03

O escrivão confirmou a autenticidade do documento, aquilo deixou Elisa devastada. Sentia-se sentenciada por algum crime não cometido. Apenas pôde ir até sua casa e buscar um vestido que não fosse de luto. O casamento aconteceria ali naquele mesmo dia. Era isso ou ir presa pelas altas dívidas acumuladas por seu pai, e a família Valença não estava de brincadeira quando prometeu fazê-lo se não aceitasse.

Como qualquer jovem da sua idade, Elisa sonhava em ter um casamento incrível, com doces caseiros servidos e feitos em sua casa, escolhidos com muito carinho por ela e sua mãe. Um vestido bordado com pedras e rendas escolhidas a dedo, flores colhidas nos seus próprios jardins. Mas seu sonho havia se tornado um grande pesadelo, e subir ao altar com um desconhecido, tendo apenas a mãe dele como testemunha, foi tudo o que lhe restou. Então se casou, uniu-se em matrimônio a um completo estranho. Elisa desejava desesperadamente que tudo isso se tratasse de um pesadelo.

A viagem até a cidade de Serrana era longa e exaustiva, pelo menos não havia restado tempo para uma possível lua de mel, Elisa agradeceu por poder adiar esta parte, não entendia muito sobre o assunto, mas o suficiente para saber que era algo íntimo e invasivo, pois tinha visto como os animais da fazenda faziam para procriar, e sua mãe havia lhe dito que era bem parecido com os seres humanos, principalmente em núpcias, aquilo lhe apavorou, mas ela não entrou em detalhes, disse que quando chegasse o momento em que ela se casasse, ambas teriam uma conversa sobre tal assunto, apenas lhe adiantou que não haveria motivos para temer, pois um bom marido, era paciente e carinhoso, e que mesmo sendo um pouco doloroso para ela, se tratava do momento em que se tornaria uma mulher. Levando em consideração a frieza e arrogância de seu então marido, Manuel, Elisa tinha plena certeza de que não haveria paciência nem muito menos carinho, o que a deixava ainda mais temerosa a cada instante, sabendo que certamente lhe restaria apenas a dor.

Felizmente, Elisa fora acomodada em uma carruagem separada, não teve que enfrentar as oito horas ao lado daqueles dois seres tão frios, que lhe conheciam apenas há um dia, mas era o suficiente para carregar sentimentos nada bons, afinal, a mulher havia lhe obrigado a se prender a um casamento sem lógica alguma com seu filho, e Elisa não entendia o verdadeiro motivo pelo qual Manuel fazia tanta questão do matrimônio, já que lhe tratava com tanto desprezo, como se ela fosse apenas uma mercadoria, entretanto, era assim mesmo que ela se sentia, como uma propriedade recém-adquirida.

Sua viagem foi cansativa além do que deveria, pois Elisa chorou na maior parte do tempo. Já não tinha mais lágrimas, seu corpo doía, esmagado pela tristeza de tantos acontecimentos amargos. Desejava ter ao menos Joaquim ao seu lado, seu irmão a defenderia, e não permitiria que ela se submetesse ao casamento forçado. Mas ela sabia que as chances de Joaquim estar vivo eram mínimas, afinal enviara mensageiros avisando sobre a doença do pai, depois sobre sua morte, e na terceira mensagem, a perda de sua mãe. Se Joaquim estivesse vivo, teria vindo no primeiro momento. Elisa suspirou e limpou o canto dos olhos com um lenço que carregava, notou que a carruagem havia parado, só então ela notou a beleza do lugar, se tratava de uma fazenda dez vezes maior que a sua, onde viveu. Além do mais, era linda, de uma paisagem exuberante, um jardim incrível, e aos arredores quilômetros de terra produtiva, havia passado ao lado de muitos cafezais, então suspeitou que eles cultivassem o fruto. Seu pai já havia dito durante as refeições algumas vezes sobre fazer negócios com cafeicultores, mas ele sempre dizia que precisava de bastante dinheiro para investir em tal negócio e eles não possuíam.

Elisa continuou observando a paisagem enquanto o cocheiro lhe abria as portas para descer. Ela segurou a barra do vestido cor creme, era simples, na verdade ela não tinha muitos vestidos novos, fazia tempo que seus pais não lhe levavam à modista, realmente estavam numa situação financeira muito ruim.

