar incondicionalmente a mesma pessoa por uma vida inteira.

Não era como se eu não acreditasse na monogamia ou nos laços de afeto socialmente construídos e entranhados. Não! Achava-os, inclusive, muito úteis. A questão era apenas que me apaixonar nunca foi uma das minhas prioridades na vida, tampouco eram os relacionamentos provisórios e múltiplos que jovens da minha idade costumavam ter dentro do período de uma única noite. A ideia de me relacionar com alguém era envolvente, mas apenas tanto quanto era qualquer outra.

Por essa razão — ou apesar dela —, conhecer Leon cada vez mais a fundo era uma jornada na qual eu gostaria de embarcar. Pensar nisso me deixava ainda mais inspirada do que de costume, e, quando eu menos esperava, já estava abrindo o arquivo de texto no computador, revisando parágrafos e escrevendo alguns novos.

Nosso projeto havia começado como uma espécie de brincadeira despretensiosa, afinal ambos tínhamos boas ideias e conhecimento decente de gramática; agora, de todo modo, acabava servindo também como uma maneira de me manter conectada a Leon mesmo depois de nos despedirmos. Enquanto escrevia, comunicava-me com ele, criava material que mais tarde seria usado como assunto para uma conversa.

Pensando bem, não havia por que negar: eu o achara interessante desde a primeira vez que o vira. “Atração à primeira vista”, como eu costumava chamar. Ao contrário de como acontece na ficção, os relacionamentos românticos mais verossímeis não são aqueles que se desenvolvem aos poucos, mas os que têm uma progressão acidentada.

Talvez num blockbuster, a moça descobriria no decorrer de um mês inteiro que sempre havia sido apaixonada pelo seu amigo de infância, então eles enfrentariam conflitos que apenas os tornariam mais próximos, para no final se casarem e viverem felizes para sempre. Na vida real, trocava-se beijo com um desconhecido numa casa noturna e se sustentava um namoro minimamente satisfatório por sabe-se lá quanto tempo durasse. Eu, por minha vez, optava por deixar a correnteza fluir. Minha ligação com Leon não havia começado numa noite de festa como a de ontem, mas era tão genuína como se tivesse.

Genuíno. Foi o adjetivo que usei durante as primeiras semanas para qualificar o que tínhamos. Ele me encontrava após as aulas, às vezes passeávamos pelo campus da faculdade, às vezes visitávamos a casa de um dos dois. Leon não era perfeito, mas era o mais próximo disso que eu poderia encontrar.

Descobri ter a habilidade de deduzir o que ele estava pensando. Ele tinha um ar de mistério a ser desvendado; isso fazia com que muita gente não se simpatizasse com ele logo de cara, mas eu não demorei muito para entender a maneira como o rapaz funcionava.

Seu sorriso podia ser de boca fechada, mas as marquinhas em volta dos olhos denunciavam quando a alegria era verdadeira; parecia nunca chorar, mas seu olhar vago servia para que eu soubesse quando ele estava triste. Jamais me interrompia quando eu divagava tão infindavelmente que mal lhe dava espaço para diálogo, porém uma pequena contração assimétrica dos lábios me indicava o momento de ficar quieta ou mudar de assunto. Seus silêncios gritavam, e eu não precisava contar isso para ele — Leon sabia. Poderia, inclusive, dizer que, em algum nível, eu também era um livro aberto. Éramos como comunicadores que captavam a mesma frequência de rádio.

— Quem diria — comentou Eva, um dia em que eu estava particularmente ansiosa para que as aulas terminassem logo. — Você nunca me pareceu o tipo que se apaixona fácil.

— É cedo para chamarmos isso de qualquer coisa — respondi da minha carteira usual. — Ainda mais de paixão.

— Se você diz… — Ela deu de ombros. — Mas consigo imaginar os dois com uma criança e um cachorro. Você cuidando do jardim, enquanto ele mexe os pedaços de carvão na churrasqueira.

Eu ri, em parte por concordar em segredo, mas também por condenar sua visão caricata de vida familiar. Ah, paixão! Paixão era pura química; descarga de emoções provocada por um mecanismo cerebral; era primitivo, ancestral, portanto não necessariamente incluía uma churrasqueira, uma criança, um cachorro ou um jardim.

