Semicerrei os olhos.
— Este mundo? — ecoei. — Você quer dizer… este planeta?
Giu estalou um muxoxo.
— Não. Não tem nada a ver com planeta. — Encarou o vazio por um instante, pensando em como poderia explicar melhor. — Veja. — Virou o livro na minha direção, para que eu pudesse ver melhor. Pousou o indicador sobre o símbolo da serpente. — Este costumava ser o símbolo de uma tribo nativa da região de Santa Alice. Foi descoberta na época da colonização do país, no século dezesseis.
— E o que ele representa?
— Uma série de coisas, na verdade. É difícil descrever em poucas palavras, mas… — Mordeu um lábio. — Essa tribo se chamava Pÿnkafã, falante da língua caingangue, hoje em dia muito pouco falada, apenas por estudiosos e al
Quando abri os olhos na manhã seguinte, desejei descobrir que o dia anterior havia sido apenas um sonho ruim. As manchas de umidade no teto já indicavam que não.Eu havia fugido outra vez da casa na serra. Não conseguiria passar a noite lá. Dirigira até qualquer pensão que pudesse encontrar no centro e alugara um quarto barato por uma noite. Fizera com que a proprietária me garantisse que era seguro, certificara-me de trancar a porta antes de me deitar. Claro que, antes disso tudo, eu havia vasculhado mais algumas gavetas e até mesmo o banheiro. Encontrara mais dinheiro em espécie e — para meu alívio — um frasco de indutores de sono, cuja composição eu não conhecia, mas que me fizeram dormir sem que eu ao menos me esforçasse para isso.Ao meu lado, na cama ampla, ainda estava o notebook que eu também trouxera comigo, conectado à tomada e mo
Coloquei-me em pé e me aproximei inconscientemente da porta, embora não pretendesse sair por ela — não ainda.Uma equipe de físicos havia vindo da Bélgica para realizar pesquisas na Universidade de Santa Alice, e talvez isso tivesse feito com que eu fosse parar numa outra dimensão. Talvez um encantamento indígena tivesse cruzado os séculos e me atingido feito um raio algumas noites atrás. Talvez eu tivesse perdido completamente a sanidade. A explicação para o que vinha acontecendo, de um momento para o outro, não me importava mais. O que interessava era o efeito que isso causava. Tal efeito era mostrado no resultado da busca que eu acabara de fazer na internet.Ninguém nunca ouvira falar sobre vítimas alvejadas num fatídico 21 de junho. Isso nunca havia acontecido. Aquela Natasha que sempre se martirizava no chuveiro, perguntando-se por que havia escolhido pis
Em silêncio, chamei seu nome. Leon se virou, por um instante lançando o olhar na direção em que eu estava, mas não se atentou a mim. Deu meia-volta e começou a andar na direção do balcão. Contive o desejo de gritar por ele enquanto começava a caminhar. Antes que eu pudesse me aproximar, a mulher de verde me segurou levemente pelo braço, obrigando-me a desviar os olhos do meu alvo.— Sua comanda, senhora — falou.Peguei o pequeno papel, apenas para tirar a mulher do caminho. Quando voltei a cabeça para a frente, vi a porta que dava à cozinha se fechar às costas de Leon. Um vislumbre era tudo o que eu conseguira ter.Marchei até o balcão, mas fui impedida de prosseguir quando outro funcionário levantou a palma no ar.— O bufê é por ali — disse, apontando para a direção oposta.—
