Enquanto observava a moça descer as escadas, pensava que fora ousada demais em sua primeira aproximação. Queria apenas verificar se ela podia vê-la assim como a irmã, mas não imaginara ter sucesso em sua tentativa. Por sorte encontrara aquela delicada fitinha de seda para poder ter o que falar ou seria uma situação constrangedora.
Mas não era isso que importava, o que realmente ocupava sua mente naquele momento era a constatação de que fora vista. Aquilo lhe assustava e a deixava excitada ao mesmo tempo. Não haveria mais uma eternidade de solidão nem de silêncio, sua estranha existência teria um significado a partir daquele momento.
Porém, para tentar ajudar aquelas duas almas sofridas, precisava descobrir mais sobre elas. E para isso, teria que vigiá-las, o que não era lá muito difícil levando em consideração que podia ficar invisível ‒ por mais que não fosse uma assombração lá muito profissional.
Com esse ideal na mente, ela as encontrou sentadas no jardim, dando ainda mais beleza do lugar. Observando o céu claro, pareciam melancólicas e parte do cenário, como em uma pintura impressionista. Amália reparava que estavam em silêncio, como se não tivessem nada a falar uma com a outra. A mais velha observava a caçula com certa adoração, como se quisesse uma aproximação que a outra não lhe permitia. E foi ela que iniciou uma conversa, o que fez Amália se aproximar ainda mais, decidida a entendê-las melhor.
─ Tem certeza de que não quer conversar? ─ perguntou a ruiva com carinho.
─ Não tenho nada a dizer.
─ Mas eu quero saber, Anne ─ insistiu. Como Anne sequer olhou para ela, a outra tocou seu rosto com delicadeza e o virou para si. ─ Quero saber todas as coisas pelas quais passou para poder compreendê-la.
─ Acho que você não vai querer saber! ─ respondeu com um pouco de sarcasmo na voz.
─ Sim, eu quero!
Foi nesse momento que a menina olhou para a outra, de forma quase ameaçadora, com um sorriso torto nos lábios, e levantou-se, fazendo o mesmo com sua camiseta, deixando a pele da cintura de fora, revelando um hematoma arroxeado, que deveria ser resultado de um machucado provocado há pouco tempo.
─ Aqui está uma das coisas pelas quais passei. E essa foi uma das leves. Eles surravam a gente no orfanato, quando desobedecíamos. Sei que você vai simplesmente fazer uma cara de pena e dizer que agora vai tudo ficar bem. Mas não vai, Karen! Nunca vai! ─ com a voz alterada, ela proferiu a resposta e saiu, deixando Karen a observá-la, sem ter coragem de tomar qualquer atitude.
Amália ficou em dúvida se seguia a mais nova ou se cuidava de observar a mais velha. Porém, inexplicavelmente, Karen lhe despertava sentimentos mais fortes. Algo lhe dizia que, apesar de Anne ter mostrado machucados e um comportamento rebelde de quem tinha sofrido bastante, era Karen quem possuía o coração mais despedaçado. E ela queria descobrir o motivo.
As lágrimas que começaram a cair daqueles belos olhos verdes eram mais do que prova de que ela estava certa. Era de partir o coração ver o choro daquela moça se tornar um pranto compulsivo, enquanto abraçava os joelhos e escondia o rosto entre eles.
Sentindo-se indelicada por estar testemunhando aquele momento de fragilidade, Amália decidiu se afastar e lhe dar privacidade, por mais que Karen não pudesse vê-la. Teria que esperar um pouco mais para conhecer o motivo de tanta tristeza.
***
Karen sentiu um arrepio estranho na nuca, como se uma brisa gelada tivesse passado por ela. Isso fez com que levantasse sua cabeça para olhar ao seu redor, e tudo o que viu foi um rapaz parado ao seu lado, a observá-la, sem nenhum constrangimento, como se estivesse pronto para confortá-la, sem nem mesmo conhecê-la. Apesar de não estar sozinha, ela sabia que a estranha sensação de minutos atrás não tinha nada a ver com o jovem a seu lado.
─ Desculpe! Não queria ser indelicado, mas fiquei um pouco preocupado ─ ele falou, assim que ela virou seus olhos inchados e vermelhos em sua direção. Foi então que ele percebeu que ela chorava. Como Karen estava sentada em um dos degraus que dividiam a casa do quintal com a piscina, ele se abaixou para se sentar ao seu lado. ─ Ei... eu não imaginava... Pensei que estava passando mal. Você está bem?
─ Sim, estou. Não se preocupe, não está sendo indelicado.
─ Eu posso ajudar em alguma coisa?
─ Não. Infelizmente, não. ─ Ela sorriu com delicadeza. ─ Mas obrigada por perguntar.
Ambos ficaram calados por algum tempo. Karen não costumava se sentir muito à vontade com estranhos, especialmente homens. Aquele lhe inspirava ainda menos confiança, pois era atraente e parecia olhá-la com interesse. Ou talvez fosse apenas mais uma paranoia de sua cabeça.
