Havia vozes animadas conversando, o tilintar de copos, pratos e xícaras encostando uns nos outros, havia risadas e um cheiro delicioso de pão fresquinho no ar. Karen estava no paraíso.
Era bem verdade que preferia que Anne estivesse ali com ela, sentada à mesa, comendo com vontade e começando a se abrir; ou pelo menos apenas conversando sobre qualquer coisa. De fato, estava tão preocupada por ela não comer que nem se importaria se ficasse somente em silêncio. Já havia descido há pelo menos quinze minutos e estava ansiosa, sempre olhando para a entrada do pequeno salão que servia como restaurante, ainda acreditando que ela iria aparecer.
Contudo, um rosto familiar apareceu no lugar da adolescente. Era Sérgio, parecendo muito bonito com sua blusa polo branca e as calças pretas, impecavelmente passadas e que lhe caíam muito bem. Os cabelos loiros e lisos estavam molhados, jogados para trás. Quem o visse, poderia jurar que estava preparado para uma partida de golfe em algum clube caro, acompanhado por pessoas de prestígio.
Entrava no salão, sorrindo para os hóspedes com simpatia e dando-lhes a devida atenção. Porém, apesar de tentar ser igualmente cortês com todos, seu olhar logo se voltou para a direção de Karen, começando a caminhar até ela, puxando uma cadeira e se sentando a seu lado.
— Posso te acompanhar no café?
— Claro. Só não quero que os outros hóspedes fiquem com ciúmes de mim — brincou ela. Sérgio, por sua vez, gostou de vê-la sorrindo, um pouco mais à vontade perto dele.
— Ah, quanto a isso não se preocupe! A maioria deles já teve o prazer da minha companhia em vários cafés da manhã.
— Vários? Há quanto tempo estão aqui? — surpreendeu-se.
Sérgio riu com vontade de sua expressão assustada.
— Ei, fique calma, não somos o Hotel California [1], que prende os passageiros por uma maldição e tudo mais...
— Eu sempre achei que a letra de Hotel California tinha a ver com dependência química — ela provocou, como se aquela discussão tivesse alguma relevância.
— Bem... não vem ao caso. Você entendeu a comparação. — Ele riu, e ela o imitou. — O que acontece conosco é que oferecemos um bom serviço, e as pessoas costumam voltar. Como o caso daquela família ali... — Sérgio apontou para uma mesa à esquerda de onde eles estavam, onde um casal de meia idade e um jovem adolescente, um pouco mais velho que Anne, também tomavam seu desjejum. — Já é a terceira vez que passam suas férias aqui. Ficam normalmente um mês inteiro. Quando vão embora, sempre juram que no ano seguinte conhecerão outro lugar, mas estão sempre aqui. — Apesar do tom de fofoca, ele falava com carinho daquela família. — Já aquele casal, a moça é cliente antiga, vinha sempre com uma amiga. Agora que se casou, nos escolheu para passar a lua de mel — ele falou, mostrando um lindo casal jovem, que parecia apaixonado e feliz. — E ainda tem aquele senhor ali. Ele praticamente fixou residência. Dizem que tem muito dinheiro, mas fala pouco e parece rabugento. Menos comigo, é claro. — Karen olhou para o homem sentado na mesa da frente, e ficou encabulada quando ele olhou de volta, percebendo que estavam falando dele. Na verdade, ele a olhou com um pouco de malícia nos olhos, o que a deixou também encabulada. — Pelo visto ele também é simpático com moças bonitas e muito mais jovens do que ele.
O último comentário de Sérgio foi um pouco protetor, mas não deixou Karen incomodada. Cuidava de si mesma há um bom tempo e era novo ter pessoas ao seu redor querendo conversar ou saber como ela estava. Podia ser estranho, mas não era ruim. De forma alguma. Chegava a ser confortador.
Então, após aquele relato de Sérgio sobre os hóspedes, ambos se levantaram e foram se servir na farta mesa. Tudo parecia saboroso, então, ela escolheu algumas coisinhas. Ele, por sua vez, parecia ter um apetite voraz, em contraste com o corpo forte e definido, que podia ser reconhecido mesmo por baixo da blusa grossa.
Voltaram, portanto, à mesa, depois de poucos minutos, começando a conversar despretensiosamente. O que Karen apreciou em Sérgio foi que ele soube conduzir a conversa de forma agradável sem fazer muitas perguntas indelicadas ou sem constrangê-la. Pouco mencionou Anne, pois percebeu que ela não tinha aparecido, evitou falar sobre passado e focou o assunto em coisas triviais como cinema, música, sobre a cidade de Vilamares e a faculdade dele de Hotelaria, concluída na mesma época em que ele foi morar lá, para cuidar da avó e da pousada que tanto amava. Estava claro que ele adorava o que fazia e que tinha planos de expandir a pousada, talvez criar filiais, mas jamais permitindo que perdesse aquele encanto de aconchego e aquele aspecto de lar. Ele enfatizou que preferia ter um lugar pequeno, com poucas acomodações, mas que permitisse uma interação entre os hóspedes, pois ele adorava conhecer pessoas novas e achava que todos deveriam ter a mesma experiência.