Mas Eva estava certa. E “abrasador” foi o segundo adjetivo que comecei a usar. Leon e eu descíamos pela toca do coelho rumo ao País das Maravilhas. Era mesmo abrasador como apenas as paixões costumam ser.

Ele gostava de passear sob a chuva, levava-me para nos encharcarmos juntos. Também cantava para eu dormir quando passávamos a noite em sua casa — a primeira delas, aliás, foi enquanto sua família viajava; pulamos para a próxima etapa como quem apenas virava a página ao capítulo seguinte.

Numa sexta-feira em que Leon estava doente, sem conseguir falar ou sair de casa, borrifei um pouco de seu perfume num travesseiro e dormi agarrada com ele. Eu havia comprado aquele frasco para lhe dar de presente, mas acabei desistindo de abrir mão dele, encontrando essa nova maneira de substituir Leon nos dias em que ele não estivesse disponível.

Porque, aliás, nem sempre ele estava disponível. E eu também não.

Conservávamos o mesmo espaço pessoal que tínhamos desde a primeira vez que havíamos trocado olhares. Às vezes, ele saía com os amigos, e eu preferia não telefonar ou m****r mensagem; ele também respeitava meu momento quando eu queria ficar sozinha. Isso apenas fazia com que os momentos em que estávamos juntos fossem mais especiais. Aí, o terceiro adjetivo era “confortável”.

Acabei por convencê-lo a entrar num curso de idioma, uma vez que meu francês era intermediário graças às aulas que tivera no ensino médio, e ele não entendia uma ou outra expressão que eu acabava soltando sem querer enquanto conversávamos. Quando ele decidiu parar de comer carne, eu também experimentei uma mudança na minha dieta e, para minha surpresa, gostei; Leon começou a andar com um canivete na mochila, para cortar frutas na hora do almoço. Sua cor favorita era amarela; não um amarelo vibrante como o de um girassol, estava mais para lama úmida; o motivo? Nem ele sabia.

Após seis meses, já havíamos tido certa quota de discussões. Meu humor autodepreciativo o incomodava bastante, e por vezes eu gostaria que ele fosse mais prolixo ao falar sobre os próprios sentimentos.

De qualquer forma, no fim de todas as contas, o resultado era sempre positivo, e cada vez mais eu me convencia de que era com ele que eu queria estar. Talvez por mais um ano ou dois. Ou até onde conseguíssemos ir.

Isso me levou ao quarto adjetivo: “necessário”. Tê-lo em minha vida começava a se tornar tão importante quanto viver em si, e eu detestava isso. Eu não acreditava em “felizes para sempre”, mas já não conseguia admitir a possibilidade de que, com ele, o desfecho fosse qualquer outro senão esse. Necessário foi o adjetivo do sétimo mês, e do décimo segundo. Também houve outros adjetivos, é claro; mas, a essa altura, nosso glossário já era tão longo que eu não me preocupava em mantê-lo em perspectiva.

Minha mãe aceitou Leon como quem adota um filho. Preparava os pratos favoritos dele, livres de produtos animais, sempre que podia. Um dia, convidou-o para o casamento de uma amiga — ao qual, a princípio, eu iria sem companhia. Assistir à cerimônia fez com que Leon se emocionasse, e eu podia jurar tê-lo visto lacrimejar durante a troca de votos, embora rituais religiosos apenas me entediassem.

Nosso projeto de escrita passou por alguns — vários — recessos. A faculdade cobrava muito de nós; também vieram minhas aulas na autoescola. Terminamos a obra pouco mais de um ano após começá-la e a intitulamos “Carne e Osso”, em homenagem à primeira conversa que havíamos tido no meu quarto. Fizemos nossas próprias revisões e pedimos que amigos próximos lessem e dessem suas opiniões. Ninguém se interessava pela nossa obra tanto quanto nós mesmos, mas isso pouco importava; líamos nosso próprio romance como quem contempla o rosto de um filho. Era a prova de que juntos podíamos fazer coisas legais acontecerem.

Acima de tudo, a admiração que sentíamos um pelo outro aumentava com o tempo.

