Razões Para Não Te Amar
Razões Para Não Te Amar
Por: Josy Ribeiro
01

POR VOLTA DE 1810...

— Preciso... falar com... minha filha... — lamentou João Alvares Carvalho com bastante dificuldade. O homem estava num estágio avançado de uma doença desconhecida e misteriosa.

— Sua filha não pode se aproximar, ninguém de sua família, senhor João, pode ser muito perigoso — afirmou o doutor, pela quarta ou quinta vez naquele dia, desde que João insistira em falar com a filha. Ele parecia pressentir que estava morrendo, pois a aflição do homem tão fraco e esquelético sobre a cama era intensa.

A filha, que aguardava ao lado de fora nos braços de sua mãe, estava muito angustiada. Elisa temia que aqueles fossem os últimos minutos de vida de seu pai e desejava ansiosamente estar ao seu lado.

O vento balançava as frestas das janelas, anunciando uma forte tempestade. Era uma noite assustadora, e toda a angústia presenciada naquela casa anunciava que o pior estava por vir.

Após momentos terríveis de espera, Elisa e a mãe ouviram gritos vindo de dentro do quarto. A dor que queimava ambas era muito grande, ouvir a voz de João junto à voz do médico que tentava inutilmente acalmá-lo não as deixava pensar com clareza.

— Senhor João, não pode ficar agitado desta forma.

E o homem doente tossia por várias vezes e praticamente sem ar, ele se esforçava de uma forma descomunal, chamando pela filha.

— Pelo amor... de Deus... Preciso... Falar... Com ela... Elisa!...

De dentro, a porta se abriu de repente e com força, o som do rangido da madeira soou forte. Uma jovem de cabelos castanhos, pele clara e bem vestida entrou no quarto seguida pelos gritos da mãe, Teresa, que implorava para que a menina não se aproximasse do pai.

Porém, a falta de coragem da mulher mais velha ou talvez a forte emoção por ver o estado do marido, a fez ficar paralisada no mesmo lugar.

— Elisa, minha filha, pelo amor de Deus, a doença de seu pai pode ser contagiosa – gritou de onde estava em lágrimas.

Mas a jovem não se importava. Seu sofrimento com a possibilidade de nunca mais ver o pai era maior naquele momento. Havia ficado três meses impedida de vê-lo desde que os primeiros sintomas da doença surgiram. Ela sentia muita falta do pai. João sempre fora um homem carinhoso, dedicado, e mesmo depois da falência da família, das perdas financeiras, ele nunca deixou de lhes dar a devida atenção.

Então, Teresa respirou fundo e se aproximou também. De perto, as duas ficaram em choque ao ver o quanto ele estava magro e fraco, nem de longe se parecia com o homem forte que andava para todos os lados, administrando as coisas da casa e da família. Elisa e sua mãe caíram em lágrimas no quarto. O doutor parecia insatisfeito com a presença de ambas por causa do perigo da contaminação, lhes havia comunicado por diversas vezes, ele usava algum tipo de roupa especial que lhe cobria o corpo.

A mulher mais velha, de cabelos negros em um penteado simples, ficou parada mais uma vez, quase sem forças. Já a moça se ajoelhou aos pés da cama em soluços e mais lágrimas. Devagar, ela segurou a mão do pai e deixou ali um beijo carinhoso, pois, no fundo, Elisa sabia que seria o último.

— Papai, estou aqui. Não se esforce.

João a olhou aflito, talvez por temer que a filha estivesse exposta à doença, ou talvez o único motivo de tratar da necessidade que ele tinha em dizer algo à moça.

Com sua voz ainda mais fraca do que antes, João balbuciou:

— Ah... Elisa...— mas o restante da frase simplesmente não saiu. O homem virou para o lado a fim de tossir. 

Elisa chorou com mais força, era muito triste ver seu pai terminar assim. Logo ele, sempre tão forte, andando pela fazenda, dando ordens aos criados, resolvendo tantos assuntos administrativos e que sempre sobrava tempo e amor para cuidar da esposa e dos filhos, ela e Joaquim, seu irmão que servia no exército e do qual não tinham notícias há mais de seis meses, outra angústia que os assolava, uma possível morte em combate do rapaz. Talvez esse também fosse um outro motivo aparentemente que tenha deixado João tão frágil a ponto de a doença lhe tomar tão depressa.

— Papai... Eu te amo tanto...

Quando a crise de tosse cessou por um instante. João se virou para a filha com os olhos semicerrados pela fraqueza. Sua pele pálida estava mais branca que o normal, em torno de seus olhos uma grande marca escura demonstrava seu cansaço por tanto esforço.

— Filha minha... Me perdoe...

Os olhos de pai e filha derramaram lágrimas de dor.

— Não tenho que lhe perdoar, papai, você foi o melhor pai que qualquer filha poderia ter.

Ele se agitou e, por isso, a tosse lhe acometia com mais violência, sendo necessária a intervenção do doutor.

— João, chega, pare de se esforçar.

Mas João estava decidido, ainda precisava dizer algo à filha. Fez um gesto reprimindo o doutor e novamente se virou para Elisa.

— Eu fiz algo... Para você... Elisa... pensei que fosse o melhor... Me perdoe...

Elisa não fazia ideia do que fosse, mas conhecia bem o pai e sabia que ele não seria capaz de fazer mal a nenhuma mosca, principalmente se tratando dela, sua filha caçula. Então, a fim de deixá-lo mais calmo, se mostrou compreensiva:

— Eu te perdoo, papai, agora fique calmo.

Entretanto, o homem não se aquietou. João continuava insistindo nas mesmas palavras.

— Me perdoe... Elisa…

Teresa finalmente conseguiu forças e se aproximou. Os olhos do casal se encontraram de uma forma especial, diferente dos matrimônios da época, frios e convenientes. Ali havia amor verdadeiro e… dor… porque era nítido que se tratava do fim.

A angústia do homem foi crescendo de tamanha forma que as palavras não saíam mais, ele não conseguia respirar. João agarrou a manga do vestido de renda que Tereza usava. A mulher já não se importava mais com a doença, deitou seu rosto sobre o dele e chorou com toda a sua força. 

— João…

O vento soprou com mais força ao lado de fora, provocando um som assustador.

O homem foi desfalecendo devagar sobre o pranto de sua família, o doutor já não conseguia conter nenhuma das duas. E lentamente o corpo de João foi perdendo completamente os movimentos, a tosse cessou, restando apenas um som angustiante de um pouco de ar restante saindo de sua boca. Devagar, seu corpo parou de se mover e um silêncio pairou sobre o quarto.

Ele havia partido.

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