Um raio cortou o ar, um trovão entoou sua canção assustadora e a tempestade se formou em poucos minutos. Anne não gostava de tempestades, e Karen sabia disso. Sabia que quando ela era pequena, sempre corria para seu quarto todas as vezes que havia a promessa de um temporal, ou quando o clarão de um relâmpago clareava a noite. Ela acreditava que era o anúncio da chegada de monstros ou fantasmas, e embora Karen sempre tivesse lhe ensinado que essas coisas não existiam, ela ainda procurava a proteção da irmã mais velha. Porém, daquela vez foi diferente.
Claro que já fazia muito tempo desde a última noite que passaram juntas, e Karen lamentava que logo a primeira já estivesse sendo coroada por uma chuva bem forte, porém, acreditava que velhos hábitos nunca desapareciam. Uma vez com medo de tempestades, sempre com medo de tempestades. Por isso, levantou-se da cama, vestiu um penhoar por cima da camisola e foi até o quarto da menina, mas não a encontrou.
Ao ver a cama vazia, desfeita, Karen começou a entrar em pânico. Aquela reação já era uma velha conhecida, mas com o tempo, aprendera a controlar os sintomas. Nada que respirar bem fundo e contar até dez não resolvesse. Mas, daquela vez, a ameaça era real: Anne poderia ter desaparecido.
A primeira coisa que fez foi verificar o armário onde ela guardara suas roupas, mas, para seu alívio, todas estavam lá, o que significava que ela não tinha fugido. Verificou banheiro, corredor, debaixo de sua cama, dentro de armários, até nos lugares mais absurdos ‒ pois nunca se sabia onde uma pessoa poderia se esconder, por medo de uma tempestade ‒, mas nenhum sinal da menina.
Pegando a chave do quarto para não ficar presa do lado de fora, Karen decidiu procurá-la pela pousada. Já passava de meia-noite, mas acreditava ‒ ou queria acreditar ‒ que ela ainda estaria ali.
Desceu as escadas correndo, quase tropeçando ao chegar no último degrau, e começou a caminhar pelo corredor do primeiro andar e depois pelo hall. Estava tudo vazio, escuro e silencioso. Por um momento, começou a sentir um pouco de medo e frio, então, fechou ainda mais o penhoar, segurando-o contra o corpo. Chamou o nome de Anne, tentando não elevar muito a voz para não acordar ninguém. Mas nada, nenhuma resposta.
Ainda lhe restava um lugar para procurar: o quintal, onde ficava a piscina e o jardim. Porém, antes que pudesse cruzar a porta dos fundos da casa, ouviu alguém bater na da frente, com pressa e urgência.
Karen deveria simplesmente ignorar aquilo e continuar sua busca pela irmã, afinal, era uma hóspede e não tinha obrigação de atender à porta, contudo, conforme a pessoa do lado de fora começava a insistir, ela penalizou-se, pois podia ser alguém precisando de abrigo para aquela noite fria. E a recepção estava momentaneamente vazia.
Praguejou, amaldiçoando sua própria generosidade, mas foi até a porta, cumprir com sua ideia. Ao menos estaria realizando sua boa ação do dia; quem sabe não ganhava algo em troca dos céus e sua irmã simplesmente aparecesse.
Com um pouco de dificuldade, ela girou o trinco da porta, em seguida fez o mesmo com a chave, que estava presa à fechadura, e, com a mão na maçaneta, abriu a pesada porta de madeira. Contudo, o que viu do lado de fora não era nem um pouco o que esperara a princípio.
Do lado de fora daquela pousada, estava um homem. Um homem perigosamente, tentadoramente bonito.
Ele estava encharcado de chuva, que pingava de seus cabelos escuros, levemente compridos, de suas roupas e de suas mãos. Sua mochila estava arruinada, o mesmo acontecia com a capa de couro de um instrumento musical que ele carregava nas costas. Ela também imaginava que tudo que ele trazia consigo devia estar um pouco comprometido.
Aquele era o momento em que ela deveria simplesmente fechar a porta, voltar a procurar por Anne, e quando a encontrasse, deveria retornar ao quarto e esperar que qualquer funcionário da pousada fosse recebê-lo, mas não foi o que ela fez.
