Quando o São João chega no interior, tudo fica mais colorido e com sabor. Nessa época do ano, até os dias mais tristes se tornam alegres e, volta e meia, alguma surpresa muito bem-vinda vem acalentar a vida dos que não tiveram tanta sorte no começo do ano.
E esse foi o caso de Cidinha. Uma menina bonita, com belos cabelos castanhos ondulados que desciam até abaixo da sua bunda, olhos de um tom de mel encantador, rosto de anjo, como todos diziam. Tinha traços muito belos, um nariz pequeno, levemente largo, uma pele bronzeada, como um café com leite recém-passado, lábios grossos e muito tentadores. Mas seu rosto não era a única coisa bonita em si, ela era o conjunto da obra, Cidinha tinha um corpo de dar inveja em qualquer moça da comunidade ribeirinha que ficava próximo ao Velho Chico. Mas sua sorte era, sem dúvida, só essa. Todos ali tinham pouco, mas o pouco que tinham era compartilhado, mas a beleza de Cidinha impactava diretamente em sua vida. As moças comprometidas não gostavam que seus maridos ou namorados interagissem com a pobre Cida, os homens solteiros não tinham tão boas intenções e os casados, infelizmente, a procuravam somente para vê-la como um caso. Não tinha mãe, ela havia fugido com um homem muito rico quando Cidinha ainda era uma recém-nascida, seu pai a criou e agora, aos seus 19 anos, cismou que ela precisava se casar, pois, para ele, já estava dando trabalho demais depois do que ocorrera no último ano. — Mas painho… — ela reclamou, mais uma vez, batendo os pés no chão da pequena casa de madeira. — Primo Zé tem quase o dobro da minha idade! — E isso lá importa, Cida? — seu Antônio perguntou, claramente irritado. O dia havia acabado de amanhecer e, em breve, seu Antônio sairia para pescar e Cida ficaria em casa, organizando tudo para, quando o pai chegasse, ela estivesse livre para limpar os peixes, que seriam vendidos ainda naquele dia. O cheiro de café recém passado inundava toda a pequena cabana que, apesar de simples, era muito bem arrumada, já que Cida sempre foi muito prendada. Ela deixou uma xícara bem grande de café na frente do pai e limpou as mãos no vestido simples e de cor bege que usada. Aquela não era a cor original dele, mas era sua camisola de dormir e já era muito velhinha, então, estava encardida. Seu Antônio era um homem já de meia-idade, tinha poucos cabelos e os que tinha eram grisalhos, seu corpo era magro, aparentemente frágil, mas ele era um homem muito trabalhador e bem forte. Pescava desde moço, então, a pele era queimada pelo sol e, mesmo tendo somente 55, aparentava ser bem mais velho devido aos anos de trabalho no sol árduo e na pescaria. — Mas claro! E ele nem de mim gosta mesmo! — ela continuou insistindo, cruzando os braços enquanto o pai bebia um gole de café. — Só olha pras minhas ancas como um… — Cida! Olha a boca! Tu tem que agradecer que depois de tudo aquilo algum homem ainda te quer! — Antônio deu um tapa na mesa, perdendo a paciência. — Já não é mais moça, se entregou pra um homem casado, casado, Cida! As pessoas nem te olham na rua direito! Seu primo Zé é um homem respeitoso, vai te tratar bem e cuidar de tu! Eu já sou velho, quem vai te cuidar quando eu partir? Ela nada respondeu, ainda se sentia acuada quando tocavam naquele assunto e, querendo evitar um novo interrogatório sobre o que a tornou mal falada na comunidade, ela se calou. Seu Antônio bebeu o café em dois goles, mesmo quente, então se aproximou de Cidinha, tocando seus cabelos com carinho, a olhando com certa dó. — Oh, minha fia, a gente gosta de quem gosta de nois… Dê uma chance para o Zé — seu Antônio tentou, mais uma vez, convencer sua filha, apoiando a mão no seu ombro após terminar o café. — Agora pare de pensar muito, quando tu pensa demais acaba tendo umas ideias de girino, vai fazer tuas coisas, mais tarde eu volto. — Tudo bem… Mas pelo menos marque esse casamento para depois do São João… Quero me divertir na festa com minhas amigas, uma última vez — ela pediu ao pai, com uma voz chorosa que sabia que iria convencê-lo. Antônio nada disse, somente balançou a cabeça como quem desaprova o pedido, mas não negou, nem concordou. Esse ato deu um pouco de esperança para Cidinha, que sentiu que, talvez, tivesse ao menos uma noite de festa e diversão antes de se amarrar ao primo que mal conhecia e de quem sentia nojo. — Pelo menos não perco o festejo, depois penso no que vem — resmungou Cidinha, suspirando