Eu não o conhecia, mas gostava dele e queria o ter por perto.
Por isso, voltei a praça pela manhã. Fui à lanchonete, estava com o chapéu que ganhei dele, mas o Tim até então não havia chegado. Tentei ligar de um orelhão, mas não sabia o número dele. Tentei mandar uma carta pelos correios, mas não sabia o endereço. O que mais poderia fazer? Não podia o esperar. Por isso, peguei o meu cesto de flores e fui vender rosas na praça. Aquele dia haveria bastante dinheiro. Era uma data comemorativa que envolvia flores. Eu consegui convencer as mulheres da rua, a comprar flores para si mesmas. E ainda fiz um belo desconto. Vendi as flores antes mesmo do meio-dia e, fiquei esperando no banco da praça, vendo um pouco da vida passar. Comecei a cantar cantigas de roda populares que tinham alguma conotação romântica. "Como pode o peixo vivo Viver fora da água fria Como poderei viver Sem a tua, sem a tua Sem a tua companhia" * Um vento galopante se estendeu sobre as tamanhas excentricidades da vida. E de repente, o meu pranto resolveu mostrar que era um hora de sair, quando eu queria mesmo era que fosse embora. Não gostava de me sentir assim vulnerável e solitária, mas não gostava também que quem provocasse uma bagunça fuja assim, do nada. Limpei as lágrimas. Voltei a um estágio contemplativo. Em segundos, alguma coisa boa poderia acontecer. Resolvi voltar para casa mais cedo. Mafalda ficou me bisbilhotando da janela quando percebeu minha volta temprana. Guardei o dinheiro das flores numa caixa de sapatos velha e, pus embaixo da cama, mas mudei de ideia e criei um fundo falso no portarretrato da minha bisavó. Ela também era florista e passou um dom tão especial para a sua filha, que passou para sua filha e que depois chegou a mim, sem ao menos ser uma escolha. Queria ter tido a oportunidade genuína de estudar numa faculdade, mas minha mãe, viu que eu não poderia esperar tanto pra ganhar dinheiro. Precisava ajudar a pagar as contas... mas ela se foi, não de partida no paraíso, mas em uma viagem à capital e, nunca mais recebi notícias, nem ao menos alguma carta ou cartão-postal. Ela não me deu um endereço, nada. Eu só tive que aprender a conviver com a solidão. Não a julgo. Ela teve uma escolha, mas qual escolha eu teria? Eu tinha uma irmã mais nova para cuidar. Ela vai à escola e chega exatamente às doze horas do meio-dia. Não sei se posso cuidar dela ou de seus sonhos, porque tenho medo de exilar suas escolhas, assim como as minhas. Quando a vejo abrindo aquela porta pela primeira vez, a abracei e acolhi sua chegada e, pela primeira vez, fizemos a tarefa de casa juntas. Não era uma calculadora, mas entendia de matemática, sempre que podia. — O que vai fazer esse resto da tarde? — O que quer que eu faça? — Vamos assistir a um filme juntas na televisão? — Pode ser... qual o que passará hoje? — Edward Mãos de Tesoura. — Ah, eu adoro esse! — Eu também! E nos sentamos no sofá para ver um filme que passaria um milhão de vezes e em todas elas seria como se fosse a primeira vez. E, depois do filme, Estela continuou assistindo, enquanto que eu fiz bolinhos de chuva para comer com café. Aquela seria nossa janta. Uma janta bem requintada, diga-se de passagem. O dia apesar de não ter sido tão cansativo, causou uma certa exaustão pelo que já havia feito ao longo da semana. Estela já dormia no sofá, enquanto que eu, depois de verificar todas as fechaduras, fui dormir na cama. Quando o despertador tocou, às quatro e meia, fui tomar um banho. Escovei os dentes, fiz café e comprei pães. Minha irmã acordou às cinco e meia. Tomou banho, vestiu a farda e tomou café. Escovou os dentes, pegou a mochila e, foi à escola. Que não ficava muito distante. Apenas há quinhentos metros de distância. Eu fui para o trabalho. Estava um pouco exausta, apesar de ter dormido bem. Passei pela lanchonete e, logo bem cedo, Tim estava na praça, tocando violino. Eu me aproximei e disse-lhe: Bom dia! Ele se assustou um pouco, eu corei, e respondeu: Ah, senhorita Pouplain... bom dia! — O que aconteceu ontem? Você não apareceu... — Tive que comparecer