“Mas é claro, com muito prazer, senhorita! Minha caminhonete está estacionada na rua de trás, me acompanhe.”
Os dois caminharam juntos, viraram a esquina e subiram uma rua pouco movimentada onde estava estacionada a caminhonete de Raul. Ele abriu a porta e pediu que ela entrasse. Ligou o carro e saiu todo feliz e satisfeito. Durante o percurso, ele puxou assunto. “Agora a pouco lhe vi chorar. Desculpe-me pelo atrevimento, senhorita, seria pelo concurso?” “Sim, meu pai não me permitiu desfilar.” “Você é tão linda, se o seu pai deixasse tenho certeza que venceria aquele concurso facilmente.” “Infelizmente o meu pai preza por princípios ultrapassados e me obriga a fazer o mesmo.” “Sinto muito por você não conseguir subir na passarela, adoraria te ver desfilar!” Felícia não se sentia à vontade com o rumo daquela conversa, estava incomodada e rezando para chegar em casa logo. “Você está bem? Parece ansiosa!”, ele perguntou. “Estou preocupada, com medo de alguém ter presenciado eu entrar na sua caminhonete.” “Não se preocupe, eu olhei a rua e ninguém prestou atenção em você entrando.” “Se o meu pai souber ficará muito bravo.” “Fique tranquila, o seu pai nunca saberá. E se souber, não fizemos nada de errado.” Chegando na fazenda, Raul estacionou próximo à porteira e ela já foi agradecendo apressadamente: “Muito obrigada pela carona!” Ele se ajeitou, limpou a garganta e encarou a moça. “Espere, tenho algo para lhe falar.” Felícia soltou a trava da porta do carro. “O que o senhor deseja?” “Podemos ser amigos, já que não aceita compromisso?” “Acredito que já temos uma amizade, a gente se conhece, conversa e tem respeito. Esse é o tipo de amizade que considero mais apropriada para um homem e uma mulher solteira.” “Tem razão! Espero que tenhamos mais momentos como estes. O que precisar pode contar comigo.” “Agradeço mais uma vez e espero que o senhor tenha sorte em encontrar uma boa moça para um compromisso sério.” “Obrigado, passar bem”, ele respondeu frustrado, sem tirar os olhos da boca dela. Chegando a noite, a família retornou da festa, todos preocupados com a ausência de Felícia. “Onde você estava? Quem te trouxe para casa?”, perguntava o Sr. Molina irritado com o sumiço da filha. “Eu vim sozinha.” “E porque não nos avisou? Te procuramos por toda a cidade.” “Pedi que uma amiga desse o recado, acho que ela esqueceu.” “E o que você fazia de papo com o engenheiro? Seu irmão viu vocês conversando.” “Nada demais, eu estava chorando e ele me perguntou se eu precisava de alguma coisa.” “Espero que seja isso, não quero ouvir fofocas envolvendo o seu nome”, advertiu o velho carrasco. Na segunda-feira, Felícia chegou entristecida na padaria da amiga, aparou-se no balcão e ficou por lá tomando um refresco conforme conversava com Otávio. Os dois pareciam à vontade enquanto Sarah atendia os demais clientes. “Felícia, não fique triste, próximo ano você tenta.” “Enquanto o meu pai estiver vivo nunca subirei numa passarela.” “O seu pai só quer o seu bem, talvez ele não quisesse te expor.” Nessa ocasião, Raul passava na rua em sua caminhonete e percebeu a proximidade dos dois. Saiu decepcionado do local, embravecido e consumido pelo ciúme. Durante a semana, ele voltou na fazenda do Sr. Molina para acompanhar o tratamento de pragas em sua lavoura. Foi recebido pela empregada Hazaye, que pediu para ele aguardar no terraço. Não demorou muito e o Sr. Molina chegou e cumprimentou o homem: “Bom dia, engenheiro! Chegou cedo.” “Bom dia, Sr. Molina!” Sem hesitar, o fazendeiro Molina se sentou e logo expôs: “Fiquei sabendo que o senhor anda cortejando a minha filha.” Raul abaixou a cabeça, tomando coragem para explicar: “Sr. Molina, infelizmente o senhor ficou sabendo antes d’eu lhe contar e peço perdão por isso. Deixo claro que tenho sim sentimentos por sua filha e o meu maior desejo é casar-me com ela.” O velho mudou de expressão com a ousadia do homem e respondeu carrancudo: “Você é esforçado e inteligente, um homem aprumado e airoso. Ainda assim, não preenche os requisitos de um noivo que eu procuro para a minha filha.” Raul perguntou insatisfeito e ofendido: “E quais são esses requisitos, Sr. Molina?” “Ora... isso não te diz respeito, já dei a minha palavra final. Você não terá a mão da minha filha. E ainda deixo advertido: não perturbe Felícia nunca mais!” O velho desembuchou com autoridade. O engenheiro acenou com a cabeça indignado e concordando com o