Quando pisou no pátio principal, cheio de pedras bem colocadas, seguido de um jardim lateral incrivelmente lindo, com rosas, orquídeas, margaridas, todas bem organizadas em seus grupos, de alguma forma ela pôde respirar fundo, a beleza daquele lugar lhe trouxe paz. Notou um bosque cheio de árvores bem podadas e se imaginou ali, debaixo de uma árvore, lendo seus livros preferidos e se perdendo nas histórias mágicas, podendo fugir da realidade cruel que lhe assolava. Quando olhou à frente, ficou pasma com o tamanho e modernidade da casa principal, havia uma enorme quantidade de janelas que chegavam a ser absurdas para uma residência familiar. A fachada era toda pintada na cor branca, com molduras e sancas ao redor de toda a lateral. Na porta principal havia um grande arco como naqueles descritos em livros mitológicos vindo de Roma. Elisa quase teve certeza de que as colunas fossem de mármore, uma pedra muito bonita e cara. Na sequência, ficou chocada com a quantidade também de empregados que estavam enfileirados de forma impecável e bem vestidos, lhes aguardando à frente da entrada. Então, ela teve certeza de que aquela se tratava de uma família muito rica, tão rica quanto ela jamais imaginara ser. Seus pais haviam sido bem estabilizados financeiramente um dia, eram produtores de algodão e possuíam uma pequena produção de leite, o que lhes havia rendido anos de conforto e requinte, proporcionando a Elisa e Joaquim uma boa educação, além de ingressar o rapaz no exército, porém não a esse nível. Elisa estava diante de uma fortuna imensurável, e a cada instante entendia menos o que aquela família queria tanto com ela, já que não lhe restava nenhuma posse nem ao menos foi pago um dote. Era apenas uma órfã desabrigada e sem um tostão.

Ainda ficou parada assimilando tudo que estava vivendo, seu então marido, que nem lhe dirigia a palavra ou um gesto educado de cordialidade, estava à frente dando ordem aos empregados enquanto a mãe se aproximou, sempre com aquele tom irônico que Elisa não estava mais suportando.

- Então, querida, seja bem-vinda ao seu novo lar - falou, puxando Elisa pelo antebraço, tentando ser o mais discreta possível. Talvez fosse porque as pernas de Elisa haviam simplesmente paralisado ali naquele lugar e não conseguiam se mover.

Edna parecia mais desejar exibir a moça aos empregados. Ela fazia questão de dizer alto e repetir por várias vezes que se tratava da nova esposa de Manuel, deixando ordens expressas de que ela fosse recebida e bem cuidada por todos na casa. Os olhares direcionados à jovem eram bem discretos, porém ela percebia o quanto todos estavam surpresos. O coração de Elisa batia cada vez mais forte com todas as sensações que estava sentindo, sentia medo e angústia, uma ansiedade sem fim e, quando pensou que seu corpo lhe pregaria uma peça, lhe lançando ao chão com tantas emoções, um grito soou vindo de trás, uma voz em tom de indignação se manifestou no pátio principal ao lado dos veículos parados, uma voz rouca e grave, máscula e bem diferente de tudo que ela já havia escutado. Mesmo diante de tudo que estava passando, naquele instante ela desejou conhecer o autor daquela voz que havia entrado em seus tímpanos e percorrido cada extremidade do seu corpo, causando-lhe mais sensações nunca experimentadas. Elisa olhou para trás e quase se desfaleceu de vez com a imagem que viu. Um homem alto e forte, de porte atlético, bem parecido também com os descritos nos livros de romance e aventura dos quais ela lia. Ele tinha uma pele corada, talvez fosse do exército e ficasse exposto ao sol por muito tempo, por isso tinha aquele tom de pele tão atrativo. Seu cabelo era muito bem cortado e penteado para trás, ele não tinha barba, e ao redor do rosto seu cabelo se encontrava bem desenhado em uma costeleta elegante. Seu terno caro o deixava bem vestido como um príncipe vindo de alguma parte real, seu rosto de traços perfeitos, sobrancelhas e lábios grossos o deixavam ainda mais charmoso, apesar de todo mau-humor e irritação em sua expressão. Elisa engoliu seco, nunca havia sentido isso, era a primeira vez que experimentava a sensação de ter seu mundo parado e seu corpo arrebatado apenas com a presença de um homem. E o homem em questão estava a uma distância considerável e discutindo calorosamente com o seu suposto marido.