a um enterro. — Quem morreu? — Meu pai. — Sinto muito. Te envio todo meu carinho, eu sei que é uma perda difícil e que a dor não passa, mas que você possa ficar bem. — Te agradeço, senhorita. — ele estava visivelmente emocionado. Não pude deixar de abraçá-lo àquele instante. Tudo o que ele precisava mesmo era de um conforto para evitar o conflito. E eu esperava muito que meu abraço pudesse fazer algum efeito. Passei as mãos sobre suas costas, era algo agradável para ser feito em momentos de condolências. Ele parecia ter segurado o seu pranto por muito tempo, algo estava dando um nó na garganta e ele não sabia como destravar. Mas eu estava ali, mesmo que não estivesse. Após o abraço, ele disse: Vou tocar essa música para você, Ladie Lara. E ele passou a tocar uma melodia que parecia não ser estranha... mas eu não lembrava muito. E assim, ele tocou, até o final da manhã, quando, de repente, sentiu necessidade em partir. — Para onde você vai? — Vou para casa. — Posso ir com você? — Não me acha um completo desconhecido? — Ainda assim, mas já tem um lado de você que conheci e gostei de explorar. Me mostre outros. — Não posso. — Por que não? — Não quero que veja o que não é o melhor que posso te oferecer. Por favor, eu não recusaria esse pedido em outro dia, mas gostaria de ficar sozinho, pelo menos hoje. — Tudo bem, te entendo. E ele foi embora. E eu também fui. Resolvi não trabalhar no fim de semana. Fiz faxina em casa no sábado e, no domingo, plantei uma horta, no quintal. Mas era impossível não lembrar dele. O que ele me fez de tanto que eu não pude entregar o nada? Eu não sabia explorar o que sentia, não entendia, ao mesmo tempo que a sensação causava bons agrados, ela também dilacerava. Não filtro muito bem, parece que absorver se torna mais intenso. Mas não posso deixar me levar por muito tempo assim, alguém saberia em que médico ir para curar a dor que aperta o peito e faz bater de um jeito inesperado? Eu acho que um cardiologista nunca descobriria o tanto de dor e as rachaduras que esse coração fluía. Pelo menos ninguém nunca se atreveu a estudar tanto.A diferença entre meu eu e o da Pouplain era estar em status sociais distintos. Mas a gente tinha gosto em comum. Discos empoeirados e soprar a poeira para ouvi-los, devorar um brigadeiro direto da panela, não aguentar assistir à uma partida de futebol, mas amávamos assistir o mesmo filme pelo menos umas quinze vezes... não passávamos tanto tempo no cabeleireiro, nem sequer gastávamos muito tempo com cálculos matemáticos... mas, a gente era impulsiva e, isso causava um fascínio pelo poder de compra. Uma determinada loja de departamentos vendia o urso de pelúcia mais macio, suave e fofo que poderia existir. Ele custava o equivalente a cinco pilas. Eu fiquei tão apaixonada que vendi flores extras para comprar, mas, a vendedora disse: — Aqui não temos mais ursos de pelúcia daquele modelo disponível, tente em outra loja. — Mas não dá para comprar o do mostruário? — Ele sai com cinquenta por cento de desconto. — Eu quero! — Meus olhos brilharam naquela afirmativa. Ela pegou o
Escrever palavras é a melhor maneira de silenciar a demonstrar um completo silêncio em se calar.Estava à toa, mas ao mesmo tempo à vontade. E tinha vontade de ir ao cinema, assistir um filme.Mas as vontades as vezes se passavam por necessidade. Se fosse ao cinema, eu não ia ter dinheiro para a comida, para contas do mês em geral. E vice-versa. Estava um pouco cansada. A brisa naquele dia estava gelada. O temporal anunciava a chegada dela: A tempestade. Raios e trovões, relâmpagos e clarões... eu ainda não tinha um guarda-chuva, mas não tinha medo, a chuva não me faria me perder. Tim não estava pela praça àquele instante. Uma senhorinha estava um pouco atordoada e, por isso, a levei para a lanchonete, para que pudesse encontrar um lugar seguro. De repente, um raio atingiu duas vezes a mesma árvore central da praça. A descarga elétrica foi muito forte. A energia na rua tinha ido ao beleléu.Mas, Tim se aproximou em instantes dizendo: Pouplain! E eu respondi: Oiiiiii..