Certa vez, quando abri a porta para ele, Leon me estendeu um presente, uma caixa embrulhada em papel azul, fita e laço vermelhos.

— Feliz um ano, dois meses, uma semana e três dias! — exclamou.

Estranhei.

— Que tipo de aniversário de namoro é esse do qual nunca ouvi falar? — perguntei, pegando a caixa e abrindo espaço para que ele entrasse na sala.

— Só pensei que... bem, o tempo é uma invenção humana. Hoje é tão aniversário quanto qualquer outro dia, eu acho.

Parei de puxar a fita e lhe lancei um olhar desconfiado. Seu sorriso era como o de uma criança arteira.

— Você só queria uma desculpa para comprar seja lá o que tem dentro desta caixa, não é?

— Não há nenhuma prova disso — respondeu, risonho. — E, para ser sincero, meu argumento soava muito convincente na minha cabeça enquanto eu o ensaiava no caminho para cá.

Soltei uma risada. Tomei-o pela mão para que nos sentássemos no sofá. Abri a caixa. O presente era, afinal, um box especial de DVDs dos filmes da série Harry Potter. Apesar de ter lido os livros, eu não era tão fã dos filmes quanto ele, e isso comprovava minha teoria de que ele apenas não havia resistido ao ímpeto de comprar aquilo para si mesmo, com a desculpa de que comemorávamos uma data ficcional.

— Pensei que podíamos assistir juntos o final de semana inteiro — falou.

Agradeci, mas mantive um olhar acusador no rosto, que dizia “sei o que você tentou fazer”. Eu não o julgava realmente, de modo algum; acabaria me aproveitando da mesma tática um dia.

Coloquei as caixas de lado e avancei na direção de Leon. Nosso beijo foi sincero e intenso. Passei a mão pelos seus cabelos longos, pela sua nuca; senti no rosto sua barba, que agora crescia também nas bochechas. Ele me colocou no colo, segurou-me pelas coxas e, então, ao tomar fôlego, sorriu com seu costumeiro sorriso de Leon. Quantos adjetivos agora? Existia termo para o que eu sentia em momentos como esse? Paixão era apenas química rudimentar, de fato, mas seu efeito era irresistível.

— Um ano, dois meses, uma semana e três dias — repeti. — Já sei! Vamos chamar isso de “bodas de filme do Harry Potter”.

Ele concordou, sacudindo a cabeça veementemente.

Abrimos, nesse dia, precedente para algo irrefreável. Vieram as bodas de piquenique, bodas de passeio de carro perto do rio, bodas de palestra de conhecimentos gerais — e, mais tarde, títulos de revirar os olhos, como “bodas de pizza de quatro queijos vegano” e “bodas daquela receita estranha que pegamos na internet para fazermos juntos mas deu muito errado então acabamos jantando biscoito recheado”.

Eu não queria precisar de Leon para estar feliz, mas admitia que era muito mais fácil quando ele estava por perto.

***

O mundo continuava girando.

Pelos corredores do prédio de Comunicação Social, uma notícia começou a se espalhar. O curso de Letras, que desde a inauguração da universidade nunca tivera um edifício para chamar de lar, podia dar adeus em definitivo ao término da construção do prédio ao qual ele seria transferido. As obras haviam parado em meados de 2009, devido à falta de recursos, e, desde então, as estruturas inúteis do edifício permaneceram aguardando, sob sol e chuva, dia após dia.

Durante todo esse tempo, os alunos de Letras tinham suas aulas ministradas no prédio de Relações Internacionais. Em fevereiro de 2013, a administração municipal e o reitor da universidade acordaram em ceder o prédio não finalizado a uma rede de lojas de Santa Alice, a fim de transformá-lo num centro comercial. O grêmio estudantil se posicionou contra a ideia de utilizar espaço e recursos da universidade para fins que não fossem educacionais, e uma série de debates e propostas de acordo vinha sendo organizada.

Eu não entendia nada de como a universidade funcionava, muito menos de política, portanto não sabia opinar ou explicar em detalhes o que estava acontecendo.

Em casa, tudo ia bem. Minha mãe se tornou uma adepta da acupuntura, fazendo sessão toda quarta-feira e adicionando mais essa atividade à sua lista de cuidados com a saúde sugeridos pelas revistas.