Era gostoso ouvi-lo falar, pois ele parecia alegre, fazendo com que tudo parecesse muito simples. Karen começava a se soltar com ele, o que era raro. Isso fez com que acreditasse que poderiam ser amigos, e a ideia parecia muito boa. Fazia tempo que não tinha um amigo, com exceção do senhor Olavo e da falecida senhora Marieta, para quem trabalhara antes de terminar naquele lugar lindo, mas nenhum deles estava em sua faixa etária. Sempre conversavam muito, especialmente com sua ex-patroa, mas não era a mesma coisa. Pensar que sua vida estava mudando para melhor era uma esperança e tanto.
Mas toda a alegria de Karen durou muito pouco. Anne, que ela tanto esperara, estava descendo as escadas, porém, não estava sozinha. Na verdade, ela praticamente corria atrás de Marcos, o hóspede misterioso da noite anterior, parecendo suplicar por atenção, enquanto ele simplesmente a ignorava, seguindo seu caminho.
Que tipo de homem era aquele que virava as costas para uma garotinha e a deixava falando sozinha? E por que será que Anne tinha que se meter exatamente com a pessoa mais errada da pousada?
Da posição em que Karen estava no restaurante, cujas janelas eram grandes, ela conseguiu seguir o caminho de Marcos até que ele chegasse a uma moto ‒ é claro que ele só poderia dirigir algo daquela espécie ‒, que parecia muito cara, apesar de Karen não entender nada delas. De uma forma extremamente sensual, quase ensaiada, ele colocou cada uma de suas longas pernas de um lado da moto, e quando estava começando a colocar o capacete, olhou na direção dela, fazendo seus olhos se encontrarem por um momento.
Havia algo de muito primitivo na forma como ele a olhou. Seus olhos estavam semicerrados, em uma expressão sedutora e possessiva, o que podia assustá-la facilmente, mas não foi o que aconteceu. Apesar de toda a luxúria intrínseca naquele olhar, Karen sentiu também um pouco de solidão. Não que ela achasse que podia ler a alma de um homem como aquele, mas podia jurar que ele a olhava com interesse, apesar de ter a certeza de que nunca poderia tê-la, e que nem tentaria. Aquilo a deixava mais tranquila, e enquanto ele se mantivesse longe de sua irmã, mereceria um voto de confiança. O que era mais do que ela tinha dado para muita gente.
— Estranho ele, você não acha? — Sérgio perguntou, também olhando para Marcos, conforme ele partia com a moto.
— Sim, também achei.
— Espero que não cause problemas. — Assim que terminou a frase, com uma expressão preocupada no rosto, ele prosseguiu, olhando nos olhos dela, suavizando o tom de voz. — Especialmente para você.
— Não acredito que ele esteja disposto a causar problemas para ninguém. Acho que está muito mais interessado em ficar sozinho e não se envolver com nada.
— Bem, sua irmã parece ser a única que gostou dele — Sérgio disse, olhando para Anne, que parecia bastante decepcionada pelo fato de Marcos ter lhe tratado com tanta indiferença.
Karen havia reparado aquilo também. E claro que não gostara nem um pouco da constatação. Por praticamente desconhecer aquela jovem que era sua irmã, não sabia como lidar com ela. Estava falhando... Falhando em seu único objetivo na vida: dar um futuro seguro para Anne. Pensar em tal coisa fazia com que seu coração se despedaçasse em mil cacos, e pela expressão triste que se manifestou em seu rosto, Sérgio percebeu que algo a estava incomodando.
— Falei alguma coisa errada? — indagou preocupado.
— Não... de forma alguma. Pode apenas me dar licença? Acho melhor eu ir falar com ela.
Sérgio assentiu com a cabeça e viu Karen se levantar, começando a caminhar na direção da irmã. Lamentava ter perdido sua companhia tão cedo, mas era bom que ela pudesse conversar com a irmã, embora acreditasse que aquela conversa não seria lá muito produtiva.
Durante o breve caminho até a mesa em que Anne resolvera se sentar ‒ sozinha ‒ para tomar seu desjejum, Karen tentava articular as palavras que deveria falar para alertar a irmã sobre não confiar naquele homem, mas buscava uma forma de fazê-lo para que não soasse como um sermão, e, sim, como um conselho de uma amiga.