enquanto observava o pai sair da casa, batendo a porta e seguindo para começar o dia. Não havia muito o que fazer, nem contra o que lutar, ela havia aceitado que a vida era daquele jeito mesmo, só teria dois destinos, o cabaré da beira do rio ou o casamento com o primo Zé, então, entre virar uma puta e uma esposa do lar, ser esposa lhe parecia mais vantajoso, com certeza. A melancolia a tomou por longas horas, sabia que não tinha agido certo no ano anterior, mas quem julga as atitudes de uma menina encantada com promessas de amor? Bem, no final, todos julgaram, sem nem saber de fato a verdade, aquilo a machucava muito, afinal, sabia que ninguém de fato acreditaria nela ali. Mas, antes que se sentisse pior, ouviu a porta de madeira ranger e, antes que falasse qualquer coisa, a voz estridente de Sandra encheu sua casa.— Mas tão cedo e tu já tá aí nessa vida — falou a amiga, aparecendo na cozinha após entrar na casa sem se importar com a ausência de um convite. — Vim te chamar para ir ali na feira comigo. Sandra era também uma moça de chamar muita atenção, tinha uma pele negra brilhante e bela, olhos escuros e um cabelo volumoso e enorme, que chamava atenção onde quer que ela fosse. Era bem alta e muito esbelta, facilmente poderia ser uma modelo, mas deixou esse sonho de lado, já que sua mãe não achava uma boa ideia por acreditar que todas aquelas moças acabavam como moças da vida, o que, certamente, não passava de uma ideia sem sentido algum que a mãe dela ouviu de alguma outra mulher. — Eu tenho que trabalhar, né — Cidinha revirou os olhos, terminando de enxaguar o último copo. — Vai fazer o que lá?— To precisando comprar umas coisas e, além disso, a arrumação para a festa já começou, podemos ver como as coisas vão ser esse ano! — a animação de Sandra ela clara, certamente ela queria muito que
— Como é que é? — Sandra disse, assustada com a notícia dada de última hora.— Eu já não sei nem mais o que fazer, Sandra. Eu não quero me casar e já falei com painho, mas ele insiste que tem que ser com aquele homem nojento — enquanto falava, Cida fazia expressões de nojo, como se estivesse chupando um limão bem azedo. Os braços cruzados e o bico deixavam bem claro sua insatisfação com essa ideia.— Amiga, quando, como? Me conte do começo, porque eu não tô entendendo mais nada. De onde que seu Antônio tirou essa ideia da cabeça? E logo com o Zé? Tanto homem mais bem-apresentado nesse lugar — quanto mais ouvia, mais confusa Sandra ficava com a situação que sua amiga estava. Ela desejava tudo de bom a Cida e não a imaginava nunca indo se casar logo com um homem tão asqueroso como o primo.— Olha, sabe de uma, vamo terminar de comprar as coisas logo que seu pai chega e eu to batendo perna com ocê, ele num vai gostar. Bom que cê vai lá pra casa mais eu e assim explico logo do início. Pod
— Amiga, é o seguinte. Você precisa enfrentar seu pai e dizer não, porque olha, aquele homem te olhou com uma cara de safado, que eu fiquei até com nojo. Ele não disfarçou em nada a vontade que ele tá de te pegar viu. Pelo menos seu Antônio quer deixar o casamento pra depois do São joão… Já pensou se fosse hoje mesmo? Do jeito que o povo já gosta de falar, ia comentar era que tu tá grávida.— Ave Maria, Sandra. Era pra me ajudar ou pra me botar medo?— Desculpa, não era a intenção. Mas pensa, hoje a gente vai dançar muito juntas e você vai poder se divertir antes da sentença. Deixa pra pensar nisso depois, mulher, que logo é dia de muito arrasta pé.— Olha, você tem razão. Eu vou curtir os festejos, depois eu enrolo meu pai o máximo até conseguir dar um jeito dele mudar de ideia. Agora, vem cá, você por algum acaso já escolheu a roupa? — nessa hora, Sandra deu um grito agudo, lembrando que não tinha terminado de colar os farrapos no vestido rodado, nem levado as compras pra mãe, que d
Quando o dia seguinte chegou, o cheiro de milho-cozido e amendoim torrando enchia toda a vila, finalmente era São João e todos tinham um momento para festejar. Os pescadores, que tanto trabalhavam todos os dias, tinham um momento de descanso onde ninguém os julgaria pela bebedeira. As moças mais tímidas finalmente poderiam dançar sem o risco de ficarem mal faladas e as que já eram mal faladas teriam uma noite onde não precisavam se importar com nada. Era São João, afinal, o dia em que a fogueira crepitava no chão do sertão e a vida difícil virava enredo de cordel.Quando o sol caiu, Cidinha estava se olhando no espelho com um sorriso de orelha a orelha. Seus olhos brilhavam com empolgação e por um momento, ela até esqueceu do destino triste que a aguardava depois daquela festa. Seus lábios grossos estavam penteados pelo batom vermelho, os olhos bem delineados por uma sombra que combinava perfeitamente com sua pele morena e as bochechas coradas pela alegria que ela sentia diante daque