Ariel completou maioridade e parou de usar aquele documento falso; prestou vestibular e começou a cursar Educação Física. Às vezes era bacana acompanhá-lo até a faculdade — só às vezes. Começou a fazer musculação e até a jogar basquete, apesar de não ter altura adequada para isso. Também praticava casualmente algum tipo de luta com os amigos.

Tive a chance de conviver um pouco com os pais de Leon, um casal muito simpático, mas que conversava sempre em tom de irritação um com o outro, de modo que qualquer frase banal como “você viu onde deixei o controle da tv?” soasse como o início de uma briga épica que resultaria em separação. Era só o jeito deles. Quando falavam comigo, ou com qualquer um que não fosse da família, eram afáveis como quem nunca dissera um palavrão.

Dário tinha um temperamento parecido com o dos pais. Além disso, gostava de pregar peças em mim e no irmão, por vezes de mau gosto. No que diz respeito à personalidade, não podia ser mais diferente de Leon. Só falava de dois assuntos: mulheres e política. Chegou a se candidatar a uma vaga no grêmio estudantil e foi aceito. Seus discursos eram sempre inflamados, e suas piadas, sempre sem graça.

Eva transitou do cor-de-rosa para o ruivo, do ruivo para o azul-turquesa, do azul para o loiro, e do loiro finalmente para o “chega de aplicar tintura no meu cabelo, ele está ficando muito danificado” (o que durou cerca de cinco semanas, antes que ela não se aguentasse e voltasse para o cor-de-rosa). Vez ou outra ainda era vista com Gaspar, o jovem fumante, esquisito, falsificador de documentos e sabe-se lá mais quais qualificações escabrosas, insalubres ou ilícitas. Aos poucos, foi passando mais tempo com o rapaz do que comigo, até finalmente assumir um relacionamento sério com ele. Fiquei feliz por minha amiga, de verdade, embora ainda acreditasse que ela podia ter arranjado um namorado melhor.

No meu aniversário, houve festa. No do Leon, não. Na verdade, ele e o irmão diziam que a vida estava ficando insustentável morando com os pais. O casal costumava brigar com frequência, a mãe era uma controladora surtada e o pai um fanático religioso. Além disso, a casa era de fato pequena demais para quatro pessoas e um cachorro.

Assim, tanto Leon quanto Dário arrumaram um emprego na filial de uma rede de fast food; o salário dos dois, somado à bolsa auxílio fornecida pela faculdade, era suficiente para que bancassem o aluguel de uma casa na mesma vila que a minha. Agora eu teria Leon mais perto. O lado negativo era que ele tinha menos tempo disponível no dia a dia e, por mais que trabalhasse muito, quase não lhe sobrava dinheiro para gastar com lazer.

Numa segunda-feira de março, Leon conseguiu folga do trabalho para que assistíssemos mais uma palestra de conhecimentos gerais. Não fazíamos isso há muito tempo.

Era perceptível o quanto aquela jornada dupla esgotava suas energias: estudar pela manhã e servir hambúrgueres desde a tarde até a noite. Eu mesma vinha sentindo muita falta dele, mas não cobrava que ele estivesse presente nem mesmo nos fins de semana, que era o tempo que tinha para descansar. O que eu queria, na verdade, era ajudá-lo de alguma forma.

Felizmente, minha mãe ganhava bem na clínica de saúde em que trabalhava e, portanto, eu podia usar todo o meu tempo para me dedicar à vida acadêmica sem precisar trabalhar; ainda assim, às vezes, sentia-me exausta. Para Leon, as responsabilidades não eram apenas mais numerosas, mas também mais pesadas.

Saindo da palestra, Leon bocejou e alongou o pescoço; as marcas escuras ao redor dos olhos denunciavam seu cansaço. Senti-me culpada por ter pedido que ele assistisse àquela palestra comigo; talvez a tarde tivesse sido mais proveitosa para Leon caso ele houvesse ido embora para casa dormir. Quando sugeri que nos despedíssemos, sacudiu a cabeça.

— Não. Prometi que passaria o dia com você — respondeu, andando ao meu lado no corredor.

— Você está morto de cansaço — apontei. — Podemos deixar para passarmos tempo juntos outro dia.

