Tive o mesmo sonho de costume. Coloquei o pé para fora do carro, agora desligado. As chaves ainda nas minhas mãos. Olhei meu reflexo no vidro da porta. Eu parecia humana, os outros, não; eram sombras mais uma vez. Cada um fez o mesmo, abriu sua respectiva porta, saiu.
Os monstros esperavam. Não tinham rosto, mas eu sabia que sorriam. Agora que os faróis do carro estavam desligados, estavam envoltos em ainda mais escuridão. Vozes ecoavam ao redor de mim; eu não sabia se falavam comigo ou uns com os outros. Fechei os olhos por um breve momento.
“É um pesadelo”, pensei. “Literalmente um pesadelo. Não há do que ter medo.”
Do outro lado do Doblò, uma das silhuetas começou a andar na direção dos monstros; soluçava, isso eu conseguia identificar. O monstro no meio dos demais soltou um rugido ameaçador e, com sua garra, envolveu a silhu
Na metade do caminho de volta, Giu recebeu uma ligação do pai. Respondeu imediatamente que estava a caminho e, ao desligar, pediu que eu a conduzisse para a escola do filho.— A diretora disse que ele passou mal durante o recreio. Preciso buscá-lo.Uma vez diante do colégio, abri as portas de trás para que o menino entrasse. Ele realmente não parecia bem, estava pálido e abraçado com o próprio corpo. Giu se sentou nos bancos traseiros com o filho, testando a temperatura da testa dele com a mão. Eu a levei direto para a casa dela. Pelo espelho retrovisor, observava de relance o semblante preocupado em seu rosto; o garoto descansava a cabeça em seu colo, enquanto ela afagava os cabelos curtos e claros dele, olhando distraidamente para fora da janela.Quando chegamos e desembarcamos, Giu me encarou com um olhar culpado.— Natasha, eu…— Não se
— Conversar? Aqui?!— Me diga por que mandei aquele vídeo para você.Ele me estudou de cima a baixo.— Isso é uma espécie de teste?— Teste?Estalou a língua.— Não vamos conversar sobre isso. Já nos resolvemos. Libere a porta.Seu rosto ficou sério. Seus lábios muito finos praticamente desapareceram. Era magro demais para conseguir me tirar do seu caminho à força, ainda mais com aquele apetrecho sob o braço.Peguei o cordão com símbolo de serpente de dentro da bolsa e o apresentei a ele.— O que sabe sobre isto? — perguntei. Meu tom era de insistência.Ele olhou para o objeto na minha mão, e então para mim; as sobrancelhas franzidas.— O que há de errado com você?— Responda.— Sei lá! Isso é
À minha frente, um jazigo. Eu costumava gostar de visitar cemitérios quando mais nova. Lá pelos nove anos, assistira ao sepultamento de minha avó. Havia sido um dia triste para toda a família, especialmente para minha mãe; entretanto, eu me sentira inspirada durante toda a manhã.Enquanto os familiares prestavam suas condolências uns aos outros ou se despediam da senhora no caixão, eu caminhava por entre as lápides, analisando a data de nascimento e de falecimento de cada pessoa sepultada. Fazia as contas, “quantos anos essa moça tinha quando morreu? Será que sofreu? Será que foi de repente? Acreditava em vida após a morte? Tinha posses? Sentiu medo, arrependimento, alívio?”. Quem visitava o cemitério, via a terra para onde todos eram mandados quando seu tempo no mundo expirava. Como criança, eu via personagens. Cada nome entalhado, cada fotografia