Por um momento nenhum dos dois disse nada. Ele também não esperava ser recebido àquela hora da madrugada por uma linda e jovem mulher vestindo apenas uma camisola coberta por um penhoar. Esperava menos ainda ver aqueles adoráveis olhos verdes completamente assustados, como se ele fosse uma espécie de bicho papão.
─ Boa noite! ─ foi ele que falou primeiro. ─ Será que eu posso entrar?
─ Ah, me desculpe! ─ exclamou sem jeito e em seguida abriu a porta, permitindo que ele passasse.
Karen o observou enquanto ele inspecionava a pousada com os olhos. Bem, na verdade ela também o inspecionava e ao olhar para ele, tudo que sua mente gritava era: problemas. Tudo nele inspirava encrenca, desde o casaco de couro que caía perfeitamente em seu corpo visivelmente musculoso, sua altura imponente, que a fazia parecer ainda menor ao lado dele, os óculos escuros pendurados na gola da camiseta até o tom da voz arrastado e levemente rouco. Porém, o que mais demonstrava que deveria se manter afastada de um tipo como aquele era uma pequena cicatriz que ele tinha no queixo, bem ao lado da covinha charmosa, que parecia razoavelmente recente; sinal de que ele estivera envolvido em alguma briga.
E quando ele olhou para ela de volta, fazendo seus olhares se cruzarem, foi que ela percebeu que aquilo estava errado, muito errado.
─ Eu queria um quarto. ─ Claro que ele queria um quarto, era algo óbvio, mas Karen ainda demorou para conseguir pensar com clareza e tomar uma atitude.
─ Desculpe, mas eu não trabalho aqui... Vou procurar alguém que possa ajudá-lo.
O mais rápido que pôde, ela lhe deu as costas, tentando evitar aquele contato visual, pronta para ir chamar alguém, esperando que houvesse algum funcionário acordado ou disposto a atender um hóspede inesperado e inconveniente. Porém, antes de qualquer coisa, ela se virou de volta para ele, não conseguindo evitar uma pergunta crucial:
─ Quanto tempo pretende ficar? ─ A pergunta poderia ter soado pessoal ou denotar algum interesse da parte de Karen, mas não da forma indiferente com a qual ela falou. Na verdade, ele reparou uma espécie de medo da parte dela, como se esperasse que ele ficasse o mínimo de tempo possível. Aquilo o deixou confuso.
─ Não sei ainda. Acredito que uma semana ou um pouco mais.
Karen apenas balançou a cabeça de forma positiva e seguiu, finalmente, seu caminho, deixando aquele homem misterioso sozinho.
Ela foi direto à administração e bateu à porta. Esperou alguns minutos, mas ninguém se manifestou. Tentou girar a maçaneta, mas estava trancada. Não havia ninguém ali, como ela já imaginava. Lembrou-se então de Sérgio e acreditou que ele fosse atendê-la, apesar do horário impróprio. Tentou, então, sua porta, e depois de alguns minutos, foi atendida.
Sérgio a recebeu com os cabelos desgrenhados, vestindo uma bermuda e uma camiseta que, com certeza, fora vestida às pressas, pois estava do lado avesso. Seu rosto estava amassado e os olhos quase fechados.
─ Acho que o acordei, me desculpe ─ ela disse envergonhada.
─ Não tem problema. Está tudo bem com você? ─ ele perguntou sem maldade, e Karen ficou feliz em perceber que ele não estava interpretando aquela visita inesperada de forma maliciosa.
─ Você não deveria ter atendido à porta sozinha a essa hora. Poderia ter me chamado.
─ Eu sei, eu sei... eu só imaginei que fosse uma pessoa precisando se abrigar da chuva. Espero não ter trazido problemas à pousada. ─ Lá estava ela novamente se desculpando, falando como se fosse ser punida ou repreendida por algum ato que pudesse ser considerado errado. Sérgio começava a perceber que havia realmente algo de errado com aquela moça... Algo que realmente a tornava frágil e amedrontada.
─ Fique tranquila. Sua intenção foi boa. Vou lá ver quem é ─ ele falou com doçura, tocando em seu braço, o que a fez se afastar um pouco. Bem, ele teria que evitar contatos físicos se quisesse conquistar a amizade daquela moça. ─ De qualquer forma, vá para seu quarto. Não sabemos de quem se trata.
─ Eu estava procurando pela minha irmã. Não consigo encontrá-la em lugar algum.
