Agosto de 2018
Olhei mais uma vez o relógio sobre a estante. Mais um minuto havia se passado. Um minuto desde que eu verificara as horas da última vez, e isso parecia ter acontecido cinco minutos atrás.
— … mas, tirando isso, estou bem — falei, concluindo meu raciocínio.
As séries de televisão por muito tempo me convenceram de que haveria um divã quando eu finalmente me consultasse com um profissional, mas não havia. Em vez disso, eu me sentava todas as quartas-feiras numa cadeira de alumínio fria, diante de uma mesa de escritório comum, e esperava os quarenta e cinco minutos passarem.
A senhora do outro lado sorriu, e eu a imitei.
— Posso ver pelo seu semblante que está mesmo.
O consultório deveria ser acolhedor. Por vezes eu desejava que não entrasse tanta luz por entre as corti
Quando meu chefe apareceu, no dia seguinte, com uma prancheta na mão no meio do escritório, todos pararam suas atividades e voltaram sua atenção a ele. Conrado não era um homem de aparência imponente, era baixo e relativamente jovem, e a barba em seu rosto era rala como a de um adolescente. Nada disso o desencorajava; ele usava calças apertadas, sapatos de solas altas e cinto no estilo caubói do velho oeste. Havia um certo charme na junção de tudo aquilo.— Temos alguns clientes novos investindo conosco este mês. Aqueles de vocês que não estiverem tendo problemas com deadline podem manifestar sua preferência — anunciou ele.Cruzei os braços e relaxei na cadeira. Conrado costumava sair de seu escritório particular e vir divulgar em voz alta a relação dos nossos novos clientes; isso só acontecia quando um número gran
De manhã, minha mãe insistiu que eu tomasse café consigo. Preparava torradas na cozinha enquanto eu me vestia. Quando me sentei à mesa para esperar, percebi que seu humor não estava muito bom. Geralmente ela cantarolava alguma música gospel ou assobiava; dessa vez, estava totalmente em silêncio.— Natasha, hoje estou de folga. Vou levar seu irmão para a fisioterapia e passar no mecânico à tarde. Depois vamos os dois à igreja. Gostaria de vir conosco?Esse era o tipo de pergunta que há muito tempo eu já não precisava responder.— Não, obrigada.Ela tirou as torradas da sanduicheira e colocou uma diante de mim.— Minha filha, você sabe o quanto é importante tratar da alma. — Era um conselho, mas seu tom autoritário fazia com que parecesse uma ameaça. — Você deve ir. Orar pelos seus pecad
Ao chegar em casa, tentei subir as escadas fazendo o mínimo de barulho possível, não queria ter que encarar minha família agora, pois pretendia esconder os últimos acontecimentos por algum tempo. Para meu azar, Ariel surgiu no topo da rampa, olhando-me com estranhamento.— O que está fazendo em casa a esta hora?Parei imediatamente. Pega no flagra, soltei uma expressão de susto.Eu havia pensado muito durante o trajeto de ônibus; pensara no que diria, se eu deveria passar algumas horas pelo centro de Santa Alice a fim de chegar em casa no horário de costume. No fim, escolhera me recolher no meu quarto, ponderar sobre o que estava por vir.Era tarde demais, de todo modo, para passar despercebida. Minha mãe veio da cozinha para a sala, secando as mãos num pano de prato.— Natasha?Seu olhar inquisitivo reproduzia o questionamento de Ariel. Eu poderia dizer