- Fernando? - ouviu Edna declarar surpresa.

- Vocês dois estão ficando loucos, perderam o juízo de vez?- O homem gritou.

Manuel encarou o homem como se não lhe devesse explicações, era nítido que não havia nenhum vínculo de amizade entre ambos. Aliás, cada palavra dita mais parecia uma grande arena de batalha onde o ganhador era aquele que fosse mais ríspido e arrogante.

- Não lhe devo explicações, maninho, mas você sim, me deve felicitações, afinal finalmente terá uma cunhada - Manuel respondeu com tom de ironia.

O tal Fernando se contorceu de raiva com as palavras do então irmão.

- Isto é um absurdo, Manuel. Saiba que não concordo. Goste ou não, ainda sou o chefe desta família, havíamos decidido...

Edna, que havia soltado Elisa e se aproximado dos cavalheiros, o interrompeu:

- Senhores, acho melhor acalmarem os ânimos, os criados estão assistindo - ela sussurrou para ambos entre os dentes.

Fernando ainda se manifestou contra a mulher:

- Isto é um absurdo, e você sempre conivente, não é mesmo, Edna? Eu sei bem o que querem.

- Fernando, acabamos de retornar de uma viagem exaustiva, nos poupe de suas lamúrias - ela virou na direção de Elisa com aquele sorrisinho falso. - A esposa de Manuel está exausta, a pobrezinha acabou de enterrar os pais e ainda se submeteu a esta viagem. Vamos deixá-la descansar.

As veias saltavam das têmporas do homem. Porém, naquele instante, ele se virou para Elisa, como se apenas neste momento houvesse observado a jovem.

Elisa nunca imaginou que apenas o olhar de um homem fosse capaz de penetrar dentro do seu corpo e tirar tudo do lugar como se fosse algo normal, causando uma inquietação absurda. Ela não sabia como lidar com aquele sentimento. Mais uma vez, respirou fundo e engoliu seco, mas Fernando ainda olhava no mais profundo dos seus olhos. Aquele contato visual durou mais tempo do que deveria e, de alguma forma, ela acreditou que tudo que havia sentido fora recíproco. Em algum lugar, dentro das íris esverdeadas cor de esmeralda e coberto por uma névoa acinzentada de sentimentos sombrios, aquele homem ficara mexido. Ela o viu se endireitar, e por um segundo todo seu mau-humor e irritação desapareceram, dando lugar a uma misteriosa agitação e desconforto. Ela então fitou o chão, temendo que mais alguém percebesse o que aconteceu, eles pareciam estar em outra dimensão, e era nítido que não eram notados. Somente então Fernando se recompôs, mas não conseguiu disfarçar o tamanho do esforço que precisou fazer para ignorar o que havia acontecido.

Elisa sentiu os braços de Edna lhe tocarem novamente no antebraço, sentiu-se uma prisioneira sendo levada para o cárcere, embora fosse verdadeiramente o que acreditava ser. Estava presa a um casamento de faixada, com um homem pelo qual ela sentia pavor, e uma família completamente descontrolada.

Adentrou a casa sendo praticamente arrastada pelo sogra, ainda ouviu parte da discussão entre os irmãos que não havia cessado, mas logo estavam longe o suficiente para abafar o som das vozes. Por dentro, a casa era ainda mais magnífica, com móveis impecavelmente colocados em cada canto, todos feitos de madeira e tecidos nobres. Um gigantesco lustre enfeitava o teto alto do centro da sala. Elisa imaginou os melhores bailes que essa família certamente oferecia, e que, mesmo não se atraindo para tais eventos enfadonhos e cansativos, não pode deixar de imaginá-los. Ela foi apresentada à sua mais nova dama de companhia, uma senhora de meia idade, séria e rígida, nada diferente do que já havia conhecido até ali. Então não se espantou, apenas não se imaginou na companhia de uma geleira, já havia lido em algum livro sobre as supostas geleiras que existiam em algum lugar do mundo. Talvez se comparasse a essa mulher à sua frente, ela respirou fundo e se lembrou de seu então marido, chegou à conclusão de que ele sim chegava bem próximo das descrições que ela bem conhecia de uma geleira, a senhora Francesca Magnoli era apenas uma água fria perto dele.