Espero que você esteja certo. Acho que vamos descobrir. Se não tiver razão… isso tem que servir para algum propósito. Confio em você. Saberá o que fazer. Não entre em contato. Duas serpentes não deveriam habitar o mesmo ninho. Já estive nele por tempo demais, de qualquer forma. E se eu estiver sendo uma idiota de novo… O espantalho estará esperando no campo, mas não por muito tempo. Ajude-o.Visão: a casa de design moderno na serra.Passei pelo portão de ferro. As luzes dentro da casa continuavam apagadas. Sempre apagadas.Olfato: sujeira deixada no ar, com uma nuvem avermelhada, após os pneus do Range Rover percorrerem a estrada crua de barro.A casa esperava que sua dona retornasse ao lar. Meu lar.Audição: meus passos lentos sobre os seixos que formavam caminho para a porta da frente.Mas era o lar de mais a
Agora me lembrava, muito vagamente, de que, quando criança, às vezes me referira ao meu irmão como “espantalho”. Espantalho porque, assim como o personagem do livro infantil, Ariel supostamente não tinha um cérebro. Esse não chegara a ser seu apelido, mas… e se o espantalho mencionado fosse mesmo Ariel?“Ajude-o”. Natasha sabia onde ele estava.Eu aguardava no Range Rover, com os olhos semicerrados para protegê-los do sol da tarde. Quase não havia dormido, e agora permanecia na frente do prédio da agência de publicidade, esperando que Dani descesse para o almoço.Durante a noite inteira, após encontrar o telefone do meu irmão, eu supusera uma série de possibilidades. Ariel poderia ter deixado seu celular com Natasha. Mas por que ela o esconderia?“O espantalho está esperando no campo”. O campo era onde Dorothy e
O ar se recusava a entrar nos meus pulmões. Apenas um vislumbre fez com que eu desse meia-volta e corresse, fugindo do apartamento. O horror me consumia feito chama em lenha seca.E então parei.“Meu nome”. Meu nome estava lá, pregado a um cadáver. Um cadáver que provavelmente seria encontrado em breve.Sentindo as lágrimas forçando caminho para fora, obriguei-me a me virar outra vez. Não queria voltar, não queria vê-la de novo. Mas precisava.Cobri a boca. Meus passos de volta foram ainda mais apressados. Queria terminar com isso logo. Tentei não me focar no rosto horrível dela. Agora reconhecia o ruído da corda. Aproximei-me, mal acreditando no que estava fazendo, agarrei a folha de papel e a arranquei. Quis me livrar dela imediatamente, mas não podia, não ali.No chão, jazia tombada uma cadeira que provavelmente fazia parte
Agarrei-me com ainda mais força à faixa de proteção, como se ela fosse a única coisa que ainda me matinha de pé.— Não é possível — resmunguei. — Nunca segurei uma arma. Não sei atirar. Eu não saberia…— Você agiu por instinto. Sei lá como esse tipo de situação afeta a cabeça das pessoas. Eu… sei que algo muito ruim teria acontecido a nós cinco naquele dia. Aqueles caras não estavam de brincadeira. Gaspar detestava cada um de nós por um motivo diferente; era um imbecil, um imbecil armado.Eu começava a conceber a possibilidade. Na minha realidade, eu fugira. Leon acabara morto; Ariel, paraplégico; Gaspar, coxo. Mas nesse mundo…— Por que fugiu de mim naquele dia? — perguntei, rapidamente, tomando cuidado para não subir o tom de voz. —
Tive o mesmo sonho de costume. Coloquei o pé para fora do carro, agora desligado. As chaves ainda nas minhas mãos. Olhei meu reflexo no vidro da porta. Eu parecia humana, os outros, não; eram sombras mais uma vez. Cada um fez o mesmo, abriu sua respectiva porta, saiu.Os monstros esperavam. Não tinham rosto, mas eu sabia que sorriam. Agora que os faróis do carro estavam desligados, estavam envoltos em ainda mais escuridão. Vozes ecoavam ao redor de mim; eu não sabia se falavam comigo ou uns com os outros. Fechei os olhos por um breve momento.“É um pesadelo”, pensei. “Literalmente um pesadelo. Não há do que ter medo.”Do outro lado do Doblò, uma das silhuetas começou a andar na direção dos monstros; soluçava, isso eu conseguia identificar. O monstro no meio dos demais soltou um rugido ameaçador e, com sua garra, envolveu a silhu