Eu já havia estado nesse sonho. De volta ao carro, exceto que esse era o Fiat Doblò. A estrada longa e iluminada numa noite ordinária, as árvores ladeando ambos os cantos. Através do para-brisa, a van de portas abertas esperava, e eu sabia o que ocorreria à medida que desacelerava. Olhei para o lado outra vez, mas o que estava lá era apenas uma sombra, uma silhueta sem rosto de alguém que eu costumava conhecer. Encarando o vidro retrovisor, vi as outras três sombras no banco de trás.Tudo estava acontecendo de novo.De dentro da van, saíram mais alguns espectros inidentificáveis. Em vez de armas, tinham garras enormes, braços e pernas desproporcionais. Espreitaram, cercaram o carro.Ouvi uma exclamação, mas abafada, como se quem estava gritando proferisse as palavras sob um travesseiro grosso. Eu previa o que faria a seguir, cometeria o mesmo engano outra vez:
Dizer que eu estava completamente alheia seria mentira. Antes mesmo de olhar ao redor, sentia uma dor no peito — era contínua, eu já devia vir sentindo-a há algum tempo —, e uma tosse insistente escapava pela minha garganta. Dei-me conta de que respirava por meio de uma máscara. Cortinas brancas cercavam as laterais do leito, abertas perto dos meus pés. O silêncio era quase tântrico, competia apenas com alguns bipes e passos leves pelo chão.A noção do que havia acontecido vinha aos poucos. A estupidez que eu havia feito — pulando por cima da balaustrada e permanecendo de pé sobre a viga externa da ponte — voltava à minha memória. De repente, tudo ficava mais claro, como se, longe da tempestade, as nuvens deixassem de abrumar minha mente assim como faziam com o céu.O frio e o pavor ao cair, depois o choque; as braçadas em vão nas &aacut
Aquela carteira de identidade era… era minha! Eu me lembrava de ter tirado aquela fotografia, cerca de oito anos antes. Lembrava-me inclusive da camiseta preta que eu estivera usando no dia, que hoje já havia virado pano de chão, mas que na época era uma das minhas favoritas. Estava de cabelos presos, de rosto livre de maquiagem. Sempre achara que, naquela fotografia, meu nariz e minha boca pareciam maiores do que eram. Como alguém poderia tê-la?O silêncio dentro do carro começou a se tornar muito assustador. Quem quer que fosse o dono do veículo tinha uma cópia de um documento pessoal meu, talvez até me conhecesse. Talvez…Olhei outra vez para trás. Ninguém. Olhei para fora. Ninguém espreitava.E se eu estivesse sendo perseguida? E se quem quer que estivesse por trás daquela bolsa e do anel tivesse algum interesse mórbido em mim? E se i
“Droga!”Abaixei-me para pegar a faca e rumei para fora do quarto. Pensei em me esconder no closet, mas isso só funcionaria caso eu não tivesse feito tanto barulho.O medo retumbava com o impacto de um martelo nas minhas costelas. Eu me arrependia agora. Uma série de possibilidades povoaram minha imaginação. E se a pessoa no andar de baixo estivesse armada? E se eu não fosse rápida o bastante para fugir ou lutar? E se, em vez de me matar, meu adversário decidisse me manter refém naquela casa, longe de tudo?Olhei pelo corredor, esperando encontrar alguma coisa, mas não vi ninguém. Espiei através da janela. Se eu saltasse dali, talvez a queda não me machucasse tanto, mas era um risco que eu não queria correr — não conseguiria ir longe com um calcanhar torcido.Os passos se agitaram lá embaixo, e então pararam. Eu
Semicerrei os olhos.— Este mundo? — ecoei. — Você quer dizer… este planeta?Giu estalou um muxoxo.— Não. Não tem nada a ver com planeta. — Encarou o vazio por um instante, pensando em como poderia explicar melhor. — Veja. — Virou o livro na minha direção, para que eu pudesse ver melhor. Pousou o indicador sobre o símbolo da serpente. — Este costumava ser o símbolo de uma tribo nativa da região de Santa Alice. Foi descoberta na época da colonização do país, no século dezesseis.— E o que ele representa?— Uma série de coisas, na verdade. É difícil descrever em poucas palavras, mas… — Mordeu um lábio. — Essa tribo se chamava Pÿnkafã, falante da língua caingangue, hoje em dia muito pouco falada, apenas por estudiosos e al