- Senhora Valença, já ordenei aos criados que lhe preparassem um banho. Suas coisas já estão sendo acomodadas em seu devido lugar, e a propósito...- ela pigarrou e se virou para Edna, logo Elisa pôde perceber a cumplicidade que havia entre ambas. Francesca não havia sido escolhida por acaso como dama de companhia. - A nova senhora Valença precisa de ir à modista com urgência.

Elisa se sentiu incomodada com o comentário um tanto abusado de sua criada, entretanto sabia que precisava concordar com ela, sendo parte de uma família tão rica, ela precisaria de roupas novas.

- Oh, claro, Francesca, em breve levaremos minha nora à cidade, ela precisa sim de novos vestidos. - Edna ergueu as sobrancelhas como se aquilo fosse algo de suma importância. Elisa, no entanto, apenas se calou. Na verdade, era a única coisa a que tivera direito desde que conheceu aquela família, ficar em silêncio.

Francesca continuou:

- Aliás, um para baile, ora, acredito que a senhora Edna deverá organizar um em breve, esta joia precisa ser apresentada à sociedade local, afinal, como eu disse, se trata da nova senhora Valença!

A criada sugeriu, olhando de canto para Edna, que sorriu satisfeita, achando aquela ideia brilhante.

No entanto, as palavras da mulher deixaram Elisa inquieta, ela não estava a fim de baile algum, principalmente se tratando de expô-la como troféu a seja lá quem fosse, no entanto, não se manifestou. Então, viu os olhos escuros e completamente cheios de soberba de Edna cintilarem com os planos que a serva lhe sugerira.

- Vamos organizar tudo, precisa ser o melhor baile que esta cidade já recebeu! E sabemos que isto leva tempo para organizar, devemos escolher o melhor vinho e champanhe imediatamente para fazer as encomendas, decidir um menu, flores e uma orquestra...

Elisa não se sentiu nada empolgada, felizmente Edna se livrou rapidamente dela, pois pretendia ordenar a imensa lista de tarefas para o tal baile que aconteceria no próximo mês.

Elisa dispensou os servos mesmo sob a recriminação de Francesca. Queria ficar a sós, respirar um pouco. Já em seu quarto, agradeceu milhares de vezes por aquele momento de privacidade, finalmente estava livre de todo aquele teatro ridículo, agradeceu também quando notou que se tratava de uma acomodação simples e não a principal da mansão, pois não precisaria dormir junto a Manuel. Felizmente, as regras da sociedade atual permitiam que casais ficassem em quartos separados para que ambos tivessem privacidade.

Então, ali sozinha, ela se despiu e entrou em sua banheira a fim de relaxar e tentar organizar suas emoções. A água quente tocava sua pele, proporcionando uma tranquilidade e, mesmo sabendo que fosse passageira, decidiu se deleitar naquele momento de paz, pois tinha plena certeza de que seria raro dali em diante.

Após alguns instantes, ainda com todo o sabão sobre seu corpo, Elisa refletiu acerca de algumas coisas. Sabia que algo estava errado. A discussão dos cavalheiros havia deixado nítido que ambos eram irmãos e inimigos, ela não entendia como isso era possível, afinal fora criada em um lar amoroso e sempre tivera um bom relacionamento com seu irmão Joaquim. Mas o que a deixava inquieta não era apenas a rivalidade entre irmãos, mas Elisa era inteligente o suficiente para entender que ela era apenas uma mercadoria, e que de fato seu pai lhe havia vendido para pagar as dívidas, porém sabia que ainda havia muito o que descobrir a este respeito, além do mais, a família Valença tinha propósitos bem definidos ao escolhê-la como esposa e Elisa estava disposta a descobrir o motivo.

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