Aquela carteira de identidade era… era minha! Eu me lembrava de ter tirado aquela fotografia, cerca de oito anos antes. Lembrava-me inclusive da camiseta preta que eu estivera usando no dia, que hoje já havia virado pano de chão, mas que na época era uma das minhas favoritas. Estava de cabelos presos, de rosto livre de maquiagem. Sempre achara que, naquela fotografia, meu nariz e minha boca pareciam maiores do que eram. Como alguém poderia tê-la?
O silêncio dentro do carro começou a se tornar muito assustador. Quem quer que fosse o dono do veículo tinha uma cópia de um documento pessoal meu, talvez até me conhecesse. Talvez…
Olhei outra vez para trás. Ninguém. Olhei para fora. Ninguém espreitava.
E se eu estivesse sendo perseguida? E se quem quer que estivesse por trás daquela bolsa e do anel tivesse algum interesse mórbido em mim? E se i
“Droga!”Abaixei-me para pegar a faca e rumei para fora do quarto. Pensei em me esconder no closet, mas isso só funcionaria caso eu não tivesse feito tanto barulho.O medo retumbava com o impacto de um martelo nas minhas costelas. Eu me arrependia agora. Uma série de possibilidades povoaram minha imaginação. E se a pessoa no andar de baixo estivesse armada? E se eu não fosse rápida o bastante para fugir ou lutar? E se, em vez de me matar, meu adversário decidisse me manter refém naquela casa, longe de tudo?Olhei pelo corredor, esperando encontrar alguma coisa, mas não vi ninguém. Espiei através da janela. Se eu saltasse dali, talvez a queda não me machucasse tanto, mas era um risco que eu não queria correr — não conseguiria ir longe com um calcanhar torcido.Os passos se agitaram lá embaixo, e então pararam. Eu
Semicerrei os olhos.— Este mundo? — ecoei. — Você quer dizer… este planeta?Giu estalou um muxoxo.— Não. Não tem nada a ver com planeta. — Encarou o vazio por um instante, pensando em como poderia explicar melhor. — Veja. — Virou o livro na minha direção, para que eu pudesse ver melhor. Pousou o indicador sobre o símbolo da serpente. — Este costumava ser o símbolo de uma tribo nativa da região de Santa Alice. Foi descoberta na época da colonização do país, no século dezesseis.— E o que ele representa?— Uma série de coisas, na verdade. É difícil descrever em poucas palavras, mas… — Mordeu um lábio. — Essa tribo se chamava Pÿnkafã, falante da língua caingangue, hoje em dia muito pouco falada, apenas por estudiosos e al
Quando abri os olhos na manhã seguinte, desejei descobrir que o dia anterior havia sido apenas um sonho ruim. As manchas de umidade no teto já indicavam que não.Eu havia fugido outra vez da casa na serra. Não conseguiria passar a noite lá. Dirigira até qualquer pensão que pudesse encontrar no centro e alugara um quarto barato por uma noite. Fizera com que a proprietária me garantisse que era seguro, certificara-me de trancar a porta antes de me deitar. Claro que, antes disso tudo, eu havia vasculhado mais algumas gavetas e até mesmo o banheiro. Encontrara mais dinheiro em espécie e — para meu alívio — um frasco de indutores de sono, cuja composição eu não conhecia, mas que me fizeram dormir sem que eu ao menos me esforçasse para isso.Ao meu lado, na cama ampla, ainda estava o notebook que eu também trouxera comigo, conectado à tomada e mo
Coloquei-me em pé e me aproximei inconscientemente da porta, embora não pretendesse sair por ela — não ainda.Uma equipe de físicos havia vindo da Bélgica para realizar pesquisas na Universidade de Santa Alice, e talvez isso tivesse feito com que eu fosse parar numa outra dimensão. Talvez um encantamento indígena tivesse cruzado os séculos e me atingido feito um raio algumas noites atrás. Talvez eu tivesse perdido completamente a sanidade. A explicação para o que vinha acontecendo, de um momento para o outro, não me importava mais. O que interessava era o efeito que isso causava. Tal efeito era mostrado no resultado da busca que eu acabara de fazer na internet.Ninguém nunca ouvira falar sobre vítimas alvejadas num fatídico 21 de junho. Isso nunca havia acontecido. Aquela Natasha que sempre se martirizava no chuveiro, perguntando-se por que havia escolhido pis