Sérgio suspirou. Já tinha percebido que a adolescente traria alguns problemas para a irmã mais velha, mas não imaginava que seria tão rápido. Não fazia ideia de qual era o problema entre elas, mas sabia que havia um.
─ Bem, vamos fazer o seguinte então, venha até a sala comigo; assim que eu atender ao homem que chegou, vou ajudá-la a procurar sua irmã. Ela levou alguma coisa com ela?
─ Não. Suas roupas estão todas no armário ainda.
─ É um bom sinal. Ela ainda deve estar na pousada. ─ Ele fez uma pausa. ─ Vou colocar uma calça e já volto. Quer esperar aqui dentro? ─ ofereceu sem maldade, mas percebeu que ela se sentiu acuada.
─ Não... ─ respondeu rápido, sem nem pensar. ─ Não, é melhor que eu espere aqui fora.
─ Tudo bem, não vou demorar... ─ Ele já ia entrando e fechando a porta para poder ter mais privacidade, quando ouviu seu nome, sendo chamado por ela. ─ Sim? ─ atendeu ao chamado tímido daquela voz doce e melodiosa.
─ Acho que além de colocar uma calça, você deveria ajeitar sua blusa, ela está do avesso. ─ Finalmente ela tinha um sorriso no rosto, e ele conseguia quase escutar um resquício de um tom divertido em sua voz. O que era uma boa surpresa.
─ Pode deixar ─ ele também respondeu sorrindo, indo finalmente trocar de roupa, deixando Karen a esperá-lo no corredor.
Quando retornou, ainda ajeitava a blusa, e Karen não pôde deixar de reparar no abdômen musculoso e esguio, que ele logo cobriu novamente com o tecido. Enquanto caminhavam, Sérgio explicava:
— Durante a semana, não temos pessoal suficiente para cobrir o turno da noite, então, deixamos as portas fechadas. Já perdemos hóspedes por isso, mas não vale a pena pagar um funcionário só para a recepção. Fechamos a cozinha às dez, e eu fico às vezes até mais tarde para receber um ou outro, mas temos nossas regras.
— Claro, eu entendo.
Sérgio continuou falando, explicando alguns detalhes do método de trabalho do local, mas Karen já nem prestava mais atenção. O homem na recepção não lhe saía da cabeça. Havia algo de estranho nele, embora ela preferisse nem pensar nisso.
Ele andava de um lado para o outro, ansioso como sempre. Não estava buscando uma pousada com ares acolhedores, mas fora o melhor que encontrou. Ao menos estava longe o suficiente de todas as terríveis lembranças... esperava apenas que não lhe fizessem muitas perguntas, especialmente aquelas que não estava disposto a responder. Além de perguntas, ele também odiava surpresas. Odiava não saber o que o esperava, odiava ser surpreendido, mas fora exatamente o que acontecera quando a porta daquele lugar foi aberta. Não esperava ser recebido, àquela hora, em uma noite tão fria, por uma mulher tão jovem. E, céus, como ela era bonita! Tinha uma expressão assustada, vulnerável e inocente, em um rosto angelical e delicado. Parecia uma daquelas mulheres de filmes antigos que sua mãe gostava de assistir quando el
Ele só podia estar ficando louco. Louco! Estava ali naquela cidade para se curar, para reunir os pedaços de seu coração partido e colá-lo outra vez. Já era sua segunda parada naquela estranha e solitária road trip[1] de férias, e esperava não levar muito mais tempo para resolver aquele problema. A mamata não poderia durar para sempre. Sendo assim, não conseguia compreender por que se preocupara com a garota, muito menos com a irmã. Elas não eram problema seu. Não eram sua responsabilidade. A única pessoa de quem deveria ter cuidado, protegido, traíra sua confiança e estava agora no fundo do poço. Passara a sentir-se um pouco solitário nos últimos meses, mas talvez fosse melhor assim. Quanto
Havia vozes animadas conversando, o tilintar de copos, pratos e xícaras encostando uns nos outros, havia risadas e um cheiro delicioso de pão fresquinho no ar. Karen estava no paraíso. Era bem verdade que preferia que Anne estivesse ali com ela, sentada à mesa, comendo com vontade e começando a se abrir; ou pelo menos apenas conversando sobre qualquer coisa. De fato, estava tão preocupada por ela não comer que nem se importaria se ficasse somente em silêncio. Já havia descido há pelo menos quinze minutos e estava ansiosa, sempre olhando para a entrada do pequeno salão que servia como restaurante, ainda acreditando que ela iria aparecer. Contudo, um rosto familiar apareceu no lugar da adolescente. Era Sérgio, parecendo muito bonito com sua blusa polo branca