Minha saliva era cáustica. Um refluxo com gosto de composto químico subiu até minha garganta, e eu achei que vomitaria.Estava sonolenta, sentada desconfortavelmente. Tentei me mexer e percebi minhas mãos amarradas atrás das costas. Senti couro sintético sob mim. Pequenas gotas de chuva batiam em vidro. Quando finalmente consegui enxergar, notei que o escuro era diferente. Eu estava dentro de um carro, no banco do carona.Olhei ao redor. O banco do motorista estava vazio e a chave não estava na ignição. Era o Range Rover.Havia árvores ao redor, e nenhuma fonte de iluminação. Chuviscava. Eu não sabia se ainda estava perto da fábrica abandonada ou em outra parte da floresta.Lutei contra a vertigem e me curvei para alcançar a maçaneta da porta, usando o tato como recurso. Puxei, mas a porta não se abriu. Então, empurrei meu corpo co
Agora meu grito foi um soluço. Não desviei o olhar um só instante do canivete, enquanto ele percorria o trajeto em câmera lenta em direção ao meu peito.O homem parou diante de mim. A princípio, apenas como se fosse deixar o pânico me devorar um pouco mais antes que ele finalmente fizesse o que pretendia. Mas vi suas duas mãos serem puxadas para trás; ele se abriu como se estivesse sendo pregado numa cruz. Não era à toa: uma segunda silhueta surgia às suas costas, surpreendendo não apenas a mim.Instintivamente, abaixei-me e tentei me esconder atrás de uma árvore. A corda presa não permitiu.O homem encapuzado se virou, e teve seu pulso torcido por quem havia acabado de fazê-lo parar. Reconheci instantaneamente a nova figura. Apesar do escuro, dos cabelos agora curtos e do rosto barbeado, identifiquei Leon.A figura misteriosa o empur
Eu não estava na fábrica. Estava… sonhando?Corda na boca, corda nas mãos. Ao meu redor, a floresta perto da cabana. Como era possível? Eu já havia deixado esse lugar.O homem de capuz e lenço no rosto surgiu à minha frente. Tinha um canivete. Pretendia me machucar. Estava acontecendo de novo.Meu grito, um soluço. A lâmina partiu para meu peito; dessa vez, não apareceu ninguém para impedir que isso acontecesse.A dor era aguda, gelada, visceral.Ele investiu uma segunda vez. E então, uma terceira. Senti o sangue na garganta. Minhas pernas fraquejaram, e eu caí de joelhos.O homem me empurrou de costas ao chão e acertou o canivete uma última vez. Letal.Eu já não respirava. Não mais resmungava. A dor insuportável finalmente partia. Minha visão se enturvou bem quando ele levou a mão ao
— Você não é mais vegetariano? — perguntei.Leon parou, virou-se e abriu um sorriso ao me ver.Já era quinta-feira à noite, dois dias desde o incêndio. Eu havia deixado a rua cheia de curiosos, paramédicos, bombeiros, policiais e — antes que a notícia se espalhasse por outros meios — repórteres do Diário Catedral. Após isso, minha visita ao Hospital Memorial de Santa Alice não havia sido um passeio; eu passara a noite apoiando Leon enquanto não recebíamos novidade sobre Dário. Finalmente fôramos informados de que o homem estava bem, que seria mantido sedado por alguns dias, talvez semanas, e que depois poderia ir para a casa de algum parente. Eu não tivera a chance de conversar sobre nada relevante com Leon.Por isso eu estava ali hoje, no estacionamento atrás do Delícias Fluminenses, que já estava fecha
— Você mentiu para mim — sufoquei. Era como se estivessem comprimindo meu peito.Ele correu até mim e puxou violentamente o frasco.— Mexeu nas minhas coisas?— Você mentiu para mim…Leon tapou o frasco e se aproximou, levando as mãos ao meu rosto.— Natasha, escute…Dei um salto para trás.— Você disse que Natasha parecia feliz com Murilo. Disse que isso incentivou você a superá-la!Agora estava gritando, com os dentes trincados. Não sabia se sentia ira, medo, desapontamento. Talvez raiva de mim mesma. Os últimos minutos de felicidade e prazer se derretiam numa névoa tóxica. Se ele vinha me enganando desde o início, tudo o que dissera ou fizera desde então também podia ser mentira.— É verdade. Eu e Natasha não tínhamos nada — defend