Assim que chegou a seu destino, puxou uma cadeira para si mesma, sem nem pedir permissão a Anne. A caçula, no entanto, não tardou em reclamar:
— Não estou a fim de companhia...
— E nem eu estou a fim de incomodá-la. Só quero conversar sobre uma coisa. — Karen enfatizou a expressão “a fim”, de uma maneira irônica. Percebeu, em seguida, que Anne realmente não estava disposta a cooperar, pois fingiu-se de muito concentrada em seu sanduíche de presunto. Mesmo assim, Karen não iria deixar a conversa para depois. — Anne, o que você sabe sobre aquele homem?
— Que homem?
— Nosso vizinho de quarto, o tal de Marcos.
— Ah, isso! Esse é o nome dele! Agora lembrei.
— Lembrou? Você já o conhece?
— Ele é guitarrista de uma banda que eu gosto. Além de ser lindo...
— Ele até pode ser bonito, mas é muito velho para você. Além disso, não parece muito confiável. Se é famoso, pior ainda. A gente não sabe com que tipo de coisas pode estar envolvido.
— Ai, que preconceito! Você nem sabe nada sobre ele... — A rebeldia estava lá, impregnada em sua voz. Por um momento, Karen se amaldiçoou por ter iniciado aquele discurso, pois já imaginava que só acabaria tornando Marcos ainda mais interessante aos olhos de Anne. Nem que fosse apenas por provocação.
— É apenas uma intuição, Anne — suspirou, sentindo que aquilo não a levaria a lugar algum.
— Ah... uma intuição? — debochou. — E por que essa intuição não funcionou para lhe avisar que sua irmã precisava que você demorasse menos a ir me buscar? — Ao dizer aquilo, Anne já ia se levantando, pronta para fugir novamente, mas Karen segurou seu braço, impedindo-a de sair dali.
— Você não sabe do que está falando. Você me repeliu. Você que não quis me ver. Eu passei esses anos todos lutando por você. Se acha que eu tive a vida perfeita depois que nos separamos, está completamente enganada. — Ao final da frase, a voz da mais velha começou a embargar um pouco, sinal de que estava a ponto de chorar.
— Não quero saber! — elevou o tom de voz, o que fez com que todos ao redor olhassem para a mesa das duas, assustados. Envergonhada, Anne falou mais baixo, prosseguindo com sua indiferença: — Não me interessa. Não quero ser sua amiga, Karen. Entenda isso e me deixe em paz.
Daquela vez, Karen não teve coragem de segurar Anne ali por mais tempo, então, a deixou partir, sentindo o último sopro de esperança, que ainda sustentava sua alma de pé, evanescer. O que sua mãe estaria pensando se as visse naquele momento? Se as estivesse observando lá do céu, com certeza estaria decepcionada; mas com qual das duas? Sabia que estava fazendo sua parte, sabia que lutaria com todas as suas forças para defender a irmã, para fazê-la enxergar que jamais a deixara para trás, que jamais a esquecera, mas como convencê-la, se mal conseguiam manter uma conversa? A vida se encarregara de ser dura demais para elas, e não seria Karen quem iria destruir ainda mais sua inocência. Se é que Anne ainda tinha uma.
[1] Hotel California é uma música de sucesso dos anos 70, composta pela banda Eagles.
Anne não voltara para o quarto, porém, Karen não estava preocupada, porque conseguia enxergá-la na piscina, tomando sol. Usava um maiô um pouco gasto, mas que com certeza fora escolhido estrategicamente para esconder seus hematomas, cuja origem ela ainda desconhecia. Enquanto a menina estivesse ali, tudo estaria bem, e ela precisava concordar que aquele quarto, talvez, fosse pequeno demais para elas. O silêncio entre duas pessoas podia ser ainda mais sufocante do que a solidão, mais torturante do que os gritos e as discussões. E cada vez que Anne lhe dirigia um olhar indiferente ou que lhe cuspia uma de suas palavras ríspidas, Karen sentia-se morrer um pouco. Não era uma morte de corpo, era seu espírito que morria lentamente. Seu único propósito na vida sempre fora recuperar a irmã, cumprir a promessa que fizera par
Já que tinha uma festa para ir, Karen decidiu que seria uma boa hora para comprar algo novo para vestir. Para si mesma e para Anne. Odiava fazer gastos desnecessários, mas sabia que se revirasse sua mala de cima a baixo não encontraria nada legal para uma festa. E o mesmo aconteceria com a irmã. Pediu que Sérgio e Amália ficassem de olho na garota por algumas horinhas e partiu para o centro de Vilamares, pronta para comprar algo que fosse charmoso e fresco ao mesmo tempo, já que o tempo parecia começar a esquentar. Vasculhou as lojas em busca de algo ideal e encontrou para si um lindo floral acinturado, em tons de azul e branco, com uma saia delicada e rodada, frente única. Possuía uma sandália não muito nova de salto alto, preta, que combinaria perfeitam