Ele levantou uma mão no ar.

— Foi o que dissemos na semana passada. E na retrasada.

Leon se responsabilizava pelo nosso distanciamento. De fato, já fazia mais de um mês que quase não nos víamos. A saudade me matava por dentro, contudo eu me esforçava para não a deixar transparecer. A última coisa que Leon precisava agora era de uma namorada carente que não conseguia se pôr no lugar dele. Ele vinha fazendo o melhor que podia para não fracassar nas provas ou prejudicar seu desempenho no trabalho. Era natural que alguns setores de sua vida fossem negligenciados no processo; e eu o amava o bastante para ser aquela quem sofria a perda.

Segurei-o pela mão, fiz com que parasse e olhasse para mim.

— Você não precisa se preocupar comigo.

— Não vamos falar disso outra vez. Não mereço que você seja tão compassível. Aliás, não quero que seja. Isso não torna a situação melhor.

Mesmo as poucas horas semanais que ainda tínhamos um com o outro não valiam muito, já que ele se arrastava como um zumbi ou acabava mergulhado em devaneios, sem energia nem mesmo para se concentrar numa conversa.

— Leon…

— Vou ao banheiro passar uma água no rosto — falou. — Prometo que estarei cem por cento quando voltar, está bem?

Pensei em argumentar, mas apenas fiz que sim e o acompanhei até a porta do banheiro masculino do terceiro andar. Quando ele entrou, prendi meu cabelo num rabo de cavalo e me encostei à parede.

Tinha de haver alguma coisa que eu pudesse fazer para mudar aquela situação. Vínhamos enfrentando esse dilema há meses, sem nenhuma perspectiva de solução.

Dentro de algumas semanas, completaríamos dois anos de relacionamento — um recorde para mim —, e eu sabia que não comemoraríamos, uma vez que ambos estaríamos passando por semana de provas. Em nenhum momento eu pensava em desistir dele, e supunha que ele também não pensaria em desistir de mim. O que tínhamos era bom, funcional. Precisávamos apenas encontrar um jeito de transpor o obstáculo que era a vida atribulada de Leon.

Eu já havia sugerido que ele voltasse para a casa dos pais, assim poderia largar o trabalho até que tivesse se formado, mas ele fora categórico em dizer que nunca retornaria para lá. Também jamais abandonaria o irmão, isso estava fora de cogitação.

Soltei o ar ruidosamente. Drama de gente jovem. Todos acabavam tendo que passar por isso em algum momento. Seria um caso sem solução? Será que eu teria que me acostumar a dividir Leon com a faculdade e o trabalho por mais dois anos até que estivéssemos ambos graduados?

Dois anos! Era muito tempo para esperar alguém. Mas, de certa forma, era o mesmo número de anos durante os quais estávamos juntos. Imaginar nossa graduação era como idealizar algo tão longínquo!

Lembrei-me das janelas transparentes que eu havia achado que eram foscas; da máquina de refrigerante; da primeira vez que havíamos lido o texto um do outro; de todos os momentos que se sucederam. Quando se é jovem, passar dois anos ao lado de uma pessoa faz com que você sinta como se tivesse vivido uma vida inteira com ela. Eu imaginava que dali a algum tempo, quando estivéssemos comemorando bodas de verdade em vez de aquelas que inventávamos, eu olharia para trás e me daria conta do quanto era idiota achar que dois anos era muito tempo. No momento, todavia, era todo o tempo do mundo para mim, e me motivava a continuar lutando por Leon — contra as circunstâncias e as improbabilidades.

Quando eu já começava a estranhar a demora de Leon, ouvi vozes abafadas. Mais do que isso, eram gritos.

Assustei-me. Afastei-me da parede e apurei os ouvidos. Não havia ninguém passando pelo corredor, eu estava sozinha; o terceiro andar era muito pouco frequentado. Os berros pareciam vir de um dos banheiros. Aproximei-me do masculino e percebi que saiam de lá. Uma das vozes era de Leon, a outra eu não consegui reconhecer.

Uma urgência cresceu no meu peito. Verifiquei toda a extensão do corredor, apenas para ter certeza de que não havia ninguém quem eu pudesse alertar. A surpresa me manteve paralisada por um segundo além do que deveria. Um grito mais alto de Leon me fez me mover, junto com o baque de algo pesado caindo no chão.