─ Meu nome é Sérgio. ─ Ao perceber a hesitação de Karen, ele estendeu a mão para ela, em um gesto gentil, apresentando-se.
─ Karen. Muito prazer. ─ Ela aceitou a mão que ele lhe oferecia, com um pouco de relutância. Bem, parecia um gesto inofensivo, afinal.
─ Você é nova por aqui, não é?
─ Sim, cheguei hoje.
─ Pretende ficar quanto tempo?
─ Ainda não sei. ─ Bem, aquilo não era exatamente verdade; Karen tinha uma noção de quanto tempo pretendia ficar por ali, mas não tencionava dar muitas informações para ele. ─ E você, chegou quando?
─ Há cinco anos ─ ele respondeu em um tom bastante natural, como se estar morando há cinco anos em uma pousada fosse completamente normal.
─ Cinco anos? ─ perguntou abismada.
─ Eu trabalho aqui. Sou meio que o dono. Herdei a pousada da minha avó ─ revelou, e ela riu. Ele ficou feliz em ter amenizado um pouco aquela expressão de tristeza de seu rosto. ─ Aliás, espero que esteja bem acomodada ─ ele acrescentou com uma espécie de formalidade e mesura, que faziam parte da brincadeira, é claro.
─ Estou muito bem acomodada, obrigada.
─ Fico feliz em saber. ─ Sérgio levantou-se, decidido a lhe dar um pouco de espaço. ─ Se precisar de qualquer coisa, me procure, eu moro na casa nos fundos.
─ Pode deixar.
Com um aceno de cabeça ele se afastou, deixando Karen novamente solitária, exatamente da forma como ela preferia e como estava acostumada a ficar. Não que não gostasse de pessoas, ela simplesmente não conseguia confiar, não conseguia dar a elas o que esperavam. Não conseguia imaginar-se sendo normal, deixando que alguém se aproximasse tanto a ponto de descobrir seus segredos do passado. Tinha medo que um homem se interessasse por ela, pois acreditava que jamais teria coragem de se entregar. Tudo que sabia sobre sexo resumia-se a violência, humilhação, dor e nojo. Por mais que muitas pessoas lhe dissessem que fazer amor era algo especial, que a união dos corpos de um homem e uma mulher, quando feita por amor, poderia ser sublime, bela e prazerosa, Karen não se sentia curiosa a respeito disso, não sentia falta de um namorado, nem de amigos íntimos. As únicas pessoas em quem confiava eram o Senhor Olavo e Anne ─ embora mal a conhecesse nos dias atuais. Além deles, confiara também na Madame Renoir, a mulher que a acolhera e lhe dera um emprego com um bom salário. Mais do que isso, esta lhe deixara uma gorda herança, sabendo de suas dificuldades, que era o que estava proporcionando aquela estadia prolongada em um lindo lugar. Karen devia tudo àquela mulher, mas nunca teria a oportunidade de pagar.
Era estranho pensar que em apenas algumas horas, desde que chegara naquele lugar tão especial, já tivesse conhecido duas pessoas que pareciam simplesmente querer fazer amizade com ela. Sabia, entretanto, que todos esperavam algo em troca, mesmo que fosse o mesmo que lhe ofereciam: um ombro amigo, palavras de conforto e cumplicidade, mas Karen não tinha nada disso para compartilhar. Em seu coração ela só tinha culpa, dor e ressentimento. E talvez aquele fosse um veredito eterno.
Um raio cortou o ar, um trovão entoou sua canção assustadora e a tempestade se formou em poucos minutos. Anne não gostava de tempestades, e Karen sabia disso. Sabia que quando ela era pequena, sempre corria para seu quarto todas as vezes que havia a promessa de um temporal, ou quando o clarão de um relâmpago clareava a noite. Ela acreditava que era o anúncio da chegada de monstros ou fantasmas, e embora Karen sempre tivesse lhe ensinado que essas coisas não existiam, ela ainda procurava a proteção da irmã mais velha. Porém, daquela vez foi diferente. Claro que já fazia muito tempo desde a última noite que passaram juntas, e Karen lamentava que logo a primeira já estivesse sendo coroada por uma chuva bem forte, porém, acreditava que velhos hábitos nunca desapareciam. Uma vez com medo de tempesta
Ele andava de um lado para o outro, ansioso como sempre. Não estava buscando uma pousada com ares acolhedores, mas fora o melhor que encontrou. Ao menos estava longe o suficiente de todas as terríveis lembranças... esperava apenas que não lhe fizessem muitas perguntas, especialmente aquelas que não estava disposto a responder. Além de perguntas, ele também odiava surpresas. Odiava não saber o que o esperava, odiava ser surpreendido, mas fora exatamente o que acontecera quando a porta daquele lugar foi aberta. Não esperava ser recebido, àquela hora, em uma noite tão fria, por uma mulher tão jovem. E, céus, como ela era bonita! Tinha uma expressão assustada, vulnerável e inocente, em um rosto angelical e delicado. Parecia uma daquelas mulheres de filmes antigos que sua mãe gostava de assistir quando el
Ele só podia estar ficando louco. Louco! Estava ali naquela cidade para se curar, para reunir os pedaços de seu coração partido e colá-lo outra vez. Já era sua segunda parada naquela estranha e solitária road trip[1] de férias, e esperava não levar muito mais tempo para resolver aquele problema. A mamata não poderia durar para sempre. Sendo assim, não conseguia compreender por que se preocupara com a garota, muito menos com a irmã. Elas não eram problema seu. Não eram sua responsabilidade. A única pessoa de quem deveria ter cuidado, protegido, traíra sua confiança e estava agora no fundo do poço. Passara a sentir-se um pouco solitário nos últimos meses, mas talvez fosse melhor assim. Quanto
Havia vozes animadas conversando, o tilintar de copos, pratos e xícaras encostando uns nos outros, havia risadas e um cheiro delicioso de pão fresquinho no ar. Karen estava no paraíso. Era bem verdade que preferia que Anne estivesse ali com ela, sentada à mesa, comendo com vontade e começando a se abrir; ou pelo menos apenas conversando sobre qualquer coisa. De fato, estava tão preocupada por ela não comer que nem se importaria se ficasse somente em silêncio. Já havia descido há pelo menos quinze minutos e estava ansiosa, sempre olhando para a entrada do pequeno salão que servia como restaurante, ainda acreditando que ela iria aparecer. Contudo, um rosto familiar apareceu no lugar da adolescente. Era Sérgio, parecendo muito bonito com sua blusa polo branca
Anne não voltara para o quarto, porém, Karen não estava preocupada, porque conseguia enxergá-la na piscina, tomando sol. Usava um maiô um pouco gasto, mas que com certeza fora escolhido estrategicamente para esconder seus hematomas, cuja origem ela ainda desconhecia. Enquanto a menina estivesse ali, tudo estaria bem, e ela precisava concordar que aquele quarto, talvez, fosse pequeno demais para elas. O silêncio entre duas pessoas podia ser ainda mais sufocante do que a solidão, mais torturante do que os gritos e as discussões. E cada vez que Anne lhe dirigia um olhar indiferente ou que lhe cuspia uma de suas palavras ríspidas, Karen sentia-se morrer um pouco. Não era uma morte de corpo, era seu espírito que morria lentamente. Seu único propósito na vida sempre fora recuperar a irmã, cumprir a promessa que fizera par
Já que tinha uma festa para ir, Karen decidiu que seria uma boa hora para comprar algo novo para vestir. Para si mesma e para Anne. Odiava fazer gastos desnecessários, mas sabia que se revirasse sua mala de cima a baixo não encontraria nada legal para uma festa. E o mesmo aconteceria com a irmã. Pediu que Sérgio e Amália ficassem de olho na garota por algumas horinhas e partiu para o centro de Vilamares, pronta para comprar algo que fosse charmoso e fresco ao mesmo tempo, já que o tempo parecia começar a esquentar. Vasculhou as lojas em busca de algo ideal e encontrou para si um lindo floral acinturado, em tons de azul e branco, com uma saia delicada e rodada, frente única. Possuía uma sandália não muito nova de salto alto, preta, que combinaria perfeitam
Capítulo Quatro Bem, não era exatamente o que ela imaginava. O mar não tinha ondas, apenas marolas, e a praia era tão pequena que mal poderia caber uma família inteira. Mas o que ela poderia saber sobre uma família, se jamais tivera uma, pelo menos não uma que fosse normal. O cheiro e o barulho do mar eram inebriantes. Sentada na areia, sem nem se importar se iria estragar ou sujar o belo vestido, que ganhara de presente de alguém que ela nem sabia quem era, Anne contemplava o horizonte. Nunca tivera oportunidade de ver o mar, o que poderia ser considerado um absurdo, afinal nascera e crescera no Rio de Janeiro, mas a verdade era que ela sequer havia começado a viver. Não queria pensar que sua irmã fora responsável por qualquer coisa boa, porém, precisava admitir que aquele er
Já era quase meia-noite, e Karen olhava de um lado para o outro, procurando por Anne. Perguntara para algumas pessoas, inclusive para Tauan, o menino que estivera conversando com ela horas atrás, mas ele também não a vira desde que o deixara praticamente falando sozinho. Karen também presenciara a cena, mas pensara que Anne iria para o quarto, porém, estivera lá e nada. Estava vazio. Decidida a procurá-la, começou a sair da pousada, mas Sérgio veio correndo em sua direção e a chamou. — Ei, está na hora de partir o bolo. — aproximou-se sorrindo. — Eu sei, mas a Anne desapareceu. Outra vez. — mostrou-se desanimada. &