— Ah, Cida, mar tu tá bonita mulher! — Sandra falou, sorrindo para a amiga com muita animação. — Todo mundo vai te olha assim, duvido tu não arranjar um marido melhor hoje! — Num fala bobagem, mulher — Cidinha reclamou, rindo levemente. — Tu também tá muito bonita! Tua mãe que fez o vestido foi?Sandra usava um vestido vermelho que combinava com ela, tinha uma saia rodada com alguns babados e um decote sutil, mas muito bonito e até um pouco sensual. Ela usava um colarzinho dourado delicado e seus cabelos estavam soltos livres como o vento e como ela mesma. Seus lábios estavam brilhantes e seu rosto ostentava uma maquiagem bem leve que, pela primeira vez, Cida a viu usar. — Foi, acredita? Ela também passou essas coisa em mim — Sandrinha apontou para o rosto levemente maquiado. — Disse que eu já to na idade de me arrumar como mulher. — Pois cê ficou foi bonita! — Cidinha elogiou, entrelaçando o braço ao da amiga e começando a caminhar. — Cê ta falando que eu vou arrumar um marido me
Em seguida, ele voltou os olhos para o violão, depois de ver o rosto corado da jovem que, ao menos para ele, era sem dúvidas a garota mais bonita da pista. Sandrinha percebeu o flerte do homem e gargalhou, ele era bonito até, não era dali, era um cantor de fora da cidade, e elas bem sabiam que os moços da cidade eram fogo. Quando menos esperavam as duas meninas foram separadas e, inesperadamente, Cida foi tirada para dançar por um rapaz que ela havia visto algumas vezes, mas com quem nunca mais havia falado desde o que aconteceu no ano anterior. Naquele momento, ele tinha um sorriso lindo nos lábios e parecia não se importa com a reputação dela, ninguém na pista parecia ligar para aquilo, ao menos não ainda. Ela colocou o corpo ao do rapaz, dançando com ele e movendo o quadril no ritmo da música, esquecendo de todos os problemas ao som da voz doce do cantor enquanto o garoto a conduzia naquele forró delicioso que aquecia seu coração. Trocou de parceiro várias vezes enquanto as músi
Cida corria desesperadamente, a alegria da pista de dança havia sido arruinada e ela estava ofegante olhando para trás a cada passo e percebendo que Jonas ainda estava em seu encalço. Não havia mais festa, nem animação, agora ela só sentia medo e vergonha, medo do que falariam vergonha por ter sido tocada por ele de novo como se fosse dele, de ouvir aquelas coisas como se eles ainda tivessem alguma coisa. Os olhos dela marejaram e, sem que sequer notasse, as lágrimas começaram a rolar por seu rosto, deixando sua visão turva. Cida sentia o coração apertado, aquela era sua noite de alegria e agora já não havia mais felicidade. Será que um dia ele me deixa em paz, meu Deus? O que eu fiz pra nossa senhora pra sofrer assim?, ela pensou, passando a mão nos olhos e sentindo duas mãos a empurrando delicadamente para algum lugar. Quando abriu os olhos, Cida se viu na janelinha da barraca do beijo e ouviu algumas vozes femininas atrás dela, gargalhando e a incentivando. — Vi menina! Todo mu
Assim que pisou os pés na praça da vila, Beto sorriu, vendo as luzes amareladas e a grande fogueira no centro. Fazia muito tempo que não participava do São João da comunidade, não desde que terminou o colégio e saiu dali para cursar contabilidade na cidade grande. Seu pai era implacável e, para o senhor Joaquin Santana, o melhor era mandar o filho cursar uma boa faculdade antes que ele tomasse a posse das fazendas da família. De fato, a faculdade o havia ajudado, mas ele odiava a cidade grande. No fim, nada se comparava ao cheiro gostoso do campo, aos cavalos e a acordar de manhã bem cedo e ordenhar o leite que tomaria logo em seguida. Por isso ele estava encantado com a festa, com o clima, com a música, aquele era seu lugar. O homem caminhou tranquilamente por entre as pessoas, os moradores não o conheciam ou ao menos não se lembraram dele, mas não havia como julgá-los, afinal, ele havia mudado muito. O menino franzino de 19 anos que saiu dali agora era um homem e seis anos fizer