Anne não voltara para o quarto, porém, Karen não estava preocupada, porque conseguia enxergá-la na piscina, tomando sol. Usava um maiô um pouco gasto, mas que com certeza fora escolhido estrategicamente para esconder seus hematomas, cuja origem ela ainda desconhecia. Enquanto a menina estivesse ali, tudo estaria bem, e ela precisava concordar que aquele quarto, talvez, fosse pequeno demais para elas. O silêncio entre duas pessoas podia ser ainda mais sufocante do que a solidão, mais torturante do que os gritos e as discussões. E cada vez que Anne lhe dirigia um olhar indiferente ou que lhe cuspia uma de suas palavras ríspidas, Karen sentia-se morrer um pouco. Não era uma morte de corpo, era seu espírito que morria lentamente. Seu único propósito na vida sempre fora recuperar a irmã, cumprir a promessa que fizera par
Já que tinha uma festa para ir, Karen decidiu que seria uma boa hora para comprar algo novo para vestir. Para si mesma e para Anne. Odiava fazer gastos desnecessários, mas sabia que se revirasse sua mala de cima a baixo não encontraria nada legal para uma festa. E o mesmo aconteceria com a irmã. Pediu que Sérgio e Amália ficassem de olho na garota por algumas horinhas e partiu para o centro de Vilamares, pronta para comprar algo que fosse charmoso e fresco ao mesmo tempo, já que o tempo parecia começar a esquentar. Vasculhou as lojas em busca de algo ideal e encontrou para si um lindo floral acinturado, em tons de azul e branco, com uma saia delicada e rodada, frente única. Possuía uma sandália não muito nova de salto alto, preta, que combinaria perfeitam
Capítulo Quatro Bem, não era exatamente o que ela imaginava. O mar não tinha ondas, apenas marolas, e a praia era tão pequena que mal poderia caber uma família inteira. Mas o que ela poderia saber sobre uma família, se jamais tivera uma, pelo menos não uma que fosse normal. O cheiro e o barulho do mar eram inebriantes. Sentada na areia, sem nem se importar se iria estragar ou sujar o belo vestido, que ganhara de presente de alguém que ela nem sabia quem era, Anne contemplava o horizonte. Nunca tivera oportunidade de ver o mar, o que poderia ser considerado um absurdo, afinal nascera e crescera no Rio de Janeiro, mas a verdade era que ela sequer havia começado a viver. Não queria pensar que sua irmã fora responsável por qualquer coisa boa, porém, precisava admitir que aquele er
Já era quase meia-noite, e Karen olhava de um lado para o outro, procurando por Anne. Perguntara para algumas pessoas, inclusive para Tauan, o menino que estivera conversando com ela horas atrás, mas ele também não a vira desde que o deixara praticamente falando sozinho. Karen também presenciara a cena, mas pensara que Anne iria para o quarto, porém, estivera lá e nada. Estava vazio. Decidida a procurá-la, começou a sair da pousada, mas Sérgio veio correndo em sua direção e a chamou. — Ei, está na hora de partir o bolo. — aproximou-se sorrindo. — Eu sei, mas a Anne desapareceu. Outra vez. — mostrou-se desanimada. &
Embora não conhecesse nada de Vilamares, ela podia acreditar que eles já tinham percorrido a cidade inteira e todas as praias da região. Marcos acreditava que a menina deveria ter ido a uma delas, já que Karen suspeitava que Anne nunca tinha visto o mar. Era estranho ela simplesmente suspeitar coisas sobre a irmã que deveria conhecer muito bem. Quando Anne nascera e que Karen tivera a oportunidade de contemplar aquele bebezinho pequeno e delicado, jurou para si mesma que jamais permitiria que alguém lhe fizesse mal. Prometera que estaria ao seu lado a cada choro, a cada riso, que a aconselharia e a guiaria para o caminho correto, mas o destino quis que tudo acontecesse de uma forma diferente. Agora, depois de tanto tempo, ela esperava que ainda tivesse tempo suficiente para reparar os erros do passado.&nb