nobre fazendeiro. A realidade era que, apesar da admiração pelos trabalhos do engenheiro, o Sr. Molina não o considerava o genro adequado para a sua filha pelo fato de Raul vir de família pobre e negra. A mãe de Raul era parda e o pai, que nunca conheceu, provavelmente branco. Raul realizou o seu trabalho na fazenda cabisbaixo e frustrado com o despacho do fazendeiro Molina, sabendo que fora rejeitado por vir de família desprovida. Ele finalizou o seu trabalho e recebeu o pagamento. Conforme caminhava pelos vastos alpendres da casa grande, se atentou à lindas pernas balançando numa rede, andou alguns passos e se animou ao ver o rosto angelical de Felícia lendo uma revista. Remoía em seus pensamentos e dizia para si mesmo, enquanto ligava a sua caminhonete: “Que tesão de mulher, que delícia! Ah, como eu queria casar com aquele brotinho. Se não fosse a praga do pai, já teria conquistado o coração dela.” Foi-se lamentando e idealizando uma paixão que nunca teria.Raul chegou à cidade e encontrou Vicente, um amigo de infância que também voltava do trabalho. Os dois caminharam até o boteco em frente à praça. “E aí, camarada, já conseguiu se achegar à donzela?” “Oxi! Nem te conto, hoje quase levei umas munhecadas do pai dela. Ele só não me botou para correr porque precisava do meu serviço.” “Que derrota! Sinto muito, meu amigo, mas o velho quer casar a filha com um cabra que ele não vai encontrar por aqui na região.” “Estou arretado com aquele velho.” “Mas você ainda tem a Ludmila, que vive rastejando em cima de você.” “Dispensei! Já te disse, não gosto de mulher fácil.” Ludmila era uma mulher linda, loira de cabelos compridos, olhos claros e um corpo admirável. Ela estudou o colegial com Raul, porém não era bem afamada já que, por ser bonita, vivia rodeada de homens. Era provocativa, fogosa e não tinha bons modos. “Se você que é estudado, um renomado engenheiro agrônomo, não consegue uma donzela, imagina eu, um peão sem ei
O Sr. Molina quase deu um pulo ao ouvir aquela revelação. Arregalou os olhos, seu coração se alterou e ele suspirou. O pecado da cobiça se alastrou profundamente em sua alma. Ele lembrou que poucas semanas antes o engenheiro havia pedido a mão da sua filha Felícia em casamento e ele negara incondicionalmente. Naquela altura, o Sr. Molina não escutava mais a prosa do amigo. A sua mente não saia da burrice que ele tinha feito. O Barão continuou a revelar o seu segredo sem perceber a aflição do amigo tratante: “No passado, a mãe dele trabalhou em minha fazenda. Ela era novinha, tivemos um caso e eu a engravidei. No final, a expulsei da fazenda quando descobri que estava buchuda.” O Sr. Molina já estava agoniado para ir embora. “Depois que vi o meu filho bem criado e transformado num homem robusto, inteligente e bem instruído, me arrependi do erro que cometi no passado e senti vergonha de procurá-lo. Damião já registrou tudo, o engenheiro ficará com setenta por cento dos meus
Dona Quitéria percebeu de longe o entusiasmo do filho ao adentrar em casa. “O que aconteceu? Que alegria é essa, meu filho?” Ele tirou as botas antes de entrar e abraçou a mãe como de costume. “Eu consegui, mãe! Vou casar com a filha do fazendeiro Molina.” “Minha Santa Rita! E ela aceitou?” “O pai dela me procurou e marcou um jantar para sábado à noite. Vou conversar com a família e pedir a mão dela formalmente.” “Tomara que ela aceite, filho.” Catarina manifestou-se insatisfeita: “Raul, como você vai casar com essa mulher que te rejeitou o tempo todo?” “Ela mudou de ideia, agora ela quer casar, irmã.” “E Yelena, minha amiga? Você prometeu que queria conhecê-la, até já liguei e marquei com ela.” “Então a dispense, o meu coração agora tem dona! O nome dela é Felícia Molina”, ele respondeu sorridente, ignorando os planos da irmã. Depois da conversa com a família, fez questão de procurar o seu amigo Vicente para compartilhar seu triunfo. “Eu não te fa
Sr. Molina desceu e recebeu o genro cheio de cerimônia. “Boa noite, meu futuro genro!” “Boa noite, Sr. Molina!” “Venha, sente-se, vamos tomar um vinho antes de jantar." Depois da conversa, o velho fazendeiro gritou de longe: “Salete, o jantar já tá pronto?” Dona Salete chegou perto, cumprimentou o engenheiro e respondeu: “Está sim, vamos para a mesa.” Durante a refeição, o velho fazendeiro e o engenheiro Trajano conversavam a todo o tempo sobre as lavouras, as inovações no mercado agrícola e o trabalho de Raul. Raul tinha um olho no sogro e o outro na futura esposa, se esforçava para se concentrar na prosa do sogro, observava Felícia quieta. Senhor Molina por fim, entrou na parte do casamento: “Então, vamos fazer o seguinte: o casório será realizado aqui na capela da fazenda em três semanas. Felícia já vai ter terminado a escola, é o tempo de nos prepararmos para a celebração.” “Por mim tudo bem, Sr. Molina”, Raul concordou de imediato. No final da refei
