Verdades ocultas

Rafael

Estou no laboratório, cercado pelo silêncio que só os equipamentos de análise interrompem,  ajusto alguns parâmetros no espectrômetro, quando minha mente vaga por questões estratégicas.

Contratar Beatriz foi uma decisão calculada. Jovem, recém-formada, cheia de ideias e sem vícios de mercado. Ela é como um vaso em branco, pronto para ser moldado dentro da metodologia que aplico aqui.

As amostras estão separadas, e o cronômetro marca o tempo exato para a próxima etapa. Cada movimento aqui é meticuloso, quase automático. Meu foco está dividido entre os resultados que espero alcançar e uma ideia que martela na minha cabeça, a chegada da Beatriz.

Ela é uma recém-formada, vinda do Rio de Janeiro, jovem e cheia de entusiasmo, segundo os currículos e a breve conversa que tivemos.

Beatriz vai trabalhar aqui comigo, esse laboratório é a personificação de uma pesquisa legítima. Equipamentos de ponta, documentação rigorosa e publicações estratégicas fazem dele um centro científico respeitável, pelo menos para os olhos dos desavisados. Nada do que ela verá em seu trabalho diário sugere qualquer ligação com a máfia.

Minha experiência me ensinou a dividir as informações com precisão cirúrgica. Beatriz só terá acesso ao que é seguro e ético, como os estudos sobre defensivos agrícolas e seus impactos ambientais. Isso reforça a imagem de um local comprometido com causas de interesse público. A verdade perigosa que circunda este lugar é cuidadosamente mascarada por essa fachada de responsabilidade social e inovação científica.

Olho para a bancada, reorganizando mentalmente os próximos passos do experimento. A contratação dela é um risco calculado. Sei que ela vai precisar de orientação e paciência, mas isso pode ser vantajoso. É como ter uma folha em branco para desenhar, tudo o que eu preciso agora.

Pego um bloco de anotações e rabisco rapidamente um lembrete para a Stefany:

“Stefany, por favor, certifique-se de que a casa está bem equipada para a chegada da nova assistente. Verifique se o umidificador está funcionando bem. A baixa umidade de Brasília pode ser incômoda para quem vem de fora. Veja também se temos mantimentos suficientes para recebê-la, caso precise de algo no início.”

Volto meu olhar para o cronômetro, marcando os segundos que faltam para interromper a reação química que iniciei. Enquanto espero, penso no impacto que Beatriz pode ter no ambiente do laboratório. Ter alguém novo significa dinamismo, novas perspectivas, mas também exige tempo. É um investimento.

O cronômetro apita, puxando minha atenção de volta. Interrompo a reação, faço as medições necessárias e registro os dados. Trabalho no laboratório sempre me exige disciplina, mas confesso que a ideia de guiar uma nova assistente traz um toque de expectativa.

Se tudo der certo, Beatriz não apenas será moldada para o trabalho como também poderá trazer algo que me surpreenda. Quem sabe ela não se torna mais do que apenas uma assistente?

Guardo o bloco com as anotações para Stefany, reviso mais uma vez os dados coletados e sigo para o próximo passo da pesquisa. O futuro pode esperar até o fim deste experimento.

A ilusão que crio para qualquer assistente é a mesma, um quebra-cabeça cuidadosamente montado. Beatriz só terá acesso à parte do complexo científico que parece um centro de pesquisa tradicional. Esse espaço, com corredores bem iluminados, salas de reunião envidraçadas e laboratórios de última geração, será todo o universo dela.

As casas que ela verá pertencem aos poucos moradores que integram essa mesma fachada, a minha casa, a dela, casa do Marlon, o nosso “motorista”  Antonio, o nosso “chefe de segurança”, todos já sabem como funciona, vão manter um perfil amigável e discreto. Eles são peças da engrenagem, todos com histórias bem ensaiadas, que reforçam a normalidade desse microcosmo. Quando Beatriz chegar, esses poucos "vizinhos" estarão prontos para acolhê-la, mas sempre dentro de limites controlados.

O que ela não verá, e nem desconfiará, é que além do muro, em outro ponto do complexo, há um condomínio ainda maior. É ali que vivem os membros-chave da organização, pessoas cujo trabalho e rotina Beatriz jamais terá contato. Esse outro lado é um mundo completamente diferente, onde o verdadeiro poder se manifesta

Para Beatriz, a separação será absoluta. O laboratório e as casas que ela conhecerá foram projetados para criar a sensação de um ambiente isolado e focado na ciência, quase como um campus universitário. A ideia é que ela não veja necessidade de explorar além disso. O complexo é grande, mas os limites do que ela pode acessar estarão bem claros e justificados, seja por questões de segurança ou pela necessidade de concentração no trabalho.

Criei uma rotina planejada para que ela acredite que conhece todos os detalhes relevantes. Excursões ocasionais às instalações, reuniões com "colegas" cuidadosamente selecionados e um fluxo de informações rigorosamente controlado garantirão que Beatriz veja exatamente o que quero que ela veja. Qualquer dúvida ou curiosidade será atendida de forma convincente, mas sem jamais dar margem para que ela se aproxime do lado sombrio que realmente opera por aqui.

Esse sistema funciona porque se baseia na confiança e no isolamento. Beatriz não terá motivos para desconfiar de nada. E mesmo que, em algum momento, algo pareça estranho, toda a estrutura ao redor dela — as pessoas, o ambiente, as regras — está projetada para neutralizar qualquer fagulha de dúvida antes que ela se transforme em chama.

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