A camisa de Tim, a mesma de sempre, acabara de ser manchada. E iria para a sua centésima lavagem. Mas ela não se sujou assim.Primeiro, fomos à lanchonete. Ganhamos um lanche de cortesia da Lady Francisco, uma das donas do estabelecimento, com imensa generosidade e gentileza. Ao começarmos a degustação, Tim me perguntou sobre as vendas das flores. — Lady Lara, você faz dinheiro o suficiente para se manter na venda de flores? — Nem sempre, às vezes, eu só vou me virando aqui e ali. Além disso, eu tenho uma irmã e tenho que fazer de tudo para que ela possa estudar e cursar o que ela deseja, porque eu mesma não tive essa oportunidade e, pelo jeito, nunca a terei. — Mas você ainda é jovem. Sempre há tempo para estudar. Se quiser, posso te ajudar. O que pretende fazer?— Eu não sei. As pessoas pensam que gosto de vender ou empreender, mas eu não gosto, apenas me sinto em pena a cumprir a sina da minha família. — Bom, a universidade fica na capital e há uma feira na próxima
Na outra semana, uma notícia abalaria a cidade. Estela trazia o jornal da banca e com o seguinte anúncio: Procura-se filha do fazendeiro Gilberto Ruiz, desaparecida há 27 anos.A notícia anunciava que uma mulher havia levado a criança para um passeio e nunca mais regressou. Desde então, a busca incessante por Luciana Ruiz era de fato um enigma.Quem foi a mulher que levou a criança? E por quê?Essa era uma pergunta muito corriqueira, mas a verdadeira pergunta era: Como se tornar Luciana? Muita gente se ouriçou, principalmente depois da notícia que o fazendeiro apareceria pela cidade em busca da filha perdida, pois houve boatos de que ela estava ainda por lá, mas com outra aparência. Coloquei todas as cartas na manga, comecei a pesquisar a história de forma ampla, até chegar ao microdetalhe. E, para chegar a esse micro, me infiltrei como florista, no meio das ruas, até conseguir uma resposta coerente. Com quem eu consegui? Isso não foi em apenas uma procura, na verdade, a jo
Fiquei na casa isolada. As sirenes tocaram. As pessoas na pensão saíram. Estavam na rua para conversar. E, a casa que era tão barulhenta se tornou tão quieta. De todos os filmes que poderia citar os trechos ou lavar uma camisa uma centena de vezes, aquela não era a melhor válvula de escape que imaginei. Eu estava falando comigo mesma. Havia uma voz que eu pensava ser minha. Eu me acostumei com ela. Agora há uma espécie de vazio. Sinto que posso estar totalmente bem, embora as paredes nunca falariam o quanto eu tenho falado comigo mesma e nessa parte eu me perco na minha própria mente. Pensava que se fingir em ter aquele abraço outra vez na minha cabeça e que também estamos rindo, saberei que não existirá mais ninguém e eu acabei de conversar, conversando comigo mesma.Se pelo menos eu tenho uma fita e nela sua voz está gravada, eu posso te ouvir falando meu nome. Não será a mesma coisa, mas é melhor pensar no tanto. Há uma lista nesse exato momento. Eu acabei de fazer.
O antiquário estava fechado. Ele ficava em frente à minha floricultura. Havia uma pessoa sentada na calçada, mas que logo levantou e, foi embora. Me olhei no espelho, estava diferente. Mas um reflexo no vidro do ateliê me fez ver alguém inesperado. — Bom dia, Senhorita! Quais são as flores disponíveis hoje?— Bom dia! — esqueci de falar das flores. Mas Tim estava bem a minha frente, acompanhado de uma moça. — Senhorita Pouplain?! — ele se assustou.A moça cutucou ele e, logo em seguida, eu disse: Sou Luciana! Ele entendeu que estava interpretando um personagem.— Recomendo usar flores amarelas para hoje. Denotam que algo nunca deve se aprofundar antes de uma verdadeira amizade.— É uma boa opção, mas prefiro rosas vermelhas.— Ao seu dispor. Peguei as rosas e embrulhei. A moça que lhe acompanhava já estava lá fora. — Por que você está vestida assim e por que tem essa floricultura? — Eu sou a herdeira do fazendeiro. — Isso não é verdade, você sabe muito bem. — Qu
Alguém caminhava, outra pessoa pegava um café na lanchonete. De certa forma eles se esbarraram. Se talvez apenas eles tivessem se atrasado um pouco, nada poderia acontecer. Alguns marcharam como indeciso cordões, nos campos, ainda havia fome, não importava a extensão da plantação. Uma nova florista fazia da flor seu instrumento de guerra, como uma canção, onde o refrão se repetia de forma intensa.A história estava em sua mão, havia amores em sua mente ou na mente de quem presenteava? Porque tinha flores no chão, sem certeza do que vinha pela frente. O pipoqueiro queimou a pipoca para ajudá-la. A moça estava sendo maltratada. Mas por que só ele viu? Existia mais gente ali.Se existisse mais alguém ali, o pipoqueiro não perderia sua fornada.Eu me aproximei da florista, que sorrindo, me deu uma rosa. Aceitei. E, em sua mão, pus uma nota de poucos reais.Fui embora daquela praça, onde os pombos não queria a pipoca queimada.Voltei para o meu lugar, mas fugi de quem eu era.
— Estou sendo procurada?— Que nada! Ele não pode fazer isso, porque se ele colocar você, pode também pôr o dele na reta. — Por quê?— Saiba que há denúncias contra ele, só isso que posso dizer.— Obrigada, Coralina.— Disponha... e saiba que a Mafalda está querendo te matar também, espero que você nunca mais volte pra cá. Viva a sua vida de outra maneira, crie outra versão de você, mas jamais apareça nessa cidade outra vez. — Entendi, agradeço pelo retorno.E desliguei a linha. Com a minha cesta de flores, meu Walkman e minha única roupa, fui em direção à outro trem, para me afastar ainda mais dos meus primeiros erros. O cobrador das passagens me reconheceu.— Oi, tudo bem? Você não é a... — Não sou.— A Perfídia! Sorri amarelo.Ele me disse: Nossa, você está muito bem... para onde está indo?— Não sei.— E você lembra de mim?— Gabriel.— Exatamente. Eu era mais gordo na época. — Eu lembro.— Você tem lugar para ficar? — Tenho sim. — Não tem não...—