Em silêncio, chamei seu nome. Leon se virou, por um instante lançando o olhar na direção em que eu estava, mas não se atentou a mim. Deu meia-volta e começou a andar na direção do balcão. Contive o desejo de gritar por ele enquanto começava a caminhar. Antes que eu pudesse me aproximar, a mulher de verde me segurou levemente pelo braço, obrigando-me a desviar os olhos do meu alvo.— Sua comanda, senhora — falou.Peguei o pequeno papel, apenas para tirar a mulher do caminho. Quando voltei a cabeça para a frente, vi a porta que dava à cozinha se fechar às costas de Leon. Um vislumbre era tudo o que eu conseguira ter.Marchei até o balcão, mas fui impedida de prosseguir quando outro funcionário levantou a palma no ar.— O bufê é por ali — disse, apontando para a direção oposta.—
Espero que você esteja certo. Acho que vamos descobrir. Se não tiver razão… isso tem que servir para algum propósito. Confio em você. Saberá o que fazer. Não entre em contato. Duas serpentes não deveriam habitar o mesmo ninho. Já estive nele por tempo demais, de qualquer forma. E se eu estiver sendo uma idiota de novo… O espantalho estará esperando no campo, mas não por muito tempo. Ajude-o.Visão: a casa de design moderno na serra.Passei pelo portão de ferro. As luzes dentro da casa continuavam apagadas. Sempre apagadas.Olfato: sujeira deixada no ar, com uma nuvem avermelhada, após os pneus do Range Rover percorrerem a estrada crua de barro.A casa esperava que sua dona retornasse ao lar. Meu lar.Audição: meus passos lentos sobre os seixos que formavam caminho para a porta da frente.Mas era o lar de mais a
Agora me lembrava, muito vagamente, de que, quando criança, às vezes me referira ao meu irmão como “espantalho”. Espantalho porque, assim como o personagem do livro infantil, Ariel supostamente não tinha um cérebro. Esse não chegara a ser seu apelido, mas… e se o espantalho mencionado fosse mesmo Ariel?“Ajude-o”. Natasha sabia onde ele estava.Eu aguardava no Range Rover, com os olhos semicerrados para protegê-los do sol da tarde. Quase não havia dormido, e agora permanecia na frente do prédio da agência de publicidade, esperando que Dani descesse para o almoço.Durante a noite inteira, após encontrar o telefone do meu irmão, eu supusera uma série de possibilidades. Ariel poderia ter deixado seu celular com Natasha. Mas por que ela o esconderia?“O espantalho está esperando no campo”. O campo era onde Dorothy e
O ar se recusava a entrar nos meus pulmões. Apenas um vislumbre fez com que eu desse meia-volta e corresse, fugindo do apartamento. O horror me consumia feito chama em lenha seca.E então parei.“Meu nome”. Meu nome estava lá, pregado a um cadáver. Um cadáver que provavelmente seria encontrado em breve.Sentindo as lágrimas forçando caminho para fora, obriguei-me a me virar outra vez. Não queria voltar, não queria vê-la de novo. Mas precisava.Cobri a boca. Meus passos de volta foram ainda mais apressados. Queria terminar com isso logo. Tentei não me focar no rosto horrível dela. Agora reconhecia o ruído da corda. Aproximei-me, mal acreditando no que estava fazendo, agarrei a folha de papel e a arranquei. Quis me livrar dela imediatamente, mas não podia, não ali.No chão, jazia tombada uma cadeira que provavelmente fazia parte