Os dois saíram de carro e Felícia permaneceu a noite e o dia escondida no quarto de Sarah. Ela fugiu e se escondeu na casa dos amigos, esperando o trem para capital. O trem só saía uma vez na semana, no domingo de manhã, dia de seu casamento. Os primeiros raios de sol começou a surgir. Dona Salete se levantou cedo, pois era sábado, dia dos preparativos para festa de casamento da filha. “Felícia, filha, acorde! A gente precisa adiantar a arrumação para o seu casório amanhã.” Ela entrou no quarto e viu a cama da filha arrumada. Dona Salete procurou a filha por toda a casa, porém não a encontrou. Movida pelo desespero, não viu outra alternativa a não ser falar com o marido: “Dante, Dante, a nossa filha sumiu! Felícia não está aqui.” O Sr. Molina se levantou nervoso da mesa do café da manhã. “Tem certeza, mulher? Já procurou por toda a casa?” “Já sim, velho, ela sumiu!” O Sr. Molina pediu que os empregados procurassem nas redondezas. Em seguida, pegou sua caminhonete e, junto de
O engenheiro morava em Santa Rita com a mãe e a irmã mais nova num sobrado modesto e aconchegante de três quartos com um quintal extenso. A irmã mais velha, Catarina, vivia na capital estudando enfermagem. Já em casa, a sogra Dona Quitéria apresentava a moradia para a nora: “... E esse será seu quarto e do seu marido. Lá na frente é o banheiro. Amanhã, lhe apresento o quintal.” “Obrigada, Dona Quitéria, agora vou tomar um banho, estou muito cansada.” Na simplicidade do seu novo lar, Felícia olhava tudo com desgosto, lembrando do luxo da sua vida na fazenda. Já no quarto, ela não estava com nenhuma disposição de ter a sua primeira noite numa cama velha e num colchão duro. Enquanto mexia na sua mala, Raul entrou no quarto. “Você pode usar essa parte do armário e o que precisar pode me solicitar, farei de tudo para que se sinta feliz aqui.” Ela só respondeu “Obrigada”, bem baixinho. “Agora você pode sair, pois vou me trocar.” “Não precisa ter vergonha, agora somos casados, vamo
“Agora preciso trabalhar, volto meio-dia para o almoço. Espero que fique bem.” “Vou ficar sim, bom trabalho!”, ela falou com afago, esboçando um sorriso discreto, porém carregado de docilidade e gentileza. Raul prestou serviço numa fazenda durante a manhã e voltou para casa para almoçar e matar a saudade da esposa. Quando passava pelo centro da cidade com sua caminhonete, foi abordado por seu amigo Vicente. “Bom dia, camarada, você está com tempo? Preciso falar com você, tenho algo importante para conversar. A gente pode ir ali no boteco do seu Zé?” “Só vou porque fiquei curioso, seja breve. Não vejo a hora de chegar em casa para cheirar o meu brotinho.” “Vamos, então.” Eles pediram uma bebida. Depois disso, Vicente muito inquieto começou a relatar os boatos que vinha ouvindo na cidade. “Meu amigo, quero falar com você sobre uma história que escutei de uma pessoa aqui na cidade.” “Do que se trata?” “Dizem que a sua esposa fugiu com outro homem na véspera do seu casa
“Raul, por favor, já falei que Otávio é meu amigo. Imagina a vergonha que vai ficar para a minha família.” “Vergonha?! Agora imagina eu e a minha família quando a cidade toda souber o que aconteceu, onde ficará a minha honra?” Nessa ocasião, Felícia já não sustentava mais o choro. “Eu não te toquei, posso anular o nosso casamento. Você segue a sua vida, assim como planejou. Agora, faça as suas malas, te espero lá na sala.” “Eu não vou, não posso voltar.” “Infelizmente acabou, Felícia!” Felícia desmoronou, pensando na vergonha que ela e a sua família iriam se submeter. As pessoas iriam julgá-la por estar desonrada e seu pai não iria aceitá-la de volta. “Otávio nunca me tocou, ele é meu amigo. Eu ainda sou pura!” Evidentemente, aquela afirmação o impactou de forma abrupta e inesperada. Ele mirou a mulher, atordoado com a declaração. “Você não está mentindo para mim, não é mesmo?” “Não, não estou mentindo. Eu ainda sou pura.” “Escuta aqui, Felícia, vou acreditar no que está diz