Abri a porta do banheiro com um movimento brusco. A cena que vi não era nada do que eu poderia esperar para uma tarde tranquila de segunda-feira. Leon estava deitado — ou melhor, pressionado contra o chão — enquanto um rapaz esguio se colocava sobre ele, com uma expressão colérica no rosto, dentes trincados e um punho suspenso no ar.

O fôlego que eu prendia saiu todo de uma vez quando o adversário de Leon disferiu um soco certeiro no rosto dele; pude ouvir o som dos nós dos dedos contra o osso do nariz. Era uma briga. Uma briga cujo motivo eu nem conseguia conjecturar.

Um passo já dentro do banheiro, recuei o suficiente para colocar a cabeça para fora e gritar por socorro, a plenos pulmões, o mais alto que eu podia. Minha voz ecoou pelo corredor, com sorte alcançaria alguém numa sala próxima.

Voltei para dentro a tempo de ver o segundo soco acertar o alvo. Berrei para que o perpetrador parasse, mas fui ignorada. Não esperei mais. Enquanto a ordem ainda saía da minha boca, eu corria na direção dos dois. Leon resistia como podia. Ambos continuavam gritando, mas eu estava surda para suas palavras.

O instinto me fez agir. Montei nas costas do inimigo, passei o antebraço por seu pescoço e o puxei para cima, para longe de Leon. Consegui afastá-lo, mas ele se equilibrou nas pernas suficientemente rápido. Era bem mais alto que eu, tive que pegar impulso e pular para não soltar seu pescoço. Não permaneci pendurada por muito tempo, ele logo se jogou de costas contra a pia do banheiro. Meu cóccix acertou o mármore com força, e eu cerrei a mandíbula. Para meu azar, esse movimento fez com que meu aperto na garganta do inimigo se afrouxasse. Ele tomou ímpeto para a frente e, quando se virou para mim, sua mão veio fechada, bem em direção à minha bochecha.

A bofetada foi forte. Por um instante, minha visão ficou negra. Eu sabia que um outro golpe viria, sabia que precisava me defender. Quando levantei os braços para formar um escudo diante de mim, Leon já estava recuperado, e agora foi a vez dele de contra-atacar.

Puro caos.

No momento seguinte, uma porção de pessoas surgia; vinham em nosso socorro, haviam ouvido meu chamado. Eu estava desorientada, mas sabia que Leon dava o troco quando um homem forte o puxou pelo braço a fim de afastá-lo do agressor.

Todo mundo gritava. A dor percorria meu rosto inteiro. Com olhos lacrimejantes, forcei-me a olhar para Leon, procurando sinais de que ele estava bem. Sangue escorria sem parar de seu nariz, mas era fúria que queimava nele.

Então olhei para seu adversário e o reconheci instantaneamente. Corpo magro, pele muito branca, dentes retificados, mandíbula quadrada, brinco numa orelha e olhar predatório. Era Rafael Gaspar.

Ele avançou mais uma vez, mas foi impedido de prosseguir por um segundo homem. Leon não se debatia, não tentava se libertar do aperto daquele que o segurava, mas mantinha o olhar fixo na ameaça.

Uma das pessoas presentes era uma professora do terceiro período, os homens deviam ser guardas de segurança, e o quarto indivíduo parecia ser apenas uma aluna.

O sujeito que restringia Gaspar começou a arrastá-lo para fora do banheiro, mas o rapaz, diferentemente de Leon, continuava tentando investir.

— Tu não sabe com quem se meteu, parceiro! — continuava a bradar. — Tu é um cara morto. Vacilão acorda com a boca cheia de formiga!

Foram as últimas palavras antes que ele fosse levado para fora. O segurança que prendia Leon, ao ver que ele não tinha intenção de continuar com a briga, finalmente o soltou.

Leon tomou ar, aproximou-se da pia e cuspiu sangue. E então, enquanto os demais ainda falavam, olhou para mim com olhos preocupados. Seu nariz estava obviamente quebrado. A incredulidade em meu rosto falava por si só. Como diabos aquilo tinha acontecido?

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