Capítulo Quatro Bem, não era exatamente o que ela imaginava. O mar não tinha ondas, apenas marolas, e a praia era tão pequena que mal poderia caber uma família inteira. Mas o que ela poderia saber sobre uma família, se jamais tivera uma, pelo menos não uma que fosse normal. O cheiro e o barulho do mar eram inebriantes. Sentada na areia, sem nem se importar se iria estragar ou sujar o belo vestido, que ganhara de presente de alguém que ela nem sabia quem era, Anne contemplava o horizonte. Nunca tivera oportunidade de ver o mar, o que poderia ser considerado um absurdo, afinal nascera e crescera no Rio de Janeiro, mas a verdade era que ela sequer havia começado a viver. Não queria pensar que sua irmã fora responsável por qualquer coisa boa, porém, precisava admitir que aquele er
Já era quase meia-noite, e Karen olhava de um lado para o outro, procurando por Anne. Perguntara para algumas pessoas, inclusive para Tauan, o menino que estivera conversando com ela horas atrás, mas ele também não a vira desde que o deixara praticamente falando sozinho. Karen também presenciara a cena, mas pensara que Anne iria para o quarto, porém, estivera lá e nada. Estava vazio. Decidida a procurá-la, começou a sair da pousada, mas Sérgio veio correndo em sua direção e a chamou. — Ei, está na hora de partir o bolo. — aproximou-se sorrindo. — Eu sei, mas a Anne desapareceu. Outra vez. — mostrou-se desanimada. &
Embora não conhecesse nada de Vilamares, ela podia acreditar que eles já tinham percorrido a cidade inteira e todas as praias da região. Marcos acreditava que a menina deveria ter ido a uma delas, já que Karen suspeitava que Anne nunca tinha visto o mar. Era estranho ela simplesmente suspeitar coisas sobre a irmã que deveria conhecer muito bem. Quando Anne nascera e que Karen tivera a oportunidade de contemplar aquele bebezinho pequeno e delicado, jurou para si mesma que jamais permitiria que alguém lhe fizesse mal. Prometera que estaria ao seu lado a cada choro, a cada riso, que a aconselharia e a guiaria para o caminho correto, mas o destino quis que tudo acontecesse de uma forma diferente. Agora, depois de tanto tempo, ela esperava que ainda tivesse tempo suficiente para reparar os erros do passado.&nb
E realmente conseguiu. Quando chegaram ao automóvel, Karen estava quase chorando de dor, mas manteve-se firme. Coisa que Marcos não deixou de reparar. Aquela mulher tão pequena era muito mais corajosa do que ele poderia imaginar. E também era muito silenciosa, mas isso ele até achou preferível, pois não tinham muito o que dizer, especialmente com a adolescente rebelde no banco de trás. Assim que chegaram à pousada, Anne saltou do carro furiosa e disparou escadas acima, abandonando Karen e Marcos sozinhos. — Ela é bem difícil mesmo — Marcos comentou, completamente sem paciência. — Não sei mais o que fazer... — Karen levou ambas as mãos ao rosto, m
Anne nem sequer pregara o olho. Trancara-se no quarto, porque tudo o que queria era chorar, mas sem que Karen a visse. Não queria demonstrar fragilidade. Abriu a porta, decidida a usar o único banheiro do quarto, depois de passar a noite inteira segurando o xixi só para não sair de seu refúgio, e a primeira coisa que viu foi uma trilha de pequenas gotas sangue que percorria uma boa parte do chão marfim do quarto, parando no banheiro. Não era nada absurdo, longe de uma hemorragia, mas na visão de uma adolescente assustada, mais parecia que alguém tinha sido esfaqueado. A menina ficou apavorada, certa de que alguma coisa muito ruim tinha acontecido com sua irmã. Deixando o orgulho de lado, correu na direção do banheiro e começou a esmurrar a porta, c
Mas seria possível que não iam parar de bater naquela porta? Desde quando se tornara assim tão popular? O pé latejava bastante ainda, e pisar no chão era ainda mais doloroso, principalmente levando em consideração que estava extremamente bem acomodada sobre a cama macia e os lençóis limpinhos da pousada. Contudo, não podia deixar a pessoa esperando. Poderia até ser Anne, que poderia ter perdido a chave. Típico de meninas da sua idade. Demorou um pouco mais do que o normal para chegar à porta, porém, quando a abriu, quem viu do outro lado foi Sérgio, segurando uma enorme cesta cheia de guloseimas em seus braços. No momento em que viu tantas coisas gostosas e sentiu o cheiro de omelete fresquinho